Terapia Ocupacional e o Cotidiano Ressignificado: Produção de Vida
Por Grupo Terapia Ocupacional Libertária | 29/07/2009 | Saúde“A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes, ela é como um pôr do sol,
triste e nostálgico”
Rubem Alves
“Ao produzir o mundo,
o homem produz a si mesmo”
Marx e Engels
A Terapia Ocupacional, finalmente, entendida como ciência da ocupação humana, portanto tendo como preocupação humana anuncia que: - "a atividade humana seja entendida como espaço para criar, recriar, produzir um mundo humano. Que esta seja repleta de simbolismo, isto é, que a ação não seja meramente um ato biológico, mas um ato cheio de intenções, vontades, desejos e necessidades (...); não basta fazer, fazer e fazer, acreditando que o simples curso das coisas com isso se modifique. O fazer deve acontecer através do processo de identificação das necessidades, problematização e superação do conflito [nota nossa: no cotidiano mais significativo do indivíduo] (...) é necessário um profissional preparado, cuja tarefa é a de se dispor, também, como instrumento terapêutico ou recurso terapêutico, com o propósito de incomodar, de ativar e revelar o conflito para a sua proposição" FRANCISCO (2005. p.17). Portanto, a ação do terapeuta ocupacional, em sua clínica do cotidiano, faz-se da problematização de um fazer que mereça ser ressignificado pelo indivíduo que passa a possuir a si mesmo e a possuir o seu próprio processo de transformação.
Não há mudança do objeto de estudo em Terapia Ocupacional, que continua a ser o fazer humano. No entanto ao eleger o cotidiano como o eixo da clínica, neste presente estudo monográfico, ouve a ousadia de ressignificar o objeto de estudo da Terapia Ocupacional – "a Terapia Ocupacional deva assumir, cada vez mais, o papel de promoção do homem (....) tal promoção se dá por meio do desenvolvimento da personalidade e das potencialidades ou capacidades humanas" FRANCISCO (2005. p. 20). Desta forma depreende-se uma concepção ampliada da clínica que poderia ser displicentemente dimensionada a partir dos processos daqueles clientes que mantém um fazer ativo, sem dar devida discussão àquele cotidiano de que não empreende um processo de mudança, de transformação de si ou do universo relacional ao seu redor, e ainda assim sobrevive. Este não-fazer cotidiano é motivo de discussão de geração de processos de saúde-doença que interpolam à Terapia Ocupacional objetivar ações...
Terapeutas ocupacionais são cientistas do fazer humano, conforme os dizeres de REILLY apud FRANCISCO (2005. p. 39): tais profissionais consideram que o "objetivo da Terapia Ocupacional é encorajar o encontro aberto e ativo com tarefas que razoavelmente pertencem a seu papel de vida", assim fabricam a clínica do cotidiano. Procuram envolver seus clientes em processos de fazer mobilizadores de mudanças, de transformações complexas para além das experiências do setting ocupacional qualificado como mediador de proteção e estimulação nos grupos, oficinas ou sessões individuais de psicoterapia ocupacional para então edificar junto ao cliente um cotidiano ressignificado. Este acontecimento é a produção de vida, geração de vivência do que seja apropriação por parte do sujeito diante do seu mundo relacional na busca de resgatar significação para aquilo que viva diariamente. A superação daquilo que fora configurado como limite eleva o ser a seu status práxico no empossamento da vida que advém repleta de desejo e criação particulares, ou ainda "por intermédio do terapeuta ocupacional, uma variedade de experiências essas que permitirão ao indivíduo desenvolver aquelas capacidades, habilidades e destrezas necessárias para uma vida satisfatória e produtiva" MOSEY apud FRANCISCO (2005. p.39).
O processo de ressignificação do fazer, da atividade de realização humana e por extensão, do cotidiano, alcança na Terapia Ocupacional um processo psicoterapêutico a partir da dinâmica entre atividade e produção de significado para a vida, por parte do indivíduo. "Como processo psicoterapêutico [nota nossa: a Terapia Ocupacional] deve seguir-se necessariamente que o produto sendo feito e o trabalho de fazê-lo são considerados secundários ao julgamento de como o produto e o processo de fazê-lo afetam suas relações com os outros. A ocupação passa então a ser a ferramenta da manipulação de suas relações com outras pessoas e não o objetivo primordial em si" FIDLER e FIDLER apud FRANCISCO (2005. p.41).
Numa visão marxista histórica, temos que em Terapia Ocupacional, a produção de vida seja a partir da produção práxica de relações do ser com o seu processo de trabalho, de inter-relação com o grupo social e sua atribuição de valor ao processo da produção, uma vez que através dela o indivíduo se projeta no mundo dos objetos, problematiza o alcance de seu próprio trabalho produtivo e integra valor a si como humano, inserido numa fabricação do mundo humano, portanto. "Como a Terapia Ocupacional é uma prática de saúde que propõe o uso da atividade como recurso terapêutico, uma das possibilidades de ela vir a ser um espaço para transformar a si mesma e assim contribuir para a transformação social mais significante é através desse fazer. Um fazer que busca conscientizar os homens da opressão a que estão submetidos como membros de uma sociedade classista. Um fazer que desvela as determinações sociais vividas, busca descobrir formas revolucionárias, mostra a contradição e o conflito da saúde numa sociedade de classes" FRANCISCO (2005. p.66). Neste contexto, a produção de vida se dá pela produção de atividade humana propriamente dita, de enfrentamento de contextos cotidianos que possibilitem a transformação do ser "a atividade propriamente humana só se verifica quando os atos dirigidos a um objeto [nota nossa: ou a uma relação ou contexto de vida] para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal ou finalidade e terminam com um resultado ou produto efetivo real" VASQUEZ apud FRANCISCO (2005. p. 46), em função da natureza práxica do ser humano: "o homem é um ser que em suas relações necessita estar sempre encontrando novas soluções para as situações de vida que se apresentam" FRANCISCO (2005. p. 47) e assim ressignificar seu cotidiano e existência.
A produção de vida é alcançada na diversidade da existência do indivíduo e suas perspectivas de ascensão, superação ou mesmo adaptação para uma qualidade de vida em termos de automanutenção, inserção social e participação em papéis da vida diária. "Assim, lidar com o cotidiano é sempre intervenção que exige um lidar com a concretude do homem, esse movimento de múltiplas relações. O cotidiano não é rotina, não é a simples repetição mecânica de ações que levam a um fazer por fazer [nota nossa: fazer alienado ou mecanicista]. O cotidiano é o lugar onde buscamos exercer nossa atividade prática transformadora, é o social; é o contexto em que vivemos" FRANCISCO (2005. p.76).
Ressignificar o cotidiano, produzir a vida toda, são os pilares da ciência da ocupação humana da Terapia Ocupacional: "uma ciência que tem, como sujeito e objeto de seu conhecimento, o homem. Um homem que não é o homem natural, mas o homem que transforma a natureza em humanidade e que, também e principalmente, é um homem que faz, que ao fazer simboliza e se objetiva e, com isso, se torna ser de sua existência" CARVALHO (2005, p.26). E no seu ofício o profissional tem como desafio: "com base na leitura do cotidiano e seus contextos e da histórica ocupacional dos envolvidos é que o terapeuta ocupacional deverá encaminhar a ação. Dessa forma poderá auxiliar o sujeito, o grupo e a coletividade a compreender suas próprias necessidades e definir suas estratégias de lidar com os conflitos cotidianos, a ressignificar seu fazer e pensar sua ação no mundo, respeitando-se os diferentes momentos e possibilidades dos envolvidos. Será por meio da ação grupal e coletiva que poderá dar a manifestação das solidariedades e o fortalecimento da trama social" GALHEIGO (2005, p. 44).
Ressignificar a produção de suas vidas emana nos indivíduos uma necessidade vital de existir, de inscreverem-se singulares e potencializados pelo convívio salutar de inserção no grupo, ao qual se pode pertencer, fortalecer-se, emancipar-se. Nos dizeres de Guattari "os indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes". E o do cotidiano fazer uma fonte de ressignificação, atribuição de outros símbolos e apropriar-se de si mesmo numa dinâmica incessante de transformação do que se é ou se está, por vir-a-ser enfim.
Referências
CARVALHO, F. B. O Conceito de Símbolo em Cassirer, Freud e Ricoueur como Fundamento para a Terapia Ocupacional. In: PÁDUA, E. M. M. & MAGALHÃES, L. V. Terapia Ocupacional. Teoria e Prática. 3 ed. Campinas, SP: Papirus, 2005. p. 15-26.
FRANCISCO, B. R. Terapia Ocupacional. 2 ed. Campinas, SP: Papirus, 2001.
GALHEIGO, S. M. O Social: Idas e Vindas de um Campo de Ação em Terapia Ocupacional. In: PÁDUA, E. M. M. & MAGALHÃES, L. V. Terapia Ocupacional . Teoria e Prática. 3 ed Campinas, SP: Papirus, 2005. p. 15-26.