TEOLOGIA PROFUNDA EM MÚSICA DE GIL

Por João Valente | 24/10/2009 | Religião

Com sua humildade e descontração, Gilberto Gil talvez nem tenha percebido a profundidade da questão em que estava tocando, quando escreveu na última estrofe de sua música "Drão": "Os meninos são todos sãos/ Os pecados são todos meus / Deus sabe a minha confissão / Não há o que perdoar /Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão". São versos que expressam pungentemente uma das realidades mais fortes no coração de Deus, e um dos temas mais profundos da teologia cristã, ao qual poucos ou nenhum teólogo respondeu. Este autor só conheceu um, um único só, que chegou a tanto.

A verdade teológica oposta que torna o tema dificílimo é a seguinte: "Com sua maldade infernal, ele fez Jesus provar a morte, e morte de cruz". Gilberto Gil certamente não estava desatento, em sua poesia, para esquecer de crianças torturadas pelo nazismo ou mortas na frente de seus pais! Nunca!... O que viu Gil então para aludir ao coração infinito de Deus, a quem a rigor nenhum pecado chegaria de fato a ofender? (O argumento é: "Se o Sagrado Coração é infinito em bondade, amor e misericórdia, que mal poderia fazer o homem que representasse para Deus uma ofensa tão séria que implicasse em condenação? – Sobretudo condenação a uma pena eterna chamada inferno?"... Para o infinito coração, que perdoa 70x7 vezes, pensar que não há o que perdoar é muito mais lógico e nobre do que ficar colecionando magoazinhas vindas de gentinha – nos dois sentidos – como nós seres humanos).

De fato, para o infinito coração de perdão inesgotável, e sob qualquer hipótese investigada, não há mesmo o que perdoar, e é por isso que não há condenação (os teólogos hoje já são unânimes neste ponto). Porquanto é ponto pacífico e inegável que, se nossa análise for feita apenas pela ótica da misericórdia divina, ninguém jamais poderia ofender a Deus, pois diante do infinito ninguém significaria nada mais que um reles micróbio, absolutamente incapacitado de fazer qualquer coisa, seja boa ou ruim. Isto vale até para os anjos, pois até mesmo Lúcifer, diante da Onipotência, nada significa, mesmo quando ainda possuía luz em seu coração. Eis porque a Teologia já está de posse da convicção de que Deus não condena ninguém, e que são as almas – de anjos e de homens – que se auto-condenam. Entretanto, se precisamos de cuidado no trato desta questão, tudo leva a crer que o critério de Deus é outro, pois pelo menos em duas passagens Jesus revelou que uma só alma, ainda que enegrecida pelo pecado (como o filho pródigo), vale tanto para Deus que o Céu faz mais festa quando um reles se converte, do que por irmãos ou 'anjos' que nunca caíram (Lc 15,11-32). Na outra passagem, Jesus conta uma história que prova que uma alma tem um valor maior que o mundo inteiro, fato que O levou a perguntar: "Louco: hoje te pedirão a tua alma, e o que acumulaste para quem será?" (Lc 12,15-20).

Em Teologia Profunda, sabe-se que mesmo a cena descrita de "crianças torturadas pelo nazismo ou mortas na frente de seus pais" pode ser vista pela ótica de Deus, e o próprio Deus, em Sua Palavra, certa vez perguntou: "Que mal me poderá fazer o homem?". Como a morte não existe, e como aquilo que se chama "desencarne" não passa de uma experiência pascal indolor ("Não virá sobre vós nada que não possais suportar"), a única maneira de Deus "sofrer" com a tortura das crianças é pelo Seu lado Moral, ou Senso de Justiça, ou Seu Infinito Amor, e é aqui que se pode vislumbrar o oposto da poesia de Gil.

Falei que conheci apenas um autor que deu resposta à altura do tema, mas com um argumento muito mais complicador do que este de apenas pensar em "para o Coração de perdão infinito não há o que perdoar" (o nome do autor é C.S. Lewis, meu predileto). Vejamos o que ele disse: "Com sua maldade infernal, ele fez Jesus provar a morte, e morte de cruz". Nem caberá aqui tentar dizer que Jesus era adulto, enquanto uma criancinha experimenta uma dor muito maior que a da cruz! O segredo não está aí. É claro que a dor de uma criança é muito mais dilacerante do que as chicotadas ou a coroa de espinhos no corpo perfeito de um Deus, e pelas crianças Jesus de fato sofreu muito mais! Não há o que questionar aqui, exceto certo cheiro de ingratidão no ar. Entretanto escapa um dado que só a pessoa de um Deus-encarnado e surrado pode significar, e este dado está teologicamente muito além de onde poderia ir a dor de uma criança.

É que Deus é a bondade infinita, o Bem supremo. Isto significa que é a perfeição completa – com perdão do pleonasmo – e a perfeição completa não pode subsistir como perfeição quando permite a existência de um único mal, por mais insignificante que seja. Isto também significa que diante da bondade infinita, qualquer mínimo mal próximo enseja a contaminação perigosa de um fermento, e o Bem infinito sabe que só o bem é bom. Sabe que só a perfeição é incontaminável. Sabe que permitir algo menos bom é agir mal. É omitir-se. Sabe que um bem contaminado não é mais tão bom quanto deveria ser. Sabe que só a perfeição mantém a perfeição, e que esta é a única regra sem exceção. Logo, se alguma coisa operasse em favor de algo aquém da perfeição, este ineditismo da maldade poderia ser considerado o infinito-oposto, e isto, portanto, seria algo em si impensável. Logo, quem pensou o primeiro mal? E pior, por que Deus o permitiu?

Eis que a maldade imperdoável não é, portanto, a tortura de crianças ou a morte de seus pais. Mas alguém chegar a nutrir em seu coração algo tão perigoso quanto aquilo que poderá manchar a perfeição da bondade infinita, e executar qualquer coisa prática nesta direção. Seria "a ruptura da virgindade do Infinito Bem"... Ou o desejo de que a bondade perfeita não seja tão boa assim. Por que afinal alguém iria desejar uma cousa dessas? Como poderia haver qualquer coisa boa num coração em cujo íntimo se gestasse um desejo desses?... São essas as perguntas complicadoras e agravadoras da ofensa, sem jamais ofenderem o 'Inofendível'. Não é por qualquer ofensa que pudesse representar risco uma criatura ter um desejo desses, mas o fato de que o mínimo mal tolerado pode levar o mau a nunca perceber que possui o mal, e assim jamais endireitar-se, passando a nutrir certa simpatia pela maldade e com ela acostumar-se, caindo no vício que cresce com cada pensamento que lhe advoga direito de existir. Noutras palavras, todo mal é dinâmico como uma família de cupins, e se ninguém fizer nada para impedir seu crescimento, é exatamente isto que fará. Foi nesse sentido e pensando nesse risco que Jesus um dia perguntou aos fariseus: "O que vocês acham que é mais fácil: curar um paralítico ou dizer 'teus pecados estão perdoados'?"... (Mc 2,9). Veja que aqui a ofensa expressou-se num tom bem grave, e nos impõe a pergunta: "Que mal fizemos a Deus?". Certamente, homem algum sabe até onde chegou a sua maldade, e por isso ela pode ser muito pior do que jamais sonhou.

Mas o leitor se lembra de que Deus foi além de nossa capacidade de compreensão da Bondade Infinita. Ele permitiu a quebra da virgindade celestial! Admitiu criar um espaço onde corresse o risco de ver qualquer coisa de maldade existir, na irrevogabilidade do Livre-arbítrio. Terrível!... Mas o que Deus tinha em mente quando assim agiu? (Lembre que já existe consenso sobre o fato de Deus não condenar ninguém). É aqui que CS Lewis entra.

Deus julgou valer a pena correr o risco de permitir o surgimento daquele mínimo mal que viria a crescer como vício, em razão de que sua existência era a única coisa capaz de permitir ao Infinito Coração receber de alguém a reciprocidade do amor, sem a qual todo amor é insípido. Se o amor por nós devolvido não fosse em nós correspondido, i.e, se em nosso coração não amássemos a Deus com a liberdade de escolha, ou seja, com amor voluntário, então para que serviria o nosso amor? Quem afinal se conformaria de ser amado por quem estivesse obrigado a amar? E foi assim que a história se fez.

O leitor pergunta: "Então o Infinito sentiu falta de alguma coisa na Sua Plenitude Infinita, mesmo possuindo tudo?"... De fato, antes de criar a primeira criatura com Livre-arbítrio, Deus não possuía tudo... Aliás, possuía tudo menos um amor correspondido "por terceiros", porque amor mútuo em si mesmo Ele sempre teve nas 3 pessoas da Trindade. Com efeito, CS Lewis diz que, assim sendo, não há como pensar em qualquer coisa menor que um infinito milagre, o fato de o Infinito ser tão bom ao ponto de nos ter criado por desejar ser amado por criaturinhas tão ínfimas quanto nós!... Teria então julgado um risco menor ver uma dessas criaturinhas livremente recusá-LO, do que voltar ao seu Reino Eterno sem jamais receber de outrem um amor voluntário. É o Milagre de nos considerar importantes a ponto de nos criar para amá-LO, aceitando sofrer as conseqüências de uma decisão em contrário.

Cabe ao leitor decidir: Só uma ofensa infinita ofenderia o Infinito, e portanto está certo Gil quando diz que "não há o que perdoar". Ele perdoa 70x7 vezes. Mas estão certos C.S. Lewis e a Bíblia quando dizem que Ele não condena ninguém (Mt 12,37; Jo 3,17 e Rm 8,31-34), e que o Livre-arbítrio é a maior de todas as leis. Estão certos Lewis e a Bíblia quando afirmam que o menor mal ao lado do Bem geraria contaminação nas almas criadas que ainda não tivessem sentido qualquer inclinação de maldade. O Anjo Mal fez Deus provar a morte, e se o Crucificado era a Bondade infinita que desejava apenas ser amada com um amor recíproco e livre como o dEle mesmo, então uma maldade dessas poderá não ser condenada pelo Infinito Amor, mas não poderá estar com aqueles que O amam. Deve ir mesmo para onde ela deseja, livremente e até 'feliz', por assim dizer, para bem longe daquele Amor que ela não ama.

Prof. João Valente.