Teologia da Recompensa x Teologia da Gratuidade
Por NERI P. CARNEIRO | 02/09/2016 | BíbliaOs livros sapienciais nos desafiam a uma revisão de fé. Da mesma forma que o povo de Deus, ao longo de sua história foi desafiado a fazê-lo.
Se observarmos o livro de Jó veremos que essa é a sua essência. A fé tradicional havia produzido uma relação comercial com Deus. É o que se pode chamar de teologia da recompensa. Ou seja, as pessoas, evidentemente, agradeciam pelo que haviam recebido e eram gratos a Deus por isso. Mas nos momentos de dificuldades faziam um pacto com Deus a fim de superarem os problemas. Na medida em que superavam a dificuldade entendiam que Deus havia cumprido sua parte no acordo. Mas se não eram atendidos ficavam convencidos de que ainda estavam em dívida com Deus e, portanto, deviam oferecer mais sacrifícios até que Deus estivesse satisfeito.
Na visão dessa teologia, Deus retribui o bem com o bem e o mal com o mal. Aquele que se mantém na prática das virtudes e dos valores ensinados por Deus, são agraciados com mais graça; aqueles que, pelo contrário afastam-se da lei e dos ensinamentos, são punidos. Na apostila da Paróquia Nossa Senhora Aparecida e São Lourenço (já mencionada), podemos ler o seguinte, sobre a religião de retribuição:
Ao justo, Deus concede saúde, prosperidade e felicidade; ao injusto, ele castiga com desgraças e sofrimentos. Tal concepção arrisca produzir uma religião de comércio, onde o homem pensa poder assegurar a própria vida e até ditar normas para o próprio Deus. Contra isso, o autor mostra que a religião verdadeira é mistério de fé e graça: o homem se entrega livre e gratuitamente a Deus; e Deus mistério insondável, volta-se para o homem, gratuitamente, a fim de estabelecer com ele uma comunhão que o leva para a vida. (disponível em: http://www.paroquiasls.com.br/esc/Apostila-livros-sapienciais.pdf)
Em outras palavras, a sabedoria consiste em perceber a gratuidade do amor divino, não pelos méritos humanos, mas como puro dom de sua graça. Não é o homem que a merece a graça divina, mas é o próprio Deus que a concede a quem Ele escolhe. Esse, portanto, foi um amadurecimento teológico que atravessou os milênios para se inserir, no Antigo testamento, principalmente no livro de Jó, e depois manifestar-se na encarnação e redenção de Jesus Cristo. Ele, assim nos ensina Paulo (Fl 2,6-8):
existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano. E encontrado em aspecto humano, humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte – e morte de cruz.
Esse esvaziamento de Jesus realizou-se pela gratuidade divina. Além disso, as palavras de Cristo na sua agonia também evocam essa gratuidade. Humanamente pede para ser poupado do sofrimento, mas assume realizar a vontade do pai: “Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; contudo, não seja feita a minha vontade, mas a tua!” (Lc 22,42). Isso reforça a afirmação da gratuidade: a graça não é mérito humano, mas dom gratuito de Deus. Um Deus que se manifesta ao ser humano unicamente por iniciativa da gratuidade trinitária.