Tenho Pressa, Sinto Fome
Por Vania Maria Feitoza de Azevedo Silva | 17/03/2010 | CrônicasNossa geração foi transformada, em nome do progresso e do desenvolvimento, numa geração de corredores, de supostos atletas ingressos em uma maratona mal coordenada, a maioria sem preparo físico (por falta de tempo, de recursos ou de interesse) e sem saber exatamente aonde quer ou vai chegar. O que importa é correr, "correr atrás"; é preciso correr para chegar na frente do outro, a competição é o que importa, aliás é questão de sobrevivência.
Sempre senti vontade de correr. Já pensei em participar de algumas maratonas na cidade do Rio de Janeiro. Sentir o vento no rosto, correndo sob o sol e o céu neste cenário paradisíaco seria de uma satisfação inenarrável. Teria forças para alcançar a linha de chegada? Conseguiria obter alguma classificação? O importante seria participar, uma experiência agradável para quem sonha em correr...
"Correr ? deslocar-se rapidamente, andar em velocidade, ir depressa, acorrer, decorrer, passar; propalar-se; escorrer, escoar, rolar (um líquido); ter seguimento, continuar, transcorrer; passar de mão em mão; ter curso; ficar sob a responsabilidade de; percorrer, andar por, estar exposto ou sujeito a; afugentar; mover, fazer deslizar puxando; passar ligeiramente; examinar por alto (os olhos); compulsar."
Quando adolescente, vivendo as dificuldades de uma família pobre da periferia urbana, o que me incomodava e fazia sofrer muito não era a fome de pão. Ela era uma realidade sim, doía muito o estômago vazio, sentia fraqueza e desânimo quando só havia chá de capim limão no café, no almoço e no jantar. Mas o que doía na alma era a opressão, o abuso, o autoritarismo, a irresponsabilidade, a mentira, o orgulho e tudo o mais que produzia uma situação de apatia e estagnação e fazia com que o pão nunca chegasse. Nem por um lado e nem por outro. Mas isso não vinha do lado de fora da cerca que contornava o quintal da minha casa. Estava lá dentro, nas relações conturbadas da minha família. Família moralmente perfeita, com pai, mãe, filhos, todos presentes e unidos pela fome. E pelo medo. Violência doméstica, como hoje se diz. Nem sempre era marcada pela agressão física, mas produziu feridas através do silêncio de uns que fazia calar os berros amedrontadores do outro. Nesse tempo eu queria muito correr. Sem preparo e sem destino. Correr, correr e correr. Entretanto havia a fome. Uma fome diferente, que não era fome de pão.
A fome que não era de pão era alimentada por sonhos. Sonhos que não eram simples fantasias, delírios de um corpo faminto e enfraquecido. Eram hipóteses sobre a criação de alternativas para a conquista de outras realidades possíveis. Realidades, alternativas, hipóteses e sonhos que podia vislumbrar através de leituras, atitudes, relatos, exemplos, experiências... oportunidades oferecidas por todas as pessoas que, mesmo sem recursos especiais, conseguiram educar minha fome. E eu aprendi que educar a fome, se isso é possível, pode significar provocar mais fome. Aprendi que ter fome é condição essencial para que alguém se mantenha vivo.
Mas o assunto é correr, correr sem destino. Porque continuei sentindo vontade de correr mesmo depois de saciadas a fome de pão e a fome de paz. Crescemos, casamos, temos filhos, outros problemas surgem. Agora a fome não é mais de pão. Pode ser de atenção, de amigos, de sucesso, de reconhecimento. E nos momentos de crise pensei que seria melhor deixar tudo e buscar sabe-se lá o que ou aonde. Sair sem destino, "sem lenço e sem documento". Eis que a fome se "acendeu" e doeu mais que tudo em mim a necessidade de mostrar que era capaz de me tornar muito mais do que pensavam que eu fosse. Lancei-me à tarefa de construir uma vida melhor, diferente daquilo que era a expectativa não minha, mas dos que me viam apenas como mais uma mulher, esposa, mãe, dona de casa, futura avó, bisavó, coisas assim. Minha fome era muito grande para ficar confinada nesse mundo tão limitado e delimitado. Na verdade aquela fome do passado ainda estava sendo alimentada, mantida, sustentada.
Os estudos, nova profissão, o emprego (os empregos) foram os mecanismos que me permitiram alcançar novos objetivos. Corri muito, mas para um ponto de chegada possível, real, planejado. Isso não trouxe conseqüências negativas nem para mim e nem para os outros. Muito pelo contrário, provocou crescimento, mudança de paradigmas, expectativas diferentes das que eu tinha no passado e... mais fome.
Às vezes ainda sinto muita vontade de correr. Sonhos de recomeçar, deixar tudo o que já construí, todos os que (penso eu) já não dependem e não necessitam de mim. Construir em algum outro lugar uma outra história, resgatando alguns sonhos do passado. Penso que assim poderei dar aos que me cercam a chance de buscar e viver experiências diferentes. Talvez eles também sonhem com isso. Aliás, eu nunca perguntei. E eles também nunca me levaram a sério quando disse que queria fazer isso.
O filme Forrest Gump, o Contador de Histórias foi um marco em minha vida. Já o assisti muitas vezes e sempre me sensibilizo com a história de Forrest quando, para compensar um vazio em seu coração, correu por três anos e meio através dos Estados Unidos. Minha imaginação viaja por longos trechos da história e me sinto confrontada e confortada. Novamente a fome! Afinal o que é fome?
"Desejo de comer, apetite, penúria, escassez, falta de víveres, sofreguidão, avidez, desejo ardente, apetite insaciável."
É isso mesmo o que sinto: sofreguidão, avidez, desejo ardente de estar viva, de estar em atividade, de realizar, de aprender e fazer algo novo e bom! E que seja bom tanto para mim quanto para os outros. Preciso de novos instrumentos, de mecanismos para conseguir aquilo que penso que vai me saciar a fome (de agora). Então me lanço à corrida novamente. Existe uma direção, um novo rumo, um outro sentido ou apenas estou indo um pouco mais à frente? Não sei exatamente, mas tenho certeza de que estarei em um ponto aonde sentirei mais fome. Porque assim acontece em minhas "corridas" ? vejo, ouço, sinto, descubro sempre motivos para aguçá-la.
O sociólogo Betinho deixou como legado uma frase que se tornou slogan de projetos sociais: "Quem tem fome tem pressa." É lamentável que a frase seja utilizada apenas para promover campanhas contra a fome material, aquela que dói no estômago,que provoca fraqueza e desnutrição do corpo. Esta precisa ser aniquilada de fato. Mas tratar somente dela é apenas uma tentativa ilusória de resolver um dos grandes problemas da vida humana nos tempos atuais - a falta de dignidade. Eu aprendi que para viver com dignidade é preciso ter fome. Betinho sentia fome. A fome que fez com que se lançasse à corrida em busca de soluções altruístas para um dos maiores problemas do mundo globalizado, mesmo sabendo que sua existência iria se extinguir em um breve tempo. Era fome de agir, de fazer, de se permitir ser instrumento de realização, de construção de uma realidade sonhada, mas quase impossível. A fome que não é um vazio no estômago, mas no coração. A fome que faz correr. Porque quando conseguimos compreender o que ela significa, quase sempre já temos vivido o bastante para entender que é preciso ter pressa, uma vez que resta pouco tempo para o muito que se pode e precisa ser feito.
Tenho fome, tenho pressa!