Tendências da legislação e a atual postura no trato da vítima de uma infração penal
Por Thiago Amorim dos Reis Carvalho | 14/09/2009 | DireitoA Lei 11.690/08 trouxe uma tímida modificação ao Capítulo V, do Título VII, alojado no Livro I do Código de Processo Penal. De início, o segmento que antes era destinado às “Perguntas ao Ofendido” passou a ser simplesmente identificado como “Do Ofendido”. Manteve o novo Diploma apenas um artigo para tratar da matéria, contudo adicionou outros cinco parágrafos, conservando a redação do primitivo parágrafo único - agora sendo o primeiro da relação.
Conforme o § 2º do art. 201, do mencionado Código, é indispensável providenciar a comunicação ao ofendido “dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem”.
Tal preocupação com a figura do ofendido reflete a busca pelo resgate de seu tratamento como cidadão, portador de direitos e deveres tutelados pelo Estado na condição de único ente legitimado a dirimir conflitos sociais e que, portanto, não pode afastar-se daquele que suportou as consequências de uma infração penal.
O texto do Diploma Processual, por consistir em regra geral, deve ser observado em todos os procedimentos criminais, exceto se, porventura, outro diploma dispuser de forma diversa.
Ressalta-se que a determinação, na forma como se encontra redigida, está aparentemente restrita à seara judicial. Apesar de não enunciar ser da responsabilidade exclusiva do juiz a determinação de intimação da vítima quando do ingresso e saída do acusado da prisão etc., como ocorre com os §§ 5º e 6º do mesmo preceptivo ao fazerem alusão à figura do magistrado, resta claro que as notificações referir-se-ão a “atos processuais” atinentes à clausura do “acusado”, indicando tratar-se de atos a serem executados na órbita do Poder Judiciário.
Ora, não obstante constar no § 2º, do art. 201, do CPP, o vocábulo “acusado”, não seria conveniente realizar uma interpretação extensiva para abranger o “indiciado” ou “investigado”? Nesta hipótese, não poderia a autoridade policial ser responsável por providenciar a comunicação à vítima, caso ainda esteja na presidência da investigação?
Deveras, restringir a comunicação de atos, como o ingresso ou a saída do suposto autor do fato da prisão, somente à fase processual seria relegar a um segundo plano a importância e as consequências das providências advindas na fase preliminar do procedimento. Também na etapa inquisitorial merece total atenção a figura do ofendido, sendo de seu interesse ser informado sobre a clausura e soltura daquele a quem atribuiu a suposta autoria de um ilícito penal. Ademais, ao tomar atitudes como esta, o delegado de polícia demonstra a relevância do caso apresentado e a preocupação com a integridade da vítima, dando-lhe a atenção que qualquer cidadão gostaria de ter.
Evidentemente, é impossível propugnar pela mesma solução quanto à segunda parte do dispositivo, pois esta se refere a atos próprios do processo, vale dizer, “à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem”, portanto, claramente dirigida ao magistrado.
O novel dispositivo componente do vetusto Código de Processo Penal não se trata de uma inovação na legislação pátria. A Lei 11.340, de 22 de setembro de 2006, trouxe enunciado semelhante: “Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público.”
O preceito da legislação especial é mais abrangente que a disposição do Código de Processo Penal e também está voltado ao magistrado porque faz menção a “atos processuais”.
Portanto, infere-se que as previsões contidas no Código de Processo Penal (art. 201, § 2º) e na Lei 11.340/06 (art. 21) são aplicáveis na fase processual, contudo, nada obsta uma ampliação de seus dizeres para abranger a etapa inquisitorial da persecução penal naquilo que for possível. Com esta visão estreitar-se-á o vínculo entre a vítima e a Polícia Civil, possibilitando àquela um melhor acompanhamento dos atos e fases da investigação.
Infelizmente, dependerá da circunspecção da autoridade policial em posicionar-se de forma ativa no sentido de retribuir àquela pessoa que o procurou, em nome do Estado e como representante da instituição responsável pela segurança pública, com atos destinados a informá-la sobre as etapas e evolução do procedimento.
Como exemplo da atual preocupação com a pessoa da vítima tem-se a orientação firmada no parágrafo único, do art. 112, da Instrução Normativa 01/2009, do Conselho Superior da Polícia Civil do Estado de Goiás: “A autoridade policial encaminhará, sempre que possível, cópia do relatório do inquérito policial à vítima ou seus familiares (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão)”. Também o parágrafo único do art. 117 da mesma Instrução prevê: “Apesar do silêncio da Lei 9.099/95 sobre qualquer comunicação formal à vítima, esta deverá ser informada das providências adotadas pela autoridade policial, bem como da data da audiência preliminar, se for o caso, através de Nota de Ciência à Vítima”.
Nesse sentido, cita-se o - extinto - Projeto de Lei 4.418/2004, de autoria do deputado federal João Campos, cuja ementa enunciava: “Acrescenta parágrafo ao art. 10 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal - determinando que o Delegado de Polícia comunicará à vítima a remessa dos autos de inquérito policial ao juiz competente, bem como informará o prazo previsto para oferecimento da denúncia”.
Tal Projeto foi rejeitado pelo Senado Federal e um avanço nítido em matéria processual no tratamento da vítima deixou de ser concretizado, apesar de o texto não ter contemplado que o ofendido também deveria ser informado do prazo decadencial para oferecimento da queixa-crime quando se tratasse de ação penal privada(1).
Entretanto, como demonstração da importância do assunto, o Projeto de Reforma do Código de Processo Penal (PL 156/2009 – Senado Federal) não apenas traduz a orientação ora adotada mas reflete verdadeiro progresso ao estipular um extenso rol de direitos reconhecidos à vitima.
Pelo Projeto de Reforma, o Livro I do CPP passaria a tratar sobre a “persecução penal” e no seu Título V seriam previstos os “direitos da vítima”. O dispositivo inaugural traria o conceito de vítima nos seguintes termos:
“Art. 88. Considera-se “vítima” a pessoa que suporta os efeitos da ação criminosa, consumada ou tentada, dolosa ou culposa, vindo a sofrer, conforme a natureza e circunstâncias do crime, ameaças ou danos físicos, psicológicos, morais, patrimoniais ou quaisquer outras violações de seus direitos fundamentais.”
A enumeração dos direitos do ofendido seria tratada no artigo subsequente, do qual se destacam: o tratamento digno; a recuperação imediata de objetos subtraídos (salvo necessidade de exame pericial); a comunicação “da prisão ou soltura do suposto autor do crime”, “da conclusão do inquérito policial e do oferecimento da denúncia”, “do eventual arquivamento da investigação” e “da condenação ou absolvição do acusado”; “ser orientada quanto ao exercício oportuno do direito de representação, de ação penal subsidiária da pública, de ação civil por danos materiais e morais, da adesão civil à ação penal e da composição dos danos civis para efeito de extinção da punibilidade, nos casos previstos em lei” etc(2).
A atual insuficiência de enunciados legais não impede que seja dispensado (proporcionado) o tratamento adequado à vítima. O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos principais responsáveis por delimitar as ações do Estado no tocante aos cidadãos, sejam crianças, adolescentes, adultos, mulheres, homens, vítimas, testemunhas ou autores do fato.
A simples atitude de comunicar ao ofendido certas ocorrências do procedimento persecutório, mesmo que na fase investigativa do inquérito policial, demonstra o empenho para a solução do caso e ressalta o cuidado do Poder Público em prestar contas do que realiza.
Quiçá a reiteração de condutas como essa inveterará na consciência de cada operador a importância que representa para a segurança psicológica da vítima no sentido de amparar-lhe nas manifestações pelo resgate e manutenção de seus direitos. Ainda assim, espera-se que seja breve a atual escassez de normas.
Notas:
(1) Na Instrução Normativa 01/2009 do Conselho Superior da Polícia Civil de Goiás há menção específica no parágrafo único do art. 3º: “Nos crimes de natureza privada, a vítima e/ou seu representante legal será orientada do prazo que dispõe para formalizar sua pretensão em Juízo, devendo tal conhecimento ser devidamente registrado no seu Termo de Declarações”.
(2) É conveniente destacar na íntegra a redação do art. 89 e 90 do Projeto de Lei do Senado nº 156/2009:
Art. 89. São direitos assegurados à vítima, entre outros:
I – ser tratada com dignidade e respeito condizentes com a sua situação;
II – receber imediato atendimento médico e atenção psicossocial;
III – ser encaminhada para exame de corpo de delito quando tiver sofrido lesões corporais;
IV – reaver, no caso de crimes contra o patrimônio, os objetos e pertences pessoais que lhe foram subtraídos, ressalvados os casos em que a restituição não possa ser efetuada imediatamente em razão da necessidade de exame pericial;
V – ser comunicada:
a) da prisão ou soltura do suposto autor do crime;
b) da conclusão do inquérito policial e do oferecimento da denúncia;
c) do eventual arquivamento da investigação, para efeito do disposto no art. 38, §1º;
d) da condenação ou absolvição do acusado.
VI – obter cópias de peças do inquérito policial e do processo penal, salvo quando, justificadamente, devam permanecer em estrito sigilo;
VII – ser orientada quanto ao exercício oportuno do direito de representação, de ação penal subsidiária da pública, de ação civil por danos materiais e morais, da adesão civil à ação penal e da composição dos danos civis para efeito de extinção da punibilidade, nos casos previstos em lei;
VIII – prestar declarações em dia diverso do estipulado para a oitiva do suposto autor do crime ou aguardar em local separado até que o procedimento se inicie;
IX – ser ouvida antes de outras testemunhas, respeitada a ordem do art. 266.
X – peticionar às autoridades públicas a respeito do andamento e deslinde da investigação ou do processo;
XI – obter do autor do crime a reparação dos danos causados, assegurada a assistência de defensor público para essa finalidade;
XII – intervir no processo penal como assistente do Ministério Público ou como parte civil para o pleito indenizatório;
XIII – receber especial proteção do Estado quando, em razão de sua colaboração com a investigação ou processo penal, sofrer coação ou ameaça à sua integridade física, psicológica ou patrimonial, estendendo-se as medidas de proteção ao cônjuge ou companheiro, filhos, familiares e afins, se necessário for;
XIV – receber assistência financeira do Poder Público, nas hipóteses e condições específicas fixadas em lei;
XV – ser encaminhada a casas de abrigo ou programas de proteção da mulher em situação de violência doméstica e familiar;
XVI – obter, por meio de procedimentos simplificados, o valor do prêmio do seguro obrigatório por danos pessoais causados por veículos automotores.
§ 1º É dever de todos o respeito aos direitos previstos nesta Seção, especialmente dos órgãos de segurança pública, do Ministério Público, das autoridades judiciárias, dos órgãos governamentais competentes e dos serviços sociais e de saúde.
§ 2º As comunicações de que trata o inciso V deste artigo serão feitas por via postal ou endereço eletrônico cadastrado e ficarão a cargo da autoridade responsável pelo ato.
§ 3º As autoridades terão o cuidado de preservar o endereço e outros dados pessoais da vítima.
Art. 90. Os direitos previstos neste Título estendem-se, no que couber, aos familiares próximos ou representante legal, quando a vítima não puder exercê-los diretamente, respeitadas, quanto à capacidade processual e legitimação ativa, as regras atinentes à assistência e à parte civil.