TEMPOS DE MENINO

Por Eduardo Augusto Conde Cavalcante | 24/02/2014 | Crônicas

 TEMPOS DE MENINO

              Podia sentir-se novamente menino diante daquele cenário. Lá no alto a mesma imponência do Colégio Militar de Fortaleza; logo adiante a tradicional Igreja do Cristo Rei; a mesma velha pracinha e lá ao fundo o casarão de estilo rústico, onde elas moravam.

              Era ali, nos arredores daquela pracinha onde ele empreendia suas peraltices de menino traquino. Destacava-se, num grupinho formado por seis meninos, que disputavam os encantos de quatro garotinhas: duas irmãs gêmeas e duas outras que moravam nas imediações e costumeiramente, nos finais das tardes, freqüentavam a pracinha.

              Brincadeiras tantas eram somente artimanhas que usavam para conquistar as garotas. Ser um destemido nas disputas das brincadeiras, já era meio caminho percorrido para se aninhar envaidecido no coração das pequenas. Na realidade cada um já tinha a sua eleita, exceto dois colegas, os “patinhos feios”, que sempre “sobravam”, não caíam na graça das garotas.

              Foi ali pela primeira vez que ele, mesmo sem jeito, mirou-se nos galãs dos filmes da TV. Foi ali que teve de preservar sua honra e ser um valente ao presenciar um colega, um dos solitários, a “tirar gracinhas” com uma das gêmeas, o seu par. Com jeito de mocinho metido a galã, cerrou os punhos, cravou os dentes e acertou-lhe um tapa no rosto. Acredito que para essa tomada de atitude tenha ele pedido ajuda à Providência Divina afinal, seu rival era dono de um corpo avantajado e ele sabia que levaria a pior, caso o colega revidasse, mas não poderia deixar por menos aquela ousadia.

              O colega revidou. Resultado: foi atingido com um soco violento no olho direito, além de algumas escoriações pelo corpo. Dia seguinte sentia dificuldades de lembrar o desfecho de tudo, só recordava que foi proibido por sua mãe de sair de casa por vários dias. Não ousava desafiar a determinação da mãe, embora tantas vezes tivesse pensado em saltar o muro da desobediência, correr lá para a pracinha e sentir-se um guerreiro nos braços dela.

              - Como você está? Espero que bem...tô morrendo de saudades!

              Bilhetinho ousado que ela mandara-lhe através de um dos colegas, motivo suficiente para que ele renascesse das cinzas e se sentisse um gigante, um herói cheio de moral.

              - Me espera amanhã, lá no banquinho da praça, às 17h.

              Elevou o pensamento aos céus e pediu desculpas a Deus por aquele ato de desobediência à mãe.

              Ela estava lá, sozinha, vestida ainda com o uniforme do colégio. Acomodou seus livros no banquinho e preparou-lhe um abraço apertado, enlaçando-o pela cintura como a querer certificar-se de que era ele mesmo em pessoa.

              Um sinalzinho no canto esquerdo da sua boca era o único detalhe que o ajudava a distingui-la da irmã gêmea. Ele gostava daquele sinalzinho que se mostrava mais visível quando ela sorria, e mesmo sendo um tímido irreparável, sempre ensaiava alguns gracejos só para vê-la sorrir ou rir um riso farto.

              - Seu olho está feio, hein! Dói muito? Perguntou franzindo o rosto.

              - Não, isso passa logo.

              - Sabe, apesar de tudo senti orgulho de você, meu... Heróizão. Acariciou seu rosto e surpreendeu-lhe com um beijo escandaloso do qual até então ela jamais havia ousado.

              As irritantes badaladas do sino da igreja a conclamarem os fiéis para a missa das 18h puseram fim aquele momento que os envolvia. Num lance repentino ela fixou o olhar no imenso relógio da igreja e disse num só fôlego: - Ah meu Deus, já está escurecendo e esse é o caminho que meu pai faz quando sai do Colégio Militar para ir pra casa.

              O velho era oficial do exército, lotado no Colégio Militar de Fortaleza.

              Ele a acompanhou até as imediações de sua casa, mas ela mostrava-se diferente da menina falante e sapeca que sempre se destacava nas brincadeiras.

              - O que você tem?

              Ela nada respondeu, apenas abriu o caderno, retirou um envelope amarelo e o entregou.

              - Leia-o quando chegar em casa - ressaltou -, enquanto procurava dar um jeito nos cabelos assanhados pela ação dos ventos fortes.

              - Tá bom, respondeu.

              - Não posso mais ficar..., logo mais meu pai desponta naquela esquina. Caminhou uns três ou quatro passos, voltou, olhou nos olhos dele e apressou os passos. Acenou de longe enquanto gesticulava como a querer dizer algo que ele fingia entender. Adentrou no casarão.

              Antes de chegar em casa ele resolveu conhecer aquele segredo. Estava lá uma foto sua, no verso o seu nome e o dele, uma declaração de amor e um pedido: não sei se devo te contar, mas aconteça o que acontecer, nunca esqueça que eu te amo muito. Espero que você guarde essa foto para sempre. Da sua menina...

              Aquilo tudo encheu-lhe de satisfação, mas imaginava que havia qualquer coisa de errado. Pensamentos tantos infestaram sua cabeça, dentre eles a sensação de que havia perdido-a para o colega rival.

              Dia seguinte, domingo. Não iam à pracinha, mas ele sabia que ela, a irmã e seus pais religiosamente assistiam à missa das 17h. O que lhe restava era tentar encontrá-la ali, no meio dos fiéis. Aprontou-se rápido, elevou o pensamento aos céus e novamente pediu desculpas a Deus, prometendo que aquela seria a última vez em que desobedeceria a sua mãe. Ficou “plantado” na porta da igreja. Ela o olhou com um par de olhos assustados, mas entendeu o sinal para que fosse até ao banquinho amarelo da pracinha. Em pouco tempo ela estava lá, assustada, com os olhos arregalados.                    

              - Você é louco! Já imaginou se meu pai pelo menos desconfia que estou aqui!

              - Ah é? Então o que significa isso que você escreveu? Você quer ficar com aquele brutamonte do meu colega, não é mesmo?

              Olhava-o surpresa, mas envaidecida com as cenas explícitas de exagerados ciúmes, atitude que não era muito compatível com seu comportamento.

              - Não..., nada disso, seu tolo! Não sei de onde você tirou essa idéia. Eu hein! Sabe, você é um grosso! Não quero te ver nunca mais! Nunca mais mesmo, entendeu? Correu de encontro à igreja. Sua irmã, lá da porta da igreja havia dado-lhe o sinal, estratégia combinada para quando seus pais sentissem sua falta.

              Ele voltou para casa levando na cabeça mil e uma indagações. Às vezes torcia para que o amanhã chegasse logo, tentaria reencontrá-la; às vezes pedia que nunca chegasse, para nunca mais encontrá-la. O amanhã chegou. Demorou uma eternidade, mas chegou e com essa chegada foi embora a sua vontade de ir à pracinha. Queria ficar só, longe daquilo tudo: dos amigos, das brincadeiras, dela principalmente. Preferiu ir ao ginásio de esportes do colégio onde ele estudava. Gostava de ficar só, lá no alto das arquibancadas sempre quando se sentia magoado. Ela sabia desse seu refúgio.

              Avistou-o ao longe, logo que chegou ao portão principal do ginásio. Caminhou em sua direção, subiu alguns degraus, sentou-se ao seu lado, permaneceu calada por alguns segundos e quebrou o silencio com um “Oi” sem graça.

              - Posso falar com você? Perguntou como se quisesse dizer que tinha contas a lhe prestar.

              - Pode sim.

              - Desculpa por ter sido indelicada com você. Ando nervosa. Ontem ouvi meu pai conversando com minha mãe. Ele vai ser é..., como se fala mesmo? Ah, sim, vai ser transferido para o quartel militar do exército em Salvador. Vai ter que passar dois anos por lá, depois volta para Fortaleza.

              - Eu não vou, não quero ir! Enfatizou essa frase mil vezes. Fez promessas, juras e planos audaciosos demais para a cabeça de uma menina de apenas 15 anos de idade que procurava apoio num fedelho de 16. Ele não ousaria colocar em prática nem metade dos seus planos.

              Trocaram cartas, juras, promessas. Encontraram-se algumas vezes nos períodos de férias, em Fortaleza, mas não houve jeito, perderam-se. Ele não imaginava que em breve também haveria de alçar voos para outras terras e talvez jamais retornaria a vê-la. Aquele pedaço de chão, as lembranças, sua infância e adolescência definitivamente haveriam de ficar atrelados ao passado.

              O tempo seguiu e após longos anos que mais pareciam séculos, lá estava ele novamente de volta à sua cidade. Estava ali, frente a frente com nesgas desse seu passado que jamais poderia ser modificado. Diante de seus olhos estavam lá: a mesma imponência do Colégio Militar de Fortaleza; a mesma igreja do Cristo Rei; a mesma pracinha, o mesmo casarão rústico.

              - Por gentileza, o Sr Cláudio Zinotto Shutz, ainda reside nesta casa? Perguntou ao gentil vizinho.

              - O coronel? Não, esteve fora, lá pras bandas da Bahia, pouco tempo veio a falecer. A família retornou à Fortaleza. Quem mora nessa casa é a viúva e uma filha solteira.

              O portão imenso do casarão se abriu. Discretamente ele olhou para a pessoa que segurava o braço de uma criança. O sinalzinho estava lá no lado esquerdo da boca daquela jovem senhora esbelta e elegante. Ele disfarçou, apressou os passos e ouviu quando a criança falou: - tia, eu quero ir ao shopping, eu quero ir brincar no Iguatemi.

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