Telenovela, família e crime

Por Ivã Antonio | 21/01/2016 | Direito

Telenovela, família e crime

Ivã Antonio dos Santos Jesus[1]

 

 

Resumo

Este artigo objetiva estudar a temática das novelas exibidas pela Rede Globo de Televisão, notadamente as novelas do horário “das nove”, provando que sempre adotam em suas tramas as desarmonias e tragédias ocorridas no ambiente familiar, num claro processo de banalização de situações excepcionais que, por força da reiteração, tendem a ser assimiladas como normais pelo público-alvo. Considerando ser a família a célula mater da sociedade, que primeiro se relaciona com o indivíduo no sentido de conscientizá-lo e formá-lo para o convívio social, o artigo discute até que ponto pode tal influência desarmonizar o lar e, consequentemente, propiciar o desvirtuamento de indivíduos, intensificando a probabilidade de cometimento de delitos.

Palavras-chave: família, mídia, telenovela e criminalidade.

Abstract

This paper aims to study the subject of novels displayed by Globo TV, notably the novels of the time "nine", proving that in his plots always adopt the inharmonies and tragedies in the family, a clear process of trivialization of exceptional situations that By virtue of repetition, tend to be treated as normal by the audience. Considering that the family mother cell of society, the first relates to the individual to educate him and train him to socialize, the article discusses to what extent can such influence disharmonize home and thus provide the distortion of individuals, increasing the likelihood of committing crimes.

Keywords: family, media, soap operas and crime.

Introdução

As telenovelas brasileiras, notadamente as exibidas pela Rede Globo de Televisão, mesmo com a audiência mitigada pelas novas mídias disponíveis, a exemplo da TV por assinatura, Internet e até mesmo os jogos eletrônicos, continuam alcançando fortemente os lares brasileiros, prendendo a atenção de grande parte das famílias.

Chama a atenção, na temática das telenovelas, detalhes que parecem invisíveis ao promedio populacional, como as tragédias familiares materializadas por fatos que, em famílias “reais”, significariam seríssimos problemas, hábeis a ferir o equilíbrio que aquele núcleo necessita para contribuir, junto com os demais entes, na preparação dos indivíduos para um convívio social sadio e harmonioso.

Este artigo visa demonstrar, através da análise de telenovelas, com recorte naquelas exibidas pela Rede Globo no horário das nove, do ano 2000 aos dias atuais, que efetivamente há uma espécie de banalização de tragédias familiares, fruto da reiteração de condutas possíveis, porém excepcionais, não contumazes na maioria das famílias brasileiras.

Considerando ser a família um núcleo básico de estruturação e organização social, alicerce para a adequada edificação do ser humano, até que ponto as tragédias familiares exibidas nas telenovelas podem influenciar na desorganização do núcleo familiar e consequente incremento de criminalidade?

Este artigo é uma provocação, no sentido de estabelecer discussões mais aprofundadas a respeito do assunto. Ressalte-se, no entanto, a escassez em matéria de literatura sobre o tema, pois há muitos estudos sobre a influência da mídia ou da família no fenômeno criminal, mas nenhum foi encontrado acerca da relação telenovela-família-crime ou mesmo do predomínio das tragédias familiares no centro das atenções.

Historicamente, os meios de comunicação de massa alcançaram praticamente todos os lares, e exercem influência intensa no modo de vida e mesmo no modo de pensar de crianças e adultos. O poder da mídia é evidente em qualquer sociedade. Ela influencia a todo o público-alvo, indistintamente e em graus variados. É certo, no entanto, que o poder de influência é ainda maior junto à infância e à adolescência, pois são fases da vida em que se evidenciam maior instabilidade e insegurança. Destarte, essas fases são ainda mais susceptíveis à força das mensagens.

Dentre os mais diversos meios de comunicação, a televisão continua tendo na atualidade especial destaque, por ser o mais sugestivo e interessante em todas as faixas de idade.

Baccega (2000), assim se refere à mídia:

Hoje essa realidade é atravessada pela presença dos meios de comunicação. A condição de educar é própria da natureza desses meios, cada vez mais desenvolvidos tecnologicamente, o que lhes permite estar em muitos espaços ao mesmo tempo. Eles ocupam lugar privilegiado no processo educacional, ao lado da escola, da família e de outras agencias de socialização. Mostram às pessoas os fatos já editados, redesenhados, como se fossem a realidade.

A mídia pode afetar o comportamento e atitudes dos espectadores, principalmente as crianças, portanto cada vez mais aumenta a preocupação sobre o conteúdo televisivo, visto que o espaço destinado ao contato real, à interação entre as pessoas, tem diminuído, fruto de uma série de transformações estruturais e culturais na sociedade.

As crianças tendem a imitar tudo o que veem. Atos de agressão nos mais diversos níveis tendem a ser reproduzidos. Será apenas culpa dos pais que não observam os avisos de idade recomendada para os programas específicos? Mas mesmo respeitando a faixa de idade recomendada, qual a influência de aspectos que signifiquem banalização de tragédias familiares pode significar para toda uma família?

 

Importância da Família para a Sociedade

A família é a célula mater da sociedade. É a ela que compete o primeiro contato com o ser, alimentá-lo, estruturá-lo, prepará-lo e formá-lo para o convívio social. Certos da importância fundamental da família, cumpre destacar a obrigação que os demais entes atuantes na formação do indivíduo - a exemplo do Estado e da mídia -, tem de preservar e fortalecer na sociedade este senso de pertencimento, participação e união familiar.

Este artigo não se dispõe a afirmar ser a família a única causa dos fenômenos criminais, pois certamente não o é. O crime é fruto das mais diversas variáveis, envolto em natural complexidade a exigir estudos aprofundados nas mais diversas áreas científicas. Mas é certo que a família tem papel preponderante principalmente na prevenção das ocorrências criminais, pois uma personalidade bem formada, fruto de uma adequada atenção e acompanhamento, diminui consideravelmente a probabilidade de gerar indivíduos delinquentes.

A formação da consciência e cidadania individual é fator preponderante para uma sadia organização social, visto ser da família que o indivíduo se origina e para a sociedade a quem ele converge. De acordo com a qualidade do ser que compõe a sociedade é que se pode estabelecer probabilidades reais de convivência e estruturação social melhor, rumo a uma sociedade verdadeiramente cidadã.

A família é quem fornece ao indivíduo suas primeiras raízes, que devem ser plantadas com qualidade, com atenção, a fim de que o caule seja espesso, firme e resistente. O ambiente familiar, em contrapartida, pode representar, quando mal estruturado, um processo de intensa deformação, dificultando sobremaneira que as demais instituições sociais promovam a socialização do indivíduo com conduta desviada dos padrões comportamentais exigidos.

Não se pode esquecer, ainda, que mesmo sendo as raízes firmes, pode o indivíduo vir a ser abalado estruturalmente quando os ataques externos são muito gravosos, hábeis a transformar o curso de sua vida.

A análise da complexidade do potencial de desenvolvimento humano é tarefa de alcance racionalmente impossível, por mais que se avancem os estudos, pois incessantemente o indivíduo vai se construindo, misturando seu potencial inato às interferências de sua família e do meio social em que vive, muitas vezes se ferindo e se reconstruindo face aos acontecimentos que lhe atingem, de forma única, pessoal e irrepetível. Indivíduo e família fazem parte de um mundo dinâmico, forçados a interagir e se modificar de acordo com as relações sociais, culturais, econômicas e espirituais que estabelecem.

Segundo Titus (1964), “uma análise dos estudos feitos por vários investigadores indica que o lar é de importância crucial no desenvolvimento do indivíduo”. Deve-se reconhecer que a formação do caráter e personalidade do ser não é fruto gerado em função exclusivamente da família. A psicologia prova que acima de enfatizar valores o mais importante é identificar como o ser percebe e interpreta a partir de suas convicções e motivações pessoais, determinado ao final um resultado em forma de interagir socialmente. Apenas quando ele percebe sua participação ativa em sua própria vida e nas dos demais seres humanos que convivem em seu meio é que se julgará responsável pelos seus atos.

Schoemaker (1996) destaca os trabalhos de Glueck & Glueck (1950), Rosen & Neilson (1978) e Wells & Rankin de (1991), sobre a importância da família no encaminhamento dos jovens ao crime:

1) a maior parte dos infratores provinha de lares desfeitos; 2) a probabilidade de se encontrar delinquentes em famílias desagregadas é três vezes maior do que em lares onde existam os pais presentes; 3) a associação mais forte entre delinquência e estrutura familiar se dá entre populações de jovens que foram colocados em instituições ou que estão sujeitos a programas de tratamento por ordem judicial.

Para Werner (1990), a desagregação familiar pode causar problemas psicológicos que levem à delinquência, causados pela falta de atenção e de afetividade, conflitos acerca de questões sexuais ou violência.

Moura (1991) explica que a edificação de um lar equilibrado e saudável não depende apenas da presença física dos pais, mas sim do que define como “presença psicológica”, materializada na real presença e participação, que só se dá com disponibilidade para ouvir, aconselhar e orientar. Com a ausência dos pais pelos mais diversos motivos, a exemplo do trabalho, as influências externas recrudescem, dentre as quais pode ser destacada a mídia.

Diversos estudos têm evidenciado que a estrutura familiar é um aspecto relativamente importante para o encaminhamento do jovem ou não à delinquência. Werner (1993) e Schoemaker (1996) indicavam que a separação do casal, por exemplo, podia criar situações que influenciavam na produção da delinquência, uma vez que as mães que criam seus filhos sozinhas eram forçadas a trabalhar fora a fim de sustentar a casa, tendo menos tempo para vigiar a prole e exercer controle sobre seu comportamento. Na atualidade, isto é ainda mais grave, pois a figura da mãe doméstica está em franca decadência, face à necessidade dos pais estudarem e trabalharem em prol de desenvolvimento pessoal e familiar, reservando a educação dos filhos às escolas integrais, às babás ou aos demais familiares, variando de acordo com o nível econômico da família.

Elsen (1994) assim define família saudável:

É aquela que se auto-estima positivamente, seus membros convivem e se percebem mutuamente como família. Sua estrutura e organização permite definir objetivos e prover os meios para o crescimento, desenvolvimento, saúde e bem-estar de seus membros. Está unida por laços de afetividade exteriorizados por amor e carinho, tem liberdade de expor sentimentos e dúvidas, compartilha crenças, valores e conhecimentos. Aceita a individualidade de seus membros, possui capacidade de conhecer e usufruir de seus direitos, enfrenta crises, conflitos e contradições, possui abertura para pedir e oferecer apoio mútuo. Sua atuação no ambiente em que vive é consciente, interage dinamicamente com outras pessoas e com outras famílias, em diversos níveis de aproximação, influenciando e sendo influenciada.

Existe interdependência entre família e sociedade, cabendo à sociedade propiciar os meios necessários a que a família subsidie seus integrantes à satisfação de suas necessidades. Daí a necessidade de estimular o fortalecimento do sentido de família. Quando numa telenovela a família se apresenta tão intensamente afetada, adoecida ou destruída, até que ponto isto estaria servindo para o fortalecimento do lar? Ou o efeito é justamente o contrário, mostrando tragédias familiares com aparente naturalidade e, por conseguinte, servindo como severo ataque à harmonia familiar?

Tragédias familiares nas telenovelas

Jeudy (1996) explica que “o princípio da mídia é construir um efeito de fascinação e ao mesmo tempo reproduzir um efeito de contaminação das imagens em nível infinito”. Ele chama isso de “desrealização” do mundo, que é provocada pela mídia, em que o efeito vertiginoso das imagens impossibilita o público-alvo de distinguir a imagem do real.

Na década de 80, com a abertura do regime político e o fim da censura, temas que antes eram tabus ganharam maior visibilidade. Um dos grandes destaques foi a telenovela Roque Santeiro, que havia tido sua exibição proibida em 1975, vindo a acontecer em 1985. Temas como família e suas conturbações internas, bem como mulher, passaram a ser discutidos com maior liberdade no que concerne a relações amorosas e sexuais.

A traição conjugal, a exemplo, continua sendo conduta reprovável na sociedade brasileira, sob enfoque moral, já que há um privilégio da monogamia e um acordo matrimonial de fidelidade. Nas telenovelas, no entanto, temas assim recebem a roupagem de músicas festivas e alegres, além de um pano de fundo que atenua e dá leveza à prática, principalmente com humor e ironia. É naquele momento que o telespectador que ri assume um lugar de terceira pessoa, numa visão de fora dos acontecimentos, mas sem perceber a massificação daquela ideia como trivial em seu ser e nas dos demais componentes do núcleo familiar.

O foco das novelas tratadas no recorte deste artigo são as relações familiares. Elas se concentram nos altos e baixos das relações internas nas famílias. O mundo externo é quase sempre uma ameaça à ordem familiar, que antes do possível “final feliz” deve lutar para resistir aos ataques de fora, que põem em risco a sua ordem.

As atuais novelas, já modificando o costume de bons finais nas tramas, talvez com objetivo de se tornam menos previsíveis e com isso desinteressantes, começam apresentar cada vez mais finais felizes para aqueles que representam os vilões das histórias.

Nas telenovelas, crises e tragédias familiares se sucedem tão velozmente que dificilmente podem ser comparadas à vida cotidiana, respeitadas as exceções representadas por famílias em nível intenso de desestruturação. Nas telenovelas, no entanto, a intensidade de crises é “naturalizada”.

Telenovelas parecem não poder prosperar sem a ocorrência de assassinatos motivados por disputas por poder no seio familiar, batalhas jurídicas ou relações extraconjugais. O exagero nas histórias parece ser fruto de constatação dos meios midiáticos de que este tema prende a atenção do público, principalmente por refletir crises possíveis no seio familiar de quem assiste. Será que o público brasileiro tem atração por programas que denotem desestruturação familiar? Será esta uma preferência das audiências? Será que o público-alvo das telenovelas da rede Globo de Televisão prefere ver pessoas ligadas por laços de amor ou sangue em conflito?

Este artigo não caminha no sentido de responder tal questionamento, que certamente carece de estudos mais avançados sob enfoques no mínimo históricos, sociológicos e psicológicos e até mesmo de estudo das audiências das novelas da Rede Globo de Televisão em outros tantos países em que são exibidas.

Nas telenovelas, personagens vivem as mais diversas calamidades como se fossem eventos normais do cotidiano. O problema desta prática reiterada é que a miséria humana acaba sendo recepcionada de forma empática. As dores emocionais ou psíquicas dão uma ideia de só interessar serem expressas de forma super dramatizada em sua narrativa. Ang (1985) define isso como “tormentas da vida”, e explica que tais tormentas são reconhecidas pelas audiências, que as empregam como parâmetro de comparação entre o exibido na telenovela e o dia-a-dia.

Na vida real, será difícil viver a intensidade e as consequências do que é exibido nas telenovelas acerca dos conflitos familiares, o que não significa que os enredos traduzam situações irreais. As situações são plenamente realizáveis e identificáveis na sociedade. O problema é que certamente não representam uma regra, e sim exceções. E como são recepcionadas as exceções quando banalizadas e reiteradas intensamente? Até que ponto a televisão se utiliza de estruturas que legitimam e banalizam a violência? Esta é uma discussão sem unanimidade, que encontra as mais diversas teses. Reforce-se isso ao fato de grande parte da população brasileira ter na televisão o único meio de informação e entretenimento.

Porém, televisão é mais que entretenimento, pois a representação que ela faz do mundo real produz efeitos no telespectador, que efetivamente é socializado e educado também por via deste mecanismo. Em certos públicos, será inevitável uma influenciação ainda maior, face às diferentes formas de consumo deste discurso.

Arbex Júnior (2001) indica que a telenovela invoca a realidade utilizando-se de dramas fantasiosos, mas o sentimento e as lágrimas dos telespectadores são reais. O ser projeta ali os seus anseios e frustrações, aquilo que sente em seu viver real. Conforme a formação e consciência crítica de quem assiste, os resultados são distintos.

É claro o poder da telenovela de atrair o público ao ambiente por ela configurado, fazendo com que este ambiente se pareça com o seu.

De 2000 aos dias atuais, a Rede Globo de Televisão exibiu dezessete telenovelas no horário atualmente intitulado como “das nove”. Deste recorte, foram extraídos do enredo fatos que denotam desestruturação, crises ou tragédias familiares, tendo como fonte a Wikipedia e alguns outros websites referenciados, conforme se pode constatar a seguir:

Telenovela Laços de Família (2000-2001) – Há traições conjugais, separações, desestruturação familiar e uma filha de se apaixona pelo namorado de sua mãe. A mãe se afasta para que seu namorado fique com a filha. Há também o nascimento de um filho cujos pais são primos, em torno de toda uma trama relativa a doação de órgãos.

Telenovela Porto dos Milagres (2001) – Um filho vende ilegalmente as terras do próprio pai, que haviam sido deixadas em herança pra o seu irmão. Tempos mais tarde, este irmão é vítima de envenenamento pela cunhada, a fim de que o outro irmão, seu marido, assumisse o poder que ele detinha. Descobrindo que o irmão assassinado tinha um herdeiro, a cunhada assassina manda o seu capataz matar a mãe da criança e o bebê, que não morre por interseção de forças sobrenaturais. Há, ainda, na história, o amor proibido entre cunhados.

Telenovela O Clone (2001-2002) – Traições conjugais, desentendimentos graves entre pais e filhos, sofrimentos e maus-tratos na relação conjugal, além de personagens que tendem a “enfernizar” as relações internas familiares. Há, inda, o abandono pela família de uma jovem dependente química.

Telenovela Esperança (2002-2003) – Há um pai que não aceita o relacionamento da filha com um rapaz pobre. Um jovem italiano decide viver no Brasil, e fruto da contrariedade do seu pai, a relação entre ambos é abalada. A namorada é impedida de viajar com ele ao Brasil e logo depois de sua viagem, sem que ele saiba, obrigada a se casar com um terceiro, com quem tem um filho. No Brasil, sem saber de sua namorada, o italiano tem relação com uma mulher brasileira, num conflituoso romance. Há, ainda, traições conjugais, a exemplo da descoberta de que um dos personagens da novela, homem casado, manteve relações sexuais com uma escrava, resultando em um filho.

Telenovela Mulheres Apaixonadas (2003) – Infelicidades conjugais em diversos casais, um dos quais com crise de ciúmes e consequente agressão física a facadas. Traições conjugais há em diversos casos na telenovela. Merece destaque um casal de idosos que reiteradamente são terrivelmente maltratados pela neta, que só consegue enxergá-los como um peso. A neta tem costume de furtar dinheiro dos avós para satisfazer os seus caprichos. Por sua insensibilidade, a neta chega a levar uma surra de cinto do pai. O problema só se resolve no final, quando o casal de idosos sai de casa e vai para o Retiro dos Artistas, uma espécie de asilo. Há, ainda, a história de uma mulher que é de forma selvagem e brutal agredida fisicamente repetidas vezes pelo marido, que para isso usa uma raquete de tênis, culminando ao final com as mortes deste marido e de um jovem com quem a esposa se relacionou.

Telenovela Celebridade (2003-2004) – Rivalidade entre duas supostas amigas, situação que em verdade oculta uma relação de ódio que uma delas nutre pela outra. Há ainda distúrbios em relações conjugais, a exemplo de uma mulher que não mede consequências quando em risco de perder o marido. Traições conjugais e cenas de violência física entre as rivais que antes eram amigas também são destacados na trama. Há, ainda, um jovem solitário que sofre com a rejeição da mãe após a morte de um outro filho, pois em verdade este jovem discriminado foi fruto de relação extraconjugal de sua mãe.

Telenovela Senhora do Destino (2004-2005) – Uma prostituta com quem um homem casado se relaciona e que já era estéril por vários abortos sucessivos inventa estar grávida com o objetivo de fazer este homem se separar da esposa, rapta uma criança e finge que a pariu, se cortando com uma tesoura para provocar uma hemorragia. Um dos filhos de outra personagem da história se torna político ambicioso, aproveitando-se da popularidade da mãe. Na história deste filho, traições e acusações de infidelidade conjugal sabidamente falsas contra sua esposa. Há ainda pai e filho inimigos, cuja relação só se reconstrói com doação de sangue feita por este pai ao filho em estado grave de saúde. Um dos filhos maus chega a promover a prisão de sua mãe, o falso sequestro do próprio filho e assassinatos. Há também nesta telenovela a figura de “pai de aluguel” e a história de uma mulher casada, dependente química, que é vítima constante de violência física por parte do marido marginal.

Telenovela América (2005) – A personagem principal vai ilegalmente aos Estados Unidos em busca de uma vida melhor. Ela já era apaixonada por um jovem que vive no Brasil, mas nos EUA ela faz acordo para casamento com um homem americano, visando obter o green card e ele escrever um livro com a história de vida dela. Após o acordo de negócios, já casados, os dois passam a se gostar e se relacionar de verdade. Isto não impediu que a personagem traísse contumazmente o seu marido com o antigo namorado brasileiro. Há, ainda, na história uma ninfomaníaca sensual que se apresenta a todos como crente, virgem e serva de Deus.

Telenovela Belíssima (2005-2006) – Uma avó é a perversa vilã da história, e tenta influenciar e controlar as vidas de suas netas, principalmente após a morte da mãe delas. Há também um homem diabólico que, junto com seu pai, um ex-matador de aluguel, planejam tomar o poder da empresa que é objeto de cobiça na trama. A telenovela traz ainda traições conjugais, uma mulher que está no quinto casamento e possui diversos filhos com cada marido e o abandono de um filho menor fruto de relação extraconjugal. No último capítulo, a vilã sequestra a própria bisneta.

Telenovela Páginas da Vida (2006-2007) – A história se inicia com uma gravidez de gêmeos em que o pai das crianças abandona a namorada ainda grávida no exterior. Voltando ao Brasil, a grávida é rejeitada pela própria mãe, que passa a agredi-la fisicamente e a humilhá-la. A grávida morre atropelada por um veículo, mas nascem os bebês, uma das quais com síndrome de down. A avó rejeita a criança, por entender ser uma “doente mental”. Prefere dizer a todos que a menina morreu, providenciando até uma sepultura. Secretamente, a médica que fez o parto decide criá-la como se fosse sua própria filha. A avó chega a tentar negociar o filho com o pai biológico, para que aquele assumisse a guarda. Há ainda traições conjugais, distúrbios na relação entre irmãos, união de pessoas por interesse econômico, violência por arma de fogo e separações.

Telenovela Paraíso Tropical (2007) – Traição conjugal contumaz, separações, duas irmãs gêmeas avessas em caráter e inimigas uma da outra e filho fruto de relação extraconjugal são marcantes. A irmã gêmea má chega a sequestrar a irmã no dia do seu casamento, atirando-a ao mar em tentativa de homicídio e casando-se em seu lugar. Há ainda uma prostituta que engravida com objetivo de pressionar o amante, que acaba se casando com ela.

Telenovela Duas Caras (2007-2008) – Uma família com onze irmãos vive em palafitas, e o pai, sem condições de sustentar a família, vende um dos filhos a um cafetão estelionatário. O menino passa a seguir os passos do seu tutor, aprendendo a praticar crimes. Já adulto, aplica um golpe no tutor e toma todo o seu dinheiro, fugindo em seguida. Ele segue aplicando golpes, e casa com uma jovem rica, tomando todos os seus bens, deixando-a grávida e na miséria. Há na história uma relação extraconjugal de mais de 20 anos e uma mulher que sustenta um marido imprestável, que para manter a família há 15 anos oculta, sob o manto de ser enfermeira, a sua real profissão, que é de fazer strip tease numa uísqueria, até que se apaixona por outro homem.

Telenovela A Favorita (2008-2009) – Duas meninas crescem juntas e muito amigas, porém uma delas sempre teve uma inveja obsessiva da outra. As amigas se separam e já adultas o filho da amiga boa é sequestrado pelo comparsa da ex-amiga má, que a esta altura se relaciona ao mesmo tempo com dois homens. Uma das personagens cria sua filha sozinha, sem revelar ao pai biológico a sua existência. Há uma outra personagem que mantém relações com seu cunhado, marido de sua irmã. Destaca-se também uma história de casamento desestruturado e infeliz, com agressão física bastante violenta. Não faltam nesta telenovela traições conjugais, além da tentativa de estupro de uma lésbica por um homem, a relação desestruturada entre pai e filho. Uma mulher jovem que se relaciona com um rapaz virgem, engravida e ele não assume a paternidade, sendo que ela perde a criança. Esta mesma mulher é acusada pela irmã de ser a culpada da morte do seu pai. Traições conjugais e até mesmo uma relação aparentemente incestuosa entre supostos irmãos são ingredientes da trama.

Telenovela Caminho das Índias (2009) – Um guarda de trânsito tem uma esposa que diariamente o dopa e sai às ruas se insinuando aos homens da região e efetivamente traindo o seu marido. Há, ainda, um homem rico e ambicioso, que vive em guerra com seu irmão. Os conflitos deixaram o pai dos dois imensamente insatisfeito. Uma mulher casa com um homem grávida de outro de quem verdadeiramente gosta. Há, ainda, outras histórias de traições conjugais, inclusive com geração de um filho.

Telenovela Viver a Vida (2009-2010) – Há desentendimentos constantes entre dois irmãos gêmeos. Uma personagem que é acolhida na casa de patrões, chega a fazer sexo com o dono da casa na cama da patroa. Há paixão de uma mulher por um homem casado há 30 anos e com filhos, que se separa da esposa. Há uma personagem que é menina mimada e muito briguenta, que namora um traficante barra-pesada. Ela é sempre espancada por ele, engravida, tenta fazer aborto, mas é convencida a não o fazer e, por amor ao bandido, não faz. O traficante chegou a tentar matar a mãe da esposa. Esta telenovela explicita também um caso de aborto feito aos 18 anos por uma mulher em troca de uma carreira internacional como modelo.

Telenovela Passione (2010-2011) – Uma mulher grávida conhece um homem por quem se apaixona. Este homem diz admitir a criança, porém no parto informa o seu falecimento, e só muitos anos depois é revelada a farsa. O filho oculto recebe uma herança milionária e passa a ser alvo de uma mulher que se aproxima dele, fazendo-o se apaixonar para tomar a sua fortuna. O casamento, na história, é mero meio de obtenção do poder custe o que custar, inclusive com traições conjugais reiteradas e cenas explícitas de violência por arma de fogo. Há na trama uma mulher que se envolve num triângulo amoroso, relacionando-se com dois homens ao mesmo tempo. Este triângulo vira um quadrado, com a inserção de mais uma mulher, irmã de um dos envolvidos. Há, ainda, vários casos de relações extraconjugais e a história de uma avó que assumiu uma neta como filha, sem os trâmites legais. Houve inclusive uma avó que se aproveitava das netas objetivando ganhar dinheiro, obrigando-as a se relacionar com homens ricos e tendo tentado vender uma das netas, ainda menor de idade, a um fazendeiro. Por fim, nesta novela houve episódio de disputa entre mãe e filha por um mesmo homem. Esta mãe casada, no início da telenovela, saía às ruas tentando seduzir jovens.

Telenovela Insensato Coração (2011) - A rivalidade entre irmãos é um dos temas que conduz a história. Um deles, vendo-se desprezado pelo pai, desenvolve considerável rivalidade com o irmão e passa a sustentar a ideia de que só se tornaria o "filho favorito" se tivesse mais sucesso do que ele. Já no início da telenovela, a mãe dos irmãos rivais trai o marido com o irmão dele, seu cunhado, mantendo relações sexuais e gerando separação. O irmão mau é também um sedutor que se aproveita de mulheres com baixa autoestima. Usa uma delas pra praticar um assalto que culmina em morte por infarto. Ele escapa ileso e a seduzida é condenada em seu lugar. Por fim, há uma ex-participante de reality show que por interesse financeiro conquista um homem casado, fazendo-o assassinar a esposa. Esta telenovela está em andamento, mas segundo disposto fartamente na mídia, o seu foco até o final serão família e dramas modernos.

Conclusão

A análise acerca do conteúdo das telenovelas em questão foi feita com relativa superficialidade, pois num mergulho mais apurado e detalhado certamente seriam encontrados muito mais aspectos comprobatórios do predomínio dos conflitos e tragédias familiares em suas tramas.

Perceba-se, no entanto, que na amostra de dezessete telenovelas analisadas no horário mais nobre da emissora e normalmente o de maior audiência, todas elas, sem exceção, focaram questões complexas dentro das famílias, onde vínculos afetivos entre seus membros ficam em segundo plano, privilegiando os jogos de interesses por poder ou dinheiro.

Nos demais horários de exibição de telenovelas, também se pode identificar facilmente isso nas tramas. Em 2004, a novela Kubanacan, exibida no horário “das sete”, exibiu sob o manto da comédia uma relação em que um homem engravidou ao mesmo tempo duas irmãs. Tudo foi mostrado com muito sarcasmo e alegria, fazendo o público literalmente rir. Numa família real, comum, harmoniosa e bem estruturada, como seria lidar com duas irmãs grávidas de um mesmo homem alheio à família? A resposta é simples: uma tragédia.

A estruturação do seio familiar é, sem dúvidas, fundamental à consecução de uma família melhor, mais solidificada e hábil a melhor preparar os seus integrantes para o convívio social. As tragédias e desventuras familiares, repetidas, reiteradas e banalizadas ao longo de décadas, sob o manto de uma aparente normalidade refletem um intenso perigo, mesmo porque a sociedade brasileira carece de educação verdadeiramente crítica.

O que mais chama a atenção é o fato do público-alvo não se aperceber disso, provado inclusive pela deficiência e escassez de literatura sobre o tema. As tragédias familiares, então, parecem ser enxergadas como naturais e presentes comumente na sociedade.

Famílias desestruturadas, possivelmente influenciadas, dentre outros fatores, por este fenômeno da mídia brasileira - as telenovelas -, podem sim gerar indivíduos com maior tendência à prática de crimes.  

Referências

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[1]              Major do quadro de oficiais policiais militares da Bahia, bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Especialista em análise de informações, Especialista em gestão e metodologia do ensino superior pela Universidade Estadual de Feira de Santana e Especialista em Gestão de TIC pela faculdade Unijorge.

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