TELA VIVA DE POLLOCK
Por J. Athayde Paula | 19/10/2012 | ContosQuando meu pai morreu em decorrência de um câncer de próstata, pensei que seria o único herdeiro de seus bens. Na leitura do testamento descobri que tinha um tio, pelo lado paterno, de nome Aurélio há muito sumido do convívio familiar – meu pai me incumbiu, numa cláusula, de encontrá-lo para a divisão da fortuna. Assim, contratei uma agência de detetives especializada em pessoas desaparecidas e recebi todas as informações ao fim de duas semanas. Meu tio morava aqui mesmo em Londrina, num elegante prédio residencial, ocupava um apartamento no segundo andar e ali também mantinha seu estúdio de ourivesaria. A mais surpreendente das informações, no entanto, foi a de que meu tio Aurélio era transexual. Mudara de sexo havia mais de dez anos. Agora se chamava Victoria. Eu preferi não telefonar marcando um encontro; na verdade queria ver a expressão de alegria desse parente sui generis quando soubesse da herança.
Assim, fui vê-lo em seu endereço. Estacionei nas proximidades, cobri as duas dezenas de metros até o prédio, conversei um instante com o porteiro e subi ao segundo andar usando a escada. Apertei a campainha da porta várias vezes até que ouvi um arrastar de cadeira – esperei ainda alguns minutos sentindo que estava sendo atentamente observado pelo olho mágico; por fim vieram os ruídos de trancas sendo destravadas e surgiu à minha frente uma das mulheres mais lindas que eu jamais vira. Ela olhou-me da cabeça aos pés, analisando – imitei-a: era uma mulher aparentando menos de trinta anos (meu tio deveria estar com uns quarenta e tantos anos), alta, magra, de basta cabeleira loura; tinha o busto de seios pequenos cobertos por uma blusa confortável, da cor grafite; a calça era legging de um preto opaco e nos pés trazia um par de sandálias rasteiras de couro marrom. Não poderia ser meu tio Aurélio, pensei – eu estava esperando encontrar um ser derrotado pela vida ou uma espécie de drag queen espalhafatosa, jamais aquele deslumbre feminino.
– O que o garotão deseja? – perguntou-me numa voz de fêmea fatal.
– Desculpe-me, acho que errei de porta – respondi sentindo que o sangue fluía-me para o rosto. – Estou procurando uma pessoa chamada Aurélio.
Ela abriu-se num sorriso, um sorriso esplendoroso. – Um dia, há mil anos, me chamei Aurélio, há mil anos, garotão – disse. – E você, quem é?
– Meu nome é Fred, sou filho do seu irmão Asdrúbal – apresentei-me.
– Olhando bem, você é a cara da minha mãe, ou da sua avó, como quiser. Entre, vamos – convidou-me, afastando-se da porta para me dar passagem.
Adentrei uma sala imensa, muito limpa, estendido no chão havia um grande tapete espesso com arabescos nas cores azul-opala e cinza, dois pequenos sofás fofos, bege; um busto em pedra-sabão de Afrodite sobre um pedestal de aço inoxidável; dois quadros nas paredes, um reproduzindo um dançarino flamenco e outro uma cigana com os seios nus; três vasos com orquídeas em flor; duas cadeiras de braço, estofadas; um aparelho de televisão Philips 42 polegadas; uma estante com livros de literatura policial; junto à parede oposta à janela viam-se uma grande mesa de madeira maciça recebendo luz de uma luminária tubular de néon e, no tampo, espalhados calculadamente, os instrumentos de trabalhado de Victoria: abrasivos, escovas, polidores de silicone, pasta de polimento, alicates, balança de precisão, pinças, afiadores, brunidores, martelinhos, instrumentos óticos, solda, cortadores, limas, lupas, aneleiras, serras – entre outros objetos que fugiam completamente à minha compreensão.
– Arraste uma cadeira para perto, conversaremos enquanto termino uma peça – disse Victoria acomodando-se numa cadeira giratória à frente da mesa.
Fiz o que me pedia e fiquei olhando-a a manipular uma joaninha de ouro do tamanho de um grão de milho, incrustando-lhe nas costas uns pequeninos e redondos pontos de ônix: a pinça segura entre os dedos polegar e indicador trabalhava serenamente – Victoria tinha dedos longos, finos, e unhas cobertas com esmalte cor-de-rosa.
– Muito bem... Como é mesmo que você se chama?
– Frederico. Pode me chamar de Fred.
– Muito bem, Fred. Explica aí a razão de vir me procurar – pediu-me, concentrada no trabalho. Então lhe contei da morte de meu pai e da fortuna deixada em testamento.
– Eu vivo muito bem do meu trabalho, Fred. Não quero nada do meu irmão, o dinheiro que ele acumulou é sujo de sangue. O seu pai sempre foi um bandido amaldiçoado.
Victoria largou de trabalhar na joaninha, girou a cadeira nos eixos e encarou-me:
– Meu irmão sempre foi um bandido e também um doente sexual. Ele andou aprontando com você, não é verdade?
Emudeci, Victoria entendeu o significado do meu silêncio. Voltou a trabalhar, os dedos trêmulos, no entanto, não conseguiam segurar uma pedrinha de ônix na pinça. Ela olhou-me com a expressão enevoada.
– Veja só o que acontece quando me vem à lembrança os sofrimentos a que fui submetida pelo maldito... – disse. Tirou um cigarro do maço no canto da mesa, acendeu-o, ficou dando curtas e nervosas tragadas.
– Quando eu tinha quinze anos arrumei um namoradinho, o garoto levou uma surra de criar bicho e Asdrúbal me aprisionou num barraco que havia aos fundos de sua oficina de desmanche de motocicletas roubadas. Padeci onze meses naquele antro.
– Onze meses?! – exclamei.
– Onze ou mais. Chegou uma época em que perdi a noção do tempo; tomava banho numa bacia, fazia as necessidades num penico; dia e noite no cômodo infecto, dormindo num estrado de madeira e tendo como colchão uma coberta corta-febre que nunca foi lavada, aguentando a fedentina de fezes de ratos, sofrendo picadas de carrapatos e lambidas de baratas...
– Não gritava por socorro? Onde estavam seus pais?
– Você não os conheceu, não é? Não, quando morreram o Asdrúbal ainda era solteiro. Pois então eu te conto. Meu pai quando não estava encarcerado vivia se mocozando da polícia; minha mãe só tinha uma preocupação na vida, a de que não faltassem as duas garrafas de pinga diárias.
Eu não me conformava.
– E os vizinhos?
Victoria olhou-me como se eu fosse o mais perfeito idiota. Balançou a cabeça lamentando minha pergunta e por fim dignou-se a dar uma resposta:
– Morávamos num bairro que era a filial do inferno.
Apagou o cigarro num cinzeiro, olhou as mãos para verificar se estavam firmes, voltou a trabalhar na joaninha. Ficamos em silêncio, mas eu sentia que Victoria tinha necessidade de desabafo. Incentivei-a:
– Continua, por favor...
– Consegui algumas vezes me livrar das correntes me prendendo a um velho monobloco de caminhão... – disse. Segurou a barra da blusinha cor de grafite, ergueu-a e eu vi, horrorizado, uma profusão de cicatrizes se entrecruzando por toda a extensão de suas costas, parecia um pavoroso quadro de Jack Pollock. Victoria baixou a blusinha, acendeu um novo cigarro, prosseguiu a narrativa: – Livre dos grilhões, tentava correr pelas ruas esburacadas, mas estava muito debilitada, não ia muito longe. Era apanhada, amordaçada e surrada com as correntes. Mas um dia consegui, finalmente, empreender a fuga. Juntei-me a um grupo de artesãos itinerantes, esses hippies tardios que vivem se deslocando de cidade em cidade, de Estado em Estado. Fiquei com eles uns três anos, confeccionava e vendia artesanato até que decidi cuidar do meu futuro... Comi o pão que o diabo amassou para aprender os segredos da ourivesaria, fiz cursos noturnos, levei surras incríveis da vida e hoje aqui estou, bela e dona do meu próprio nariz.
Victoria soldou um minúsculo alfinete de segurança de platina no ventre da joaninha de ouro, transformou-a num broche. Estendeu-me a peça:
– Gosta?
– É um trabalho fantástico!
– Pois é um presente pra você se lembrar de mim; nunca mais quero te ver, garotão. Você me faz um mal danado ao espírito. Agora caia fora da minha casa!
Olhei-a, aturdido.
– Está me expulsando de seu apartamento?!
Victoria levantou-se da cadeira, foi à porta, abriu-a e me mostrou o corredor.
– Por favor, meu jovem, desapareça da minha frente...
Era uma ordem incisiva. Guardei a joaninha de ouro no bolso da camisa e saí para o corredor. Ouvi que a porta era fechada atrás de mim com um estrondo. Fui para o carro. Antes de ligar o motor levantei os olhos para o apartamento de Victoria e a vi debruçada na janela a fitar-me; acenei um adeus comovido, ela imediatamente desapareceu do quadrilátero, cerrando as cortinas.
J. Athayde Paula