Ambiguidade dos advérbios “também”, “só”, “sempre” e “nunca”
Por Laércio Becker | 02/09/2016 | EducaçãoA ambiguidade da palavra “também” pode ser explicada sintaticamente?
Partamos da frase: “João foi ao jogo”.
Nela, podemos incluir a palavra “também” com dois sentidos distintos:
1) “Também João foi ao jogo” = [além de José,] também João foi ao jogo
2) “João foi ao jogo, também” = João foi [à festa e] ao jogo, também
Sem contar opções mais ambíguas (quanto mais próximo ao verbo, maior a ambiguidade):
3) “João também foi ao jogo” - mais próxima ao exemplo 1, mas pode gerar ambiguidade
4) “João foi também ao jogo” - mais próxima ao exemplo 2, mas pode gerar ambiguidade
Todas as gramáticas e dicionários classificam o “também” como advérbio e adjunto adverbial “de adição” ou “de inclusão”. Contudo, é interessante notar que:
a) no exemplo 1, o “também” adiciona algo ao sujeito
b) no exemplo 2, o “também” adiciona algo ao objeto indireto
Comparemos com o artigo indefinido “um”, nas seguintes frases:
- em “um jogador foi ao jogo”, é adjunto adnominal do sujeito
- em “o jogador foi a um jogo”, é adjunto adnominal do objeto
Ou seja, o adjunto adnominal se liga claramente ao sujeito ou ao objeto. Isso não ocorre com o adverbial – ainda que ele acrescente uma informação ao sujeito ou ao objeto, nos exemplos 1 a 4.
O mesmo fenômeno ocorre com o advérbio “só”, embora com sutis diferenças em relação ao “também”:
1) Só João vai ao jogo = e ninguém mais vai com ele (inequívoco) = referente ao sujeito
2) João só vai ao jogo = não faz mais nada (inequívoco) = referente ao verbo
3) João vai só ao jogo = não vai a mais nenhum lugar (inequívoco) = referente ao objeto
4) João vai ao jogo, só = ambiguidade: ou só isso acontece, ou foi sozinho (adjetivo?)
No entanto, no exemplo citado, o fenômeno não acontece com outros advérbios, como “sempre” e “nunca”:
- Sempre/nunca João vai ao jogo = João sempre/nunca vai ao jogo = João vai ao jogo, sempre/nunca = é o que ele sempre/nunca faz
A variedade de sentidos aumenta em frase que usa verbo bitransitivo. P.ex., com “também”:
1) Também João deu um presente a Maria = outra pessoa também deu = referente ao sujeito (desconsiderado aqui o uso de “também” como interjeição, com significado de “pudera”, que exigira ponto de exclamação)
2) João também deu um presente a Maria = João também fez outras coisas, além de dar um presente = referente ao verbo
3) João deu também um presente a Maria = João também deu outras coisas, como um abraço = referente ao objeto direto
4) João deu um presente também a Maria = João deu também a outra pessoa = referente ao objeto indireto
5) João deu um presente a Maria, também = ambiguidade
Com “só”, a ambiguidade também surge na quinta frase:
1) Só João deu um presente a Maria = ninguém mais deu = referente ao sujeito
2) João só deu um presente a Maria = João só fez isso = referente ao verbo
3) João deu só um presente a Maria = João deu só um, não dois presentes = referente ao objeto direto
4) João deu um presente só a Maria = João deu só a Maria, a ninguém mais = referente ao objeto indireto
5) João deu um presente a Maria, só = forma inusual, mas seria ambígua.
Já com “sempre” e “nunca”, o significado antes invariável apresenta agora sutis variações. Comecemos com o “sempre”:
1) Sempre João dá um presente a Maria = ambiguidade (sempre ele ou segue 2)
2) João sempre dá um presente a Maria = sempre faz a mesma coisa = referente ao verbo
3) João dá sempre um presente a Maria = nunca dá outra coisa = referente ao objeto direto
4) João dá um presente sempre a Maria = nunca a outra pessoa = referente ao objeto indireto
5) João dá um presente a Maria, sempre = ambigüidade (segue 2 ou 4)
Agora com “nunca”:
1) Nunca João dá um presente a Maria = ambiguidade (segue 2 ou, inusual, nunca João)
2) João nunca dá um presente a Maria = nunca faz isso = referente ao verbo
3) João [não] dá nunca um presente a Maria = sem o acréscimo do “não” é inusual, com o “não” segue 2
4) João [não] dá um presente nunca a Maria = segue 3
5) João [não] dá um presente a Maria, nunca = segue 3
Apesar disso tudo, continuam todos sendo adjuntos adverbiais. E não há explicação sintática para a mudança de sentido conforme sua colocação na frase. Coisas da língua portuguesa.