Soldadinhos de Osso
Por Marcos Miliano | 18/03/2009 | SociedadeHavia muito tempo, eu queria visitar minha cidade natal. Finalmente cheguei. O aeroporto está lotado e muito diferente. Tudo, inclusive eu mudamos. Já faz vinte anos que saímos do Brasil. Meus pais foram aconselhados, por causa da militância política, a sair. Tempos difíceis aqueles.
É sexta-feira, na estrada em direção ao litoral tem muito movimento, ou não... Tem muitos carros, mas movimento nenhum. Tudo parado. Felizmente meu caminho é oposto e está livre. Devo chegar a São Benedito em três ou quatro horas.
O filme da minha infância passa na cabeça, penso numa música do Roberto, aquela que fala do portão, seria uma boa triha sonora pra minhas lembranças.
Uma aventura atrás da outra: escalar, correr, saltar; não raras eram as escapadas dos cães que habitavam os quintais. Subíamos muros e árvores como gatos! As visitas aos quintais para pegar frutas, eram diárias. As fruteiras de Dona Margarida, as preferidas e as escapadas de Hulk, o pastor-alemão, as mais emocionantes. Apesar do perigo, acredito que aquele cachorro também brincava e não faria mal se nos alcançasse, de tanto que fazíamos aquilo.
Era chegar da escola e ir pra rua, ficava solto, sem preocupar ninguém, um privilégio de menino do interior. A violência que abalava os grandes centros, só nos chegava pelos jornais domingueiros.
Nalgumas tardes passávamos horas brincando com soldadinhos, nos montes de areia das construções, era o mesmo que brincar na praia. Fazíamos castelos, túneis, os bonequinhos eram feitos de osso, só os meninos de família rica, tinham os de chumbo. Mas a diversão era a mesma, eram batalhas fantásticas!
Muitas vezes antes de anoitecer, íamos para o Rio das Pedras, passávamos pela matinha, onde também a diversão era garantida. Neste caso, as mães não gostavam muito, mesmo sendo de águas calmas, no lugar onde tomávamos banho, o rio tinha pontos bravios e uma cachoeira meio quilômetro abaixo, quando chovia nas cabeceiras e o volume da água aumentava, escavava buracos no leito pedregoso e era fácil um ou outro ser dragado para um deles e ficar enganchado nas pedras do fundo. Mas desobedecíamos... As águas frescas e revigorastes nos chamavam à diversão.
Dava um frio na barriga pular da pontesinha para a água, era como voávamos. Chegando em casa, mamãe dava uma bronca ao ver a pele cinzenta, mesmo que eu matasse a hora para o cabelo secar, ela sabia... Estávamos no rio. Mandava-me pro chuveiro, aprontar-me pro jantar. Eu não entendia: Pra quê tomar banho se já havia feito isso no rio? A água era fria igual a do rio, mas ali não era divertido tomar banho. Eu molhava a cabeça e entrava no pijama, as mangas e as calças longas cobriam o cinzento da pele!Depois do jantar, não demorava pra fadiga me levar pra cama, onde o sono profundo me deixava imóvel durante a noite, mesmo toda a energia de um garoto se esvai depois de umas horas de saltos para o rio seguido de escaladas no barranco, para voltar ao trampolim..
Não me lembro de dormir tão bem, como naqueles anos. Exceto pela noite em que pouco antes de dormir, chegou à nossa porta, a Dona Francisquinha procurando por Labía, esse não sei por que, era o apelido de Jarmissom, meu melhor amigo. Estava aflita, pensava que ele estava comigo, pois não tinha chegado a casa ainda. Naquela tarde, não brinquei, mamãe me obrigou a estudar álgebra, não estavam boas as minhas notas.
Eu tinha 9 anos, mas me sentia um homem, com as preocupações de um homem, não consegui adormecer depois do jantar, não sei se pela falta da fadiga das brincadeiras ou se por que pressentia que algo não estava bem.
Mais tarde, aparece a mãe de Labía de novo, ouvi de longe ela chorando, já estava adiantada a hora, e ele não tinha aparecido. Meu pai se juntou aos outros homens das redondezas para fazer uma busca, eu queria ir, mas não me deixaram. Mamãe me fez voltar pra cama, adormeci sem perceber.
No dia seguinte logo cedo acordei com o barulho das vozes, os homens tinham encontrado Labía, no rio, um quilômetro e meio abaixo. Estava sem vida. Dia triste.
Naquela data, foi enterrado, não me deixaram ver meu amigo. Lembro-me que Dona francisquinha chorava muito e todos comentavam que não devíamos ir para o rio, não era a primeira vez que uma morte semelhante com uma criança acontecia.
Faziam o possível para não comentar, mas criança cata tudo! Ouvi numa roda de pessoas, que só haviam encontrado a cabeça e o tronco, os membros tinham sido arrancados, talvez pela correnteza, ou por terem se enganchado nas rochas ou pela queda na cachoeira, talvez tudo isso junto. Como aconteceu a outros garotos em anos anteriores, um a cada ano com exceção do ano passado onde foram dois. Eu nunca tinha dado atenção a esses acontecimentos, agora, que ocorreu tão próximo, conseguia entender por que a única preocupação das mães com nossas brincadeiras residiam no rio.
No dia seguinte Dona Francisquinha mandou me entregar os soldadinhos de osso, de meu amigo, dizia que ele gostaria que ficassem comigo. Ela estava se desfazendo de tudo dele. Meu amigo e eu éramos iguais.
Os bonequinhos de osso eram pequenas esculturas de soldados, cavalos e outros animais, muito bem feitas e famosas na região, as de Labía eram perfeitas. Ele era o preferido do escultor, ou melhor, escultora, uma simpática senhora que morava na matinha. Sempre que algum menino pegava alguns trocados ia comprar os bonequinhos. Dona Francisquinha era pobre, a mais modesta da rua, ela sozinha para criar os quatro filhos. Dizia que o pai era caminhoneiro, só me lembro de ter visto uma vez.
Labía levava frutas para aquela velhinha, que morava só e andava com a ajuda de um cajado. A artesã valorizava os presentes de meu amigo, retribuindo com os melhores bonequinhos.
Eu gostava dos bonequinhos, mas não de ir comprá-los, tinha medo daquela senhora, sempre a associava a uma bruxa, apesar de estar sempre rindo, ela usava roupas escuras, e morava numa casinha de madeira de onde sempre saía fumaça por um cano no telhado.
Recebi os bonequinhos, mas nunca brinquei com eles, poucos meses depois, fomos morar na Alemanha e os deixei com os outros brinquedos, viajamos meio às pressas e mamãe disse que voltaríamos logo, não precisando levar muita coisa.
Estou chegando a São Benedito, a vegetação da região me faz sentir bem, é meio como se voltasse ao útero, tudo é muito diferente da paisagem que me acostumei a ver nesses anos, mas muito familiar. A entrada da cidade tem o mesmo portal, com algumas reformas, a rua que se segue está com uma manta asfáltica, preferia encontrar os saudosos paralelepípedos que calçavam as ruas. Os prédios também se mantiveram, a igreja, a praça do centro, o mercado, as casas das famílias mais antigas tudo está quase como antes. Passo pela rua onde brincava, não é mais de chão batido, tem paralelepípedos calçando, preferia que fosse como antes. Vejo a minha casa, está com outra cor. A família que mora lá é de uma prima em segundo grau, de minha mãe. Não quero parar, nem entrar agora. Vou para um hotel, depois volto aqui.
Estou novamente no centro da cidade, não tem mais a pensão, agora um restaurante está no lugar, em cima dele tem um hotelzinho, são três na cidade, os outros dois com uma farmácia embaixo. Ficarei onde era a pensão.
O quarto tem uma boa vista da praça, a noite é movimentada, alguns jovens se aglomeram em pontos da praça e no entorno dela. Desço, dou uma volta, janto tomo um café, fico olhando o movimento. Amanhã cedo, visito a rua de minha infância.
Uma senhora de quarenta e poucos nos me recebe ao portão da antiga casa, se parece com as pessoas de nossa família e quando me identifico me dá um caloroso abraço. Depois de perguntar por minha mãe, me diz que tem muito a agradecê-la, pois quando se casou, não tinha uma casa, e minha mãe tê-la deixado morar na nossa, teria sido um grande favor, disse ainda que em retribuição, cuidou de todos os móveis e guardou tudo que era mais particular nosso, num dos quartos, perguntou se eu queria ver.
Levantei-me e num instante estava no quarto, em três cantos do cômodo estavam nossas coisas, fui direto a uma caixa que parecia guardar as minhas coisas, numa outra caixa menor, estavam os bonequinhos de osso. Me virei e perguntei à senhora se lembrava de algumas pessoas, amigos da infância... Contei-lhe sobre meu amigo, mostrando-lhe os soldadinhos.
A senhora fez cara de desagrado dizendo que não se desfez dos bonequinhos por que tinha prometido guardar tudo que era nosso. Perguntei-lhe por que falava daquele jeito. E com os olhos arregalados numa atitude de espanto, perguntou-me se eu não sabia da história. Acenei que não. Levou-me pela mão para a sala, pediu-me para sentar.
Disse-me que lembrava de meu amigo. Teria sido a penúltima morte antes da descoberta que assustou toda a região. Continuou relatando que mais um garoto morreu no ano seguinte e por ser o número doze, nas mesmas circunstâncias, chamou a atenção de um jornalista da capital que ao investigar a última morte e encontrar caracteres estranhos, pediu ajuda a um perito criminal.
Exumaram-se os quatro últimos corpos, e percebeu que não teria sido o rio, o causador das mutilações. Todos os crânios tinham marcas na parte de trás, de uma forte pancada, a marca da separação dos membros da última vítima, mostrava no pescoço e nos ombros, que o dilaceramento foi feito não por pedras, mas por dentes. Seria descoberto um "Matador em Série".
O investigador questionava os moradores sobre alguém da comunidade com comportamento estranho ou suspeito. Três pessoas foram apontadas e quando investigaram a senhora que morava sozinha na mata, encontraram em seu casebre, roupas infantis.
Depois que aquela mulher apareceu na região, foi que começaram as mortes. Ela atraía os garotos com as esculturas de brinquedo. Depois que fazia amizade escolhia a sua vítima e a acertava com o cajado. Não podia se aproveitar de partes como a cabeça e o tronco, então os jogava no rio. Os membros serviam de alimento. Encontraram pedaços de carne humana, defumada, guardada para consumo. Os ossos dos membros? Ela fazia os bonequinhos.