Sofre a tua dor resignadamente...
Por Osorio de Vasconcellos | 29/11/2013 | CrônicasResumo: Dois amigos de longa data estudam alternativas para evitar que belíssimos boleros românticos se transformem em meros chiliques de saudade.
Sofre a tua dor resignadamente
- Que tens aí?
- Um pen-drive com músicas antigas.
- Que tipo de música?
- Boleros.
- O que pretendes fazer com eles?
- Ouvi-los, ora essa, o que mais poderia fazer?
- Tens razão. Na tua idade, na atual conjuntura seria esquisito dançá-los e cantá-los, como fazias em rapaz. E estás preparado?
- Preparado pra quê?
- Pra ouvir os boleros, ora essa.
- E é preciso?
- Me dá aqui este pen-drive... É o que eu pensava.
Constavam do pen-drive, dentre outros não menos enfáticos, os seguintes boleros: Perfídia, Ansiedade, Hipócrita, Angústia, Fracasso.
- O que achas?
- Tens certeza de que estás preparado?
- Qual é o problema, cara? Abre o jogo.
- Sei que foste criado na penumbra dos cabarés. Minto?
- É. Pode ser.
- Sei que viveste intensamente a fase romântica dos boleros, que os dançavas com leveza, que os cantavas com paixão. Minto?
- E daí.
- E daí que tudo mudou. Presta atenção. Todo o território de referencias e relações que homiziava cada uma dessas canções deixou de existir. Tens ideia do que levas aí nesse pen-drive?
O amigo olhou para o pen-drive meio desconfiado.
- Eu já disse, são boleros.
- Sim, boleros, mas boleros normativos, esqueletos descarnados, mera virtualidade.
- Estás querendo me dizer exatamente o quê?
- Que tomes cuidado, que descartes a ilusão de que ouvindo esses boleros do pen-drive reviverás as emoções da tua juventude.
- E por que não?
- Ora, meu caro, porque é impossível reconstituir o cenário que dava às canções o sentido único que elas tinham. O frescor e o perfume da mulher amada, a paixão que te roía, e tudo o mais da sedução perdeu-se para sempre. Meu amigo, este pen-drive que ingenuamente levas contigo, leva consigo, além do conteúdo normativo alheio à tua vontade, apenas pó, cinzas, e nada mais.
- Mesmo assim vou tentar. Não me custa nada.
- Pois tenta, se gostas de sofrer, tenta.
- Mas, espera um pouco, agora me lembro, tu tinhas uma coleção de boleros antigos e me falavas deles com entusiasmo. Que aconteceu?
- Simplesmente revi os meus conceitos. Cheguei à conclusão de que é preferível ouvir um ruído vivo, atual, a uma sombra musical.
- Isro me parece exagerado. Será que não ha outra saída?
- Na verdade há outra saída.
- E qual é?
- É pegarmos os nossos boleros e reimplantarmos neles valores vicários daqueles que se foram.
- O quê, por exemplo?
- O valor de símbolo. Um bolero-símbolo não maltrata ninguém. Pelo contrário, o símbolo é obra espiritual, apuro da consciência, intérprete privilegiado das mais secretas modalidades do ser.
- E como é que se faz isso?
- Faz-se pensando, em vez de sentindo. Sei que não é fácil. Pensar exige esforço, dtirisciplina, obstinação. Diferente do bolero-saudade que, na ânsia de ressuscitar, se entrega facilmente.
- Acho que não vou conseguir.
- Claro que consegues. E quando conseguires ouvirás sorrindo qualquer bolero da tua juventude. O símbolo te manterá lucido e sereno. Podes testar a minha teoria ouvindo, por exemplo, o bolero Perfídia, que começa assim:
Sofre a tua dor resignadamente..
ou assim, se escolheres a versão original:
Nadie compreende lo que sufro yo...
Livre de qualquer nostalgia verás que o passado retorna fulgurante na plenitude de sua dignidade.