Sociedade Narcísica Contemporânea: um olhar para além do espelho

Por FRANCISCO A. MIRANDA | 14/03/2016 | Filosofia

Narciso - Michelangelo Merisi Caravaggio (1571-1610)Sociedade Narcísica Contemporânea: um olhar para além do espelho

FRANCISCO ALVES DE MIRANDA[1]

franciscoalvesmiranda@hotmail.com

 

Introdução

“Somos a cada instante uma multidão e, no entanto, somos o singular; somos uma multiplicidade infinita: de virtualidades, de passado vivo, de futuro traduzido em desejo de vir-a-ser; mas somos, sobretudo, um feixe multiforme de relações polissêmicas, de onde cada qual extrai o sentido de sua existência e, ao traduzi-lo em realidade mediante a ação, torna-se o que é: pessoa-única, somente igual a si mesma”[2].

 Sociedade narcísica contemporânea, dois adjetivos permeados de significação: o primeiro remete à narrativa mítica clássica grega e o segundo ao tempo presente. Entre essas duas instâncias há uma questão crucial: o que há de comum entre o mito de Narciso e a sociedade narcísica contemporânea?

Sob a perspectiva filosófica, inúmeros termos vêm sendo usados para descrever o momento atual: “sociedade contemporânea”, “fragmentada”; “líquida”, “do consumo”, “hipermoderna”, “a era do vazio”, ou, simplesmente, modernidade. Não é fácil definir o que se entende por atualidade, dada à imprecisão do termo e ao contexto. O certo é que o momento presente se caracteriza pela ausência dos grandes sistemas, das grandes narrativas, pela crise da razão, pela falta de horizontes e de perspectivas norteadoras da vida humana. Parece que tudo hoje é hipotético, provisório e impreciso. No entanto, isso não significa afirmar a impossibilidade do discurso ou da reflexão. Pelo contrário, a filosofia mais que nunca tem se debruçado sobre toda a panorâmica atual e muitos são os pensadores com reflexões promissoras, dentre eles: Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky, Jean Baudrillard, Guy Debord, Theodor Adorno e Horkheimer.

Alguns desses pensadores contemporâneos, no intuito de explicarem a atualidade, apropriam-se de imagens míticas, como é o caso de Bauman e Lipovetsky e as suas alusões ao mito de Narciso. Ora, o presente ensaio tem como base o mito de Narciso narrado por Ovídio e, como suplemento reflexivo, a leitura da obra A República de Platão (especificamente, o Livro VII - a alegoria da caverna), algumas teses da Sociedade do Espetáculo de Guy Debord, um fragmento de texto intitulado a casa de vidro (reality show - BBB 13), uma alusão à sociedade líquida proposta por Zygmunt Bauman e, como desfecho, uma aproximação ao termo alteridade proposto por Lévinas. A intenção é possibilitar uma reflexão que leve em consideração os aspectos reais e ilusórios do ser na condição de indivíduo, e enquanto membro da sociedade e, a partir daí, oferecer alguns elementos que nos ajudem a entender o significado de sociedade narcísica, imagética e espetacular. A figura narcísica é o pretexto que pode perfeitamente auxiliar nessa empreitada: de um lado, a metáfora grega como fonte inspiradora; do outro lado, os contemporâneos com os embasamentos teóricos. Uma boa mistura para a nebulosa realidade.

A imagem refletida - o mito de Narciso

“E de Narciso o chama. Consultado, então/ se viveria até a senectude, o vate/fatídico falou: ‘Se não se conhecer’” (OVÍDIO. Metamorfoses)[3]

Se a filosofia é, em tese, a superação do mito, então, por que se apropriar do mito e, de modo particular, o grego? Porque ele é prenhe de significação, porque sua abrangência abarca as mais variadas áreas do conhecimento humano, porque em tempo nebuloso como é o caso do atual nada melhor do que recorrer aos antepassados, eles souberam dar uma resposta a sua contingência, logo, parece fazer sentido retomar o mito. Além disso, a experiência primeira de filosofia nasceu intimamente ligada às narrativas fabulosas. O mito é o irmão mais velho, o conselheiro, igualmente, é até improvável conceber a reflexão filosófica sem a sua apropriação inicial dos mitos.  A filosofia carrega em seu bojo as demais formas de conhecimento e percepção da realidade humana.

Para os Antigos Gregos, existiam apenas dois modos de realidade: o mito e o logos, a fantasia e o discurso da razão; o primeiro, traduzido na narrativa fabulosa, e o segundo, expresso no discurso racional, na tentativa de explicação lógica da origem das coisas[4]. O mito significa “palavra”, “o que se diz” ou “um modo de expressar certas verdades que escapam ao raciocínio”[5]. Ora, o desafio reside, portanto, em traduzir de uma forma racional para  a realidade presente uma metáfora o que remete aos primórdios da filosofia. A questão, agora, se centra em saber sobre a simbólica metáfora narcísica e a sua possível ligação com a sociedade presente. Em outros termos, o que significa a expressão sociedade narcísica para o homem contemporâneo?

Quando se fala do mito Narciso, há uma gama de interpretações, contudo, para o momento, optou-se por uma versão clássica apresentada por Ovídio (8 d.C.) em suas Metamorfoses. Essa versão foi traduzida do latim para o português por Carvalho[6]. É oportuno salientar que a narrativa mítica é inesgotável, logo, não há aqui a intenção de esgotá-la, tampouco, falar de todo o enredo que envolve os personagens (Cefiso, Liríope, Tirésias, Némesis, Narciso e Eco). O propósito é refletir sobre alguns conceitos baseados nos personagens centrais (Eco e Narciso) que são carregados de simbologia e apresentam os ingredientes essenciais que perpassam a reflexão filosófica no Ocidente, tais como, a palavra e imagem; o real e o ilusório; o indivíduo (eu) e o social (totalmente outro, alteridade); o sólido e o líquido; a consciência e a alienação, dentre outros.

A primeira indagação volta-se para Eco. Qual o significado do seu nome? Que relação ela tem com Narciso? Em conformidade com o poema de Ovídio, Eco, antes da punição era vista como sendo uma tagarela, de boa oratória a tal ponto de ludibriar a deusa Hera. Aliás, foi justamente devido a essa peculiaridade que a deusa resolveu puni-la. Segundo o poeta, Zeus volta e meia viajava para o mundo dos mortais a fim de aventuras amorosas. Hera, desconfiada das muitas viagens resolveu prendê-lo lá em cima. Zeus, por seu turno, resolveu recorrer à ninfa a fim de distrair a deusa enquanto ele se aventurava. Acontece que Hera descobriu tal artimanha e condenou a ninfa a repetir tão somente os últimos sons das palavras que ouvisse. Daí o significado de Eco, a ninfa da repetição.

“Eco sempre a retinha com longas conversas/ para as ninfas fugirem. Satúrnia entendeu/ e disse: ‘a tua língua, que me iludiu tanto/ pouco poder terá, no uso parvo da voz’” (OVÍDIO. Metamorfoses)[7]

Que sentido há em uma vida sem a possibilidade de comunicação, ou seja, impossibilitada do uso da palavra? O que pode acontecer quando é tirado aquilo que é mais próprio do humano, no caso, a palavra, a fala, a articulação das ideias? Em uma perspectiva filosófica, Eco representa a subjetividade diminuída, a palavra fragmentada, repetida, um simples som, eco. Ela deveria ser sinônimo de alteridade (o totalmente outro) em oposição a Narciso, porém, a relação estabelecida entre os dois é objetal, não subjetiva e, tampouco, intersubjetiva. Pelo visto, a punição divina foi atroz para com a ninfa e o desfecho final e fatal não poderia ser outro: por não poder transmitir o seu amor à pessoa amada (Narciso), petrificou-se, tornando-se um objeto propagador de sons.

“A insônia lhe consome o corpo miserável/ a magreza lhe enruga a pele e no ar se esvai/ o suco corporal. Restam só voz e ossos/ A voz vive; viraram pedra os ossos, dizem/ Assim, se esconde em selva e em monte nunca é vista/ Todos ouvem-na; é som o que nela vive” (OVÍDIO. Metamorfoses)[8]

A segunda indagação é direcionada a Narciso. Qual o seu significado e por qual razão se atribui a Narciso os sinônimos de beleza, fragilidade, jovialidade e até mesmo de futilidade? A palavra Narciso[9] (Nárkissos) tem algo a ver com “entorpecimento”, “torpor” ou, simplesmente, “sono”. Ela nos remete à flor narciso que carrega consigo a propriedade de ser algo estupefaciente. Segundo Ovídio, Cefiso era um rio fecundo e fecundou a ninfa Liríope e tiveram uma linda criança por nome Narciso, tão bela que suplantava a beleza de algumas divindades. Eis aí um problema: a suprema beleza é um atributo da divindade e não dos humanos. Em certo sentido, ele era uma afronta aos deuses e isso não poderia passar impune. Além disso, tal beleza despertaria a atenção das deusas, ninfas e jovens de toda a Grécia.

Dito e feito, certa feita, o jovem após uma caçada, encontrava-se sozinho na floresta quando a ninfa Eco o avistou e de súbito foi irremediavelmente atraída por sua beleza. Correu ao seu encontro; porém, Narciso desdenhou de tal sentimento preferindo à morte a paixão de Eco. Ela, numa atitude de desespero, isolou-se, fechou-se numa incomensurável solidão e, por fim, transformou-se em rochedo. O descaso de Narciso provocou a ira dos deuses e, como consequência, Némesis condenou-o a um amor impossível, a amar a si mesmo e a ninguém mais. Ora, exausto da caçada, sozinho, o jovem resolveu procurar uma fonte d’águas límpidas, a fim de saciar a sede e a encontrou, debruçou-se sobre a fonte e avistou a figura mais perfeita que jamais tinha visto.

“Aqui, cansado de calor e caça, o moço/ se deitou, atraído pela fonte amena/ Enquanto anseia a sede aplacar, outra [sede][10] nasce/ Enquanto bebe, preso à bela imagem vista/ ama objeto incorpóreo, sombra em vez de corpo” (OVÍDIO. Metamorfoses)[11]

É a partir desse encontro (eu/outro; realidade/imagem) que o mito assume a máxima expressividade. Narciso passa a contemplar uma imagem jamais vista. A questão que se levantar aqui tem a ver com a imagem refletida. De quem era a imagem: dele ou do outro? A resposta não é simples e exige o auxílio da dialética: de início, ele se isola e; em seguida, passa a contemplar uma imagem e por ela se apaixona. Anteriormente, ninguém despertava o seu interesse, agora, está preso a uma ilusão visual[12], um “outro” imaterial refletido nas águas transparentes. Ora, o que ele busca não está em lugar nenhum: nem em seu corpo, condenado a ser tomado sempre como reflexo, nem no outro, que só aparece como sombra encobrindo essa imagem[13]. A questão que se impõe tem a ver com a sua contemplação: por qual razão Narciso não rompeu com essa contemplação? Por que ficou ali a contemplar uma imagem sem tocá-la, abraçá-la, ouvi-la, reduzindo-se a um puro evento visual? Provavelmente por ter a ciência de que um simples toque poderia desfazê-la. 

Em termos filosóficos (e psicológicos), no contato com o outro surge naturalmente as imperfeições, as precariedades de cada ser. Narciso não foi capaz da autocrítica, do autoconhecimento, uma vez que, o autoconhecimento é de origem social. A sociedade é quem estabelece a medida do ser de cada um. É ela quem nomeia as pessoas. O outro é a condição de significação do meu ser: “só quando o mundo privado de uma pessoa se torna importante para os demais é que ele se torna importante para ela própria. Ele então ingressa no controle de comportamento chamado conhecimento”[14].

“Reconheço minha imagem agora/ Ardo de amor por mim mesmo/ eu próprio ateei o fogo que agora me queima” (OVÍDIO. Metamorfoses)[15

A questão é: quem seria o imediatamente próximo (alteridade absoluta) para Narciso? A resposta seria Eco, no caso, um eco, um ser fragilizado, uma ressonância, um não outro, ele mesmo perdido em sua imagem. Em síntese, Narciso perdido em seu egoísmo queria a satisfação de seu desejo e, para tanto, precisava do eco de sua voz. O eco é a confirmação do ilusório. A voz tantas vezes repetida lhe convenceu de que a sua imagem petrificada no espelho d’água era a mais bela e, que, portanto, lhe bastava.

Hoje, fala-se muito em sociedade narcísica, o que subentende por essa expressão? É possível estabelecer um paralelo dessa narrativa com a alegoria da caverna proposta por Platão, com a sociedade do espetáculo de Guy Debord, ou, ainda, com a sociedade líquida tematizada por Zygmunt Bauman.

O reflexo do ilusório – a alegoria da caverna

 “Imagine pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo”[16].

Dentre tantos seres, pessoas e elementos a sua volta, Narciso apaixonou-se justamente por sua imagem, por qual razão? Como entender essa realidade? O que é o real e o ilusório?  Há um filósofo que pode auxiliar nessa reflexão, trata-se de Platão em sua obra A República, especificamente, a alegoria da caverna (Livro VII). Para uma compreensão inicial do pensamento platônico há de se levar em consideração o fato de que o pensamento desse filósofo, à primeira vista, parece intervertido: o que é real para a maioria das pessoas é ilusório para o filósofo. Grosso modo, Platão procura uma explicação racional do mundo e, para tanto, faz uma distinção entre o mundo sensível do mundo inteligível. O mundo sensível é acessível aos sentidos e regido pela opinião (doxa). Já o mundo inteligível está acima do mundo sensível e é representado pelos modelos perfeitos ou paradigmas, eternos e imutáveis e é regido pela razão (epistemé). Nessa perspectiva, o conhecimento para ser autêntico deve ultrapassar a esfera das impressões sensoriais, o plano da opinião e penetrar na esfera racional da sabedoria. Para atingir esse mundo, o ser humano não pode ter apenas “amor às aparências” (filodoxia), precisa possuir um “amor ao saber” (filosofia). O método proposto pelo filósofo para atingir o conhecimento autêntico é a dialética[17].

A dialética platônica é o processo pelo qual a alma se eleva, por degraus, das aparências sensíveis às realidades inteligíveis ou ideias. Ela consiste na passagem do mundo das sensações para o mundo ideal. Ela é um caminho de mão dupla: saída da caverna (dialética ascendente) e o retorno a caverna (dialética descendente). O primeiro permite ver as coisas como são, permite a tomada de consciência. Ao tomar ciência da realidade, o ex-prisioneiro retorna ao interior da caverna a fim de libertar os seus companheiros. Isso deixa entrever o compromisso ético por parte desse homem, ou seja, do filósofo. Para Platão, o filósofo é aquele que ultrapassa o plano da opinião e penetra na esfera racional da sabedoria. Além disso, está voltado para o todo e não para um aspecto da realidade, no caso, a aparência.

Há aqui a necessidade de se fazer um paradoxo entre o mito de Narciso e a alegoria da caverna. Em ambas as interpretações, há pelo menos um elemento implícito, a questão da alteridade e, que por sinal, deficitária pelo fato de não haver relação plena entre os sujeitos:

a)       na versão apresentada por Ovídio, Eco e Narciso aparecem em sua forma diminuída (um fragmento de fala/uma imagem estática) como figuras resignadas frente aos destinos estabelecidos pelas divindades, não são capazes de rupturas, tampouco, de diálogo;

b)      quanto ao pensamento platônico, ele ilustra de modo pedagógico o interior de uma caverna. Nela, homens aprisionados e incomunicáveis estabelecendo relações com imagens projetadas pela luz que vem do exterior da caverna. Nesse sentido, há muita semelhança com o mito anterior, uma vez que, os personagens também estabelecem uma relação objetal, ilusória e fragmentada. Vale salientar que Platão interfere no cenário ao sugerir a participação de outro ser não aprisionado (alguém do exterior da caverna): um dos prisioneiros é forçado a sair do mundo ilusório e contemplar o mundo autêntico e, em seguida, é reconduzido ao interior da caverna no intuito de libertar os prisioneiros. Nessa perspectiva, o mito platônico inova ao propor uma ação interativa ‘dialógica’ e não determinista: o mundo pré-estabelecido pode e deve ser suplantado por intermédio da educação, da busca incessante pelo saber.

A tese platônica parece inovadora no que diz respeito ao conceito de ser (humano), todavia, é dual: é inconcebível a multiplicidade de seres sem a ideia de um ser perfeito. Em outros termos, a multiplicidade (as subjetividades/os outros) está sempre subordinada ao uno (a subjetividade/o ser perfeito/a ideia). A ideia de ser perfeito é o referencial, o espelho pelo qual devemos nos espelhar e não uma cópia. Logo, as cópias não poderão ser definidas a partir delas mesmas, uma vez que são carentes do modelo ideal[18], ou, em palavras de Vaz, há um paradoxo profundo no fato de que a filosofia do logos tenha sido a filosofia da anulação do outro.

“Na verdade, a mais alta realização dessa filosofia, ou seja, o platonismo encontrou seu método e sua expressão precisamente no diálogo. Mas o que é significativo no diálogo platônico, como encontro das almas e sua salvação pela filosofia – essa essência da mensagem socrática –, é a submissão dos interlocutores ao logos, de tal sorte que a salvação oferecida pela filosofia reside, finalmente, no consentimento à Ideia, que o logos descobre através do diálogo”[19].

Para Vaz, o logos grego já nasce centrado em si mesmo. A consequência desse auto centrismo é “a anulação sistemática do outro, que, relegado ao ostracismo e usurpado de dignidade, não terá reconhecida sua alteridade”[20]. Frente a isso, como entender o sentido de alteridade, de subjetividade e inter-subjetividade em sua sociedade que cultua o visual e, que por ele se deixa ser pautado?

 O ilusório espetacular – a cultura visual do consumo

“Em uma sociedade do espetáculo, os indivíduos deslumbrados pelo espetáculo surgem de uma existência passiva dentro da cultura visual do consumo de massa, aspirando somente adquirir uma maior qualidade dos produtos. Em uma sociedade espetacular se convence pela imagem mais do que pelo objeto”[21].

Se em um primeiro momento o ser (no caso Narciso) parecia se relacionar com a sua imagem, em um Segundo momento, Platão já nos apresenta um ambiente comunitário de pessoas se relacionando com imagens diversas, porém, no momento presente, essa relação homem/imagem perpassa os interstícios sociais como um todo. Parece oportuno, portanto, um maior aprofundamento sobre essa emblemática questão.

Imagem é um termo que provem do latim (imāgo) e que se refere à figura, representação, semelhança ou aparência de algo. Em uma perspectiva filosófica a imagem é carente de ser, logo, um ilusório, não real. No entanto, na sociedade contemporânea essa lógica parece estar invertida a tal ponto do ilusório se apresentar como real. Como, então, entender essa inversão? A resposta a essa indagação passa pela compreensão dos conceitos de sociedade, de espetáculo e de alteridade para o homem contemporâneo.

Em conformidade com o dicionário eletrônico[22], sociedade (societas) é um conjunto de seres que convivem de forma organizada, também significa associação amistosa com outros. Já o conceito de espetáculo (spectaculu) é tudo o que atrai a vista ou prende a atenção; vista grandiosa ou notável, ou ainda; qualquer representação pública que impressiona ou é destinada a vista por sua grandeza, cores ou outras qualidades. Segundo Ferreira, a base semântica da palavra espetáculo aponta para “o caráter público da festa e da cena, mas sua origem etimológica a avizinha do verbo spectare, que também está presente na raiz e nos sentidos de ver, olhar com insistência, contemplar, observar com atenção designando, portanto, um ver com reflexão ou juízo”[23]. Esse conceito é aprofundado por Guy Debord em sua obra A Sociedade do Espetáculo[24].

 “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (SdE, § 4)[25].

 Segundo Debord, o espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ele concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada (SdE, § 3). O espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante, ou seja, o modelo capitalista.  Isso implica afirmar que é impossível separar relações sociais com relações de produção e consumo de mercadorias: há uma interdependência entre o processo de acúmulo de capital e o processo de acúmulo de imagens. Em palavras simplificadas, o espetáculo atua a favor do capitalismo e o consumo acaba sendo consequência.

Nesse contexto, as imagens e representações são, antes de tudo, “uma forma de relação social nas quais os indivíduos, que nela se relacionam, se posicionam efetivamente como espectadores contemplativos em e de suas próprias atividades e relações genéricas”[26]. Assim sendo, as imagens têm uma função que é a de induzir à passividade e à aceitação do capitalismo[27], ou, como diz Debord, a alienação do espectador em favor do objeto se expressa da seguinte forma: “quanto mais o indivíduo contempla, menos vive; quando aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e o seu próprio desejo” (SdE, § 30).

Em perspectiva filosófica, a imagem é a forma final da reificação[28] da mercadoria. Isso implica, simplificando a discussão, afirmar que quanto mais o indivíduo, convocado a responder como consumidor e espectador, perde o norte de suas produções subjetivas singulares, mais a indústria lhe devolve uma subjetividade reificada, produzida em série, espetacularizada[29]. Ora, no contexto atual, o fluxo ininterrupto de imagens oferecido pela televisão, organizado segundo uma lógica da realização de desejos, dispensa o espectador da necessidade do pensamento: “a televisão, a publicidade e outros produtos da cultura industrializada dispensam o sujeito de pensar, pelo menos enquanto eles ocupam a condição de espectadores[30].

“A imagem é fabulosa, encanta e tem o poder de transcender a própria alma humana”[31].

Para o pensador Jameson,“a forma última da reificação mercantil na sociedade de consumo contemporânea é precisamente a própria imagem”[32]. Ela, como sugere Estevam, transcende a própria alma humana. Tanto isso é verdade que em 2013, os responsáveis pelos dicionários da Oxford escolheram “selfie” como a palavra do ano. Um dos motivos para esta escolha foi o fato da busca por esta palavra ter crescido 17.000% em 2013, o que confirma o seu estatuto de uma das palavras mais procuradas em um ano.  Selfie é uma palavra em inglês, um neologismo com origem no termo self-portrait, que significa autorretrato, e é uma foto tirada e compartilhada na internet. Normalmente uma selfie é tirada pela própria pessoa que aparece na foto, com um celular que possui uma câmera incorporada, com um smartphone, por exemplo. Também pode ser tirada com uma câmera digital ou webcam. A particularidade de uma selfie é que ela é tirada com o objetivo de ser compartilhada em uma rede social como Facebook ou Myspace, por exemplo. Uma selfie pode ser tirada com apenas uma pessoa, com um grupo de amigos ou mesmo com celebridades[33].

Há um fragmento de texto que pode auxiliar e radicalizar a reflexão sobre o efeito que a imagem exerce sobre os indivíduos na sociedade hodierna.

 “Quem deseja ser uma celebridade há várias formas de ser isto, seja por talento próprio em alguma área artística ou participando de algum reality show ou ser protagonista de algum fato relacionado com famosos (o que é bem comum no Brasil). Um dos famosos reality show no Brasil é o Big Brother Brasil que numa primeira fase de sua edição começa com a conhecida Casa de Vidro BBB que alguns participantes/candidatos são selecionados para fazer parte de uma Casa que é feita de vidro, instalada em uma localidade do Rio de Janeiro e que os participantes vão ser escolhidos pelo público que está observando os participantes e entre os selecionados, estes vão para a casa oficial do BBB”[34].

A casa de vidro em um sentido metafórico é bastante significativa pois auxilia e amplia a compreensão da análise feita por Ovídio e Platão: por um lado, Ovídio sugere a fonte de águas transparentes, mas acrescenta o fato de que ninguém até então tivera acesso a tal fonte; por outro lado, Platão descreve uma caverna com homens aprisionados desde a sua tenra idade, porém deixa transparecer que o ambiente é isolado e carente de luz. Já no que diz respeito à casa de vidro, ela é toda transparente e encontra-se em ambiente urbano e, como se não bastasse, é simetricamente vigiada por câmeras por todos os lados. 

A questão que se impõe agora diz respeito ao indivíduo (humano) contemporâneo e, de modo particular, aos indivíduos expostos em uma vitrine, como entendê-los? O que dizer de seres aprisionados em uma casa (vitrine), de ambos os sexos e de diferentes estratos sociais confinados e monitorados por câmeras ligadas durante vinte e quatro horas ao longo de meses? São seres que abdicam de sua liberdade e privacidade e se tornam objetos, fetiches midiáticos a fim de atenderem a demanda da indústria cultural, espetacular e consumista[35]. Esses indivíduos quase não diferem dos demais objetos expostos nas mais variadas vitrines dos muitos shoppings existentes ao nosso redor. São imagens, miragens despertando o interesse de muitos.  O diferencial reside no fato de que o ser (humano) alienado é um ser de consciência mesmo não questionando e aceitando todas as regras espetaculares as quais se expõe. Em simples palavras e com categorias heideggerianas, são seres inautênticos[36]. Constatar a inautenticidade do ser (humano) pressupõe por a pergunta pela sua autenticidade, ou seja, como falar em autenticidade do ser e alteridade (plena) do outro em uma sociedade egoísta, narcísica, individualista e intimista? Ora, a resposta a essa indagação passa pela compreensão do homem e da sociedade atual.

“Doravante impera o vazio, sem perspectivas [...] O individualismo contemporâneo afirma-se surpreendentemente, numa apatia frívola que, maciçamente se instala a despeito das realidades catastróficas, largamente exibidas e comentadas pela mídia”[37].

Duas questões podem servir de suporte para a compreensão do homem hodierno: a primeira tem a ver com o cenário presente, ou seja, como descrever a condição socioeconômica do momento? A segunda tem a ver com o próprio indivíduo: como ele se encontra em tempo de globalização e como trata os seus semelhantes? Responder a essas indagações não é tão simples e pressupõe uma abordagem sobre alguns aspectos definidores da cultura presente, tais como, cultura narcísica, individualista, imagética, hedonista, espetacular e consumista.

Há muitos termos para descrever a nossa condição sócio-cultural contemporânea: pós-modernidade, hiper-modernidade, modernidade tardia, modernidade líquida, dentre outros. Para o momento optou-se por modernidade líquida. Quem se apropria dessa metáfora é o pensador polonês Zygmunt Bauman. Para ele, a expressão modernidade líquida melhor define a atualidade em oposição à modernidade sólida[38]: o momento presente pode ser caracterizado como a era da liquefação do projeto moderno. De forma sintética:

 1.        A modernidade “era tida como um processo social, econômico, político e cultural amplo que ao longo de sua marcha histórica derretia todos os sólidos existentes. O grupo de parentesco, a comunidade tradicional fechada e isolada, os laços e obrigações sociais fundados na afetividade e na tradição, a religião, dentre outros, foram, de certa forma, ‘derretidos’ pelo progresso moderno”[39].

2.        Já os líquidos não têm uma forma definida, mudam de forma muito rápido, são fluídos que se moldam conforme o recipiente nos quais estão contidos, “escorrem por entre os dedos”, diferentemente dos sólidos que são rígidos e precisam sofrer uma tensão de forças para moldar-se a novas formas. No modelo atual de economia globalizada, do capital especulativo, de mercado aquecido e do consumo desenfreado, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem, de ganharem formas estáveis. É o tempo da fluidez, da transitoriedade, da lógica do agora, do gozo, da incerteza, da insegurança e da artificialidade. Nessa perspectiva, a vida líquida é uma vida de consumo, por projetar o mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como objetos de consumo[40], ou, com palavras de Baudrillard, “vivemos o tempo dos objetos […] existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente”[41].

Nesse cenário, os indivíduos vivem de forma irrefletida: “ignoram o que realmente buscam, o que são, o que desejam, o que é relevante ou irrelevante para suas vidas. Viver na sociedade do consumo, é viver num mundo atemporal e do esquecimento[42]. Ora, a questão da atemporalidade e da memória em uma sociedade líquida é, em certo sentido, uma clara manifestação da alienação por ser útil a reprodução da sociedade, ou, como diz Adorno, “a memória, o tempo e a lembrança são liquidados pela própria sociedade burguesa em seu desenvolvimento, como se fossem uma espécie de resto irracional”[43]. Em outros termos e com categorias de Bauman, a vida líquida é pautada por uma sucessão de “presentes”, “instantes eternos”, desprovido de passado e futuro: o tempo não é mais linear e cíclico, como costumava ser para os membros de outras sociedades. O tempo se fragmentou numa multiplicidade de “instantes eternos[44].

Uma questão que pode ser posta aqui diz respeito a esse modelo de sociedade e de vida líquidas: o que pode ocorrer à vida (humana) quando ela é pautada por “instantes eternos”, desprovidos de passado e futuro, centrado no “aqui e agora” e voltada exclusivamente para o trabalho, consumo e prazer? Qual o sentido da vida para o humano contemporâneo? Em palavras simplificadas, pode-se dizer que a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incertezas constantes, ou como sintetiza Carvalho, assiste-se à imposição do atual, do presente, do fútil, do frívolo, do culto ao desenvolvimento pessoal e do bem-estar-material, expressão da ideologia individualista-hedonista.

Nesse contexto, pôr a pergunta pelo sentido da vida parece desproposital, superado, voltado ao sólido (modernidade), agora, o imperativo é viver, expor, trabalhar, consumir de uma forma histriônica, sem grandes objetivos. Há uma metáfora – Caminhando sobre o gelo – de autoria do pensador Ralph Waldo (e recontada por Bauman) que parece ilustrar o cenário presente e que pode, perfeitamente, mensurar o quadro vivencial desse indivíduo líquido.

“Quando se caminha sobre o gelo fino a salvação está na velocidade. Caminhar é melhor do que ficar sentado, correr é melhor que caminhar e surfar é melhor que correr. As vantagens do surf estão na rapidez e vivacidade do surfista; por outro lado, o surfista não deve ser exigente ao escolher as marés e deve estar sempre pronto a deixar de lado suas habituais preferências”[45].

A metáfora, como se pode perceber, sugere movimento, não importa para onde, importa caminhar sempre e veloz, caso contrário, a fina camada racha e é o fim. Resta saber se é possível chegar a algum lugar sem um referencial pré-estabelecido, sem metas e sem objetivos a serem alcançados?  Para a modernidade líquida essa é uma questão destituída de sentido. O que realmente importa é viver o momento, precisamente, os ‘eternos instantes’.

Em síntese, pode-se afirmar que há muita semelhança entre o atual espectador, o acorrentado no interior da caverna e Narciso: eles são contempladores, não suspeitam da verdade, não questionam, aceitam passivamente as imagens sem refletirem sobre o efeito imagético acarretado. Portanto, continuam substituindo o vivencial pela aparência; o fato pelo simulacro; o real pelo ilusório (virtual) e as palavras pelas imagens, todavia, com um agravante na sociedade líquida: o humano atual é individualizado, esvaziado e ‘coisificado’ enquanto o produto a cada dia é ‘humanizado’.

O olhar para além do espelho – uma tentativa de síntese

“[...] mais do que olhar, importa reparar no outro. Só dessa forma o homem se humaniza novamente. Caso contrário, continuará uma máquina insensível que observa passivamente o desabar de tudo a sua volta” (José Saramago).

Diante de tudo o que foi exposto, cabe a indagação: como entender o reconhecimento do outro, a diferenciação, a experiência da alteridade em uma sociedade tida como narcísica, individualista, imagética, hedonista, espetacular e consumista? Pôr a pergunta pela alteridade implica necessariamente levantar a questão sobre a ética, ou seja, implica perguntar pelo sentido do outro, pelas ações que efetivam esse ser em uma cultura contemporânea.

Alteridade (Lat. Alteritas) significa “ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro”. O vocábulo alter refere-se ao “outro” na perspectiva do “eu”. Em conformidade com Ramosi e Thollii, ela “tem sua origem grega e significa diferença, diversidade. De uma forma ontológica compreende a condição de um ser distinto de outro no seu modo de ser específico ou no seu fato de ser numérico, isto é, na sua essência ou na sua existência: contrapõe-se a identidade de um ser consigo mesmo”[46]. A alteridade, no transcorrer da história da filosofia, assumiu pelo menos duas características fundamentais:

a)       O outro pode ser tomado como uma representação, um conceito, um efeito do meu pensamento. Em outros termos, “no âmbito de uma filosofia da representação, como é a filosofia cartesiana e toda a filosofia hegemônica, desde suas origens até nossos dias, o outro não passa de algo que eu mesmo crio, no pensamento. O outro sou eu mesmo[47]. Nessa perspectiva, levando em consideração o modelo atual de cultura (narcísica), pode-se dizer que o outro é utilizado simplesmente como um objeto dos meus desejos.

b)      O outro pode ser tomado enquanto tal, isto é, por si mesmo, alteridade absoluta[48]e, isso pressupõe pensar o outro como diferente, ou, em palavras de Lévinas, o eu deve tomar a iniciativa que supere qualquer forma de relação na qual não seja o eu o responsável pelo outro. A responsabilidade, nesse caso, parte do des-inter-esse pelo ser, entendido como o si mesmo. Assim sendo, a relação deve ser de responsabilidade e não simplesmente de reciprocidade: “o eu deve se colocar à disposição do outro, mesmo que o outro até o persiga”[49]. Na relação com o outro, por intermédio da linguagem, cria-se a consciência moral dos sujeitos: “a consciência ética jamais pode prescindir do encontro da voz que interpela, a partir da sua exterioridade, com aquele que a escuta, portanto, a alteridade se constitui no espaço dialógico”[50].

Para Lévinas, a tradição do pensamento ocidental, marcada pela utilização da razão para buscar a verdade do ser, personificada num eu logocêntrico, atingiu, por assim dizer, seu ápice numa confirmação da primazia desse eu. Consolidou-se o processo de anulação do outro em sua alteridade, praticado sistematicamente pela cultura ocidental ao desconsiderar as diferenças: “as inúmeras guerras, as formas de colonização, a organização de sistemas ideológicos de cunho político, religioso e/ou científico, que na maioria das vezes visaram à dominação, à exploração e destruição da alteridade, comprovam essa afirmação”[51].

Novamente vem à tona a problemática do diálogo, ou melhor, anulação sistemática do outro: “no mundo globalizado, marcado pela individualidade e pela concepção de uma ética hedonista, a tranquilidade consciente das pessoas indiferentes aos rostos que ameaçam se expor, está fadada ao fracasso”[52]. O reconhecimento do outro se dá, hoje, pelas imagens. Nesse sentido, o outro passa, mas não toca.  Fazendo uma alusão a Narciso, pode-se dizer que a maldição que aprisiona o olhar ao seu reflexo se apresenta como um viés para se pensar o ser humano e, consequentemente, sua forma de (não) encarar o outro[53].

Em termos simplificados e, com palavras de Birman, é exatamente na impossibilidade de reconhecer, assimilar e admirar a alteridade que reside o sujeito atual. A prisão na própria imagem corrói a dimensão de troca e solidariedade, interrogando o horizonte intersubjetivo. Assim, o outro, relegado à posição de artifício, de um mero objeto a ser utilizado para a satisfação do eu, restringe-se à utilidade de segurar o espelho[54]. Isso implica, necessariamente, impossibilidade de um diálogo intersubjetivo onde o outro seja visto como outro, alteridade absoluta. Implica, também, repensar a nossa postura atual perante o outro: hoje mais que nunca se faz necessário uma postura de acolhimento, de responsabilidade e de sensibilidade para com o outro. Além disso, é de fundamental importância a retomada do diálogo, uma vez que o humano é o ser por excelência dialógico: é por intermédio da ação dialógica que os humanos se dão a conhecer, podem interagir respeitosamente com as diferenças culturais, religiosas, ideológicas e, com as minorias historicamente oprimidas. Como dialogar, por exemplo, com a cultura milenar dos ameríndios sem a capacidade da escuta e sem a sensibilidade para com suas histórias? Se não revermos a nossa maneira de pensar e de nos posicionarmos no mundo, como dialogar com os milhões de irmãos negros e negras que historicamente foram escravizados, humilhados, maltratados, diminuídos, reduzidos a ‘coisas’? Enfim, qual o lugar do outro na cultura brasileira atual?

Lévinas amplia e inova na compreensão do conceito de diálogo apresentado pela tradição metafísica. Segundo ele, para que haja o diálogo são necessários abertura, sensibilidade, hospitalidade e, acima de tudo, a capacidade da escuta: não há humanidade ou relação ética sem abertura e escuta daquilo que o rosto do outro tem para nos dizer e pedir. No rosto a rosto, por intermédio da linguagem e do discurso, verbal ou não, o outro dá-se a conhecer: “todos sabemos como os gestos e, às vezes, os profundos silêncios podem ser reveladores da verdade do outro”[55]. Aqui, fazendo uma alusão a Narciso, pode-se dizer que ele não foi capaz de contemplar toda a imensidão do rosto do outro, ficou a olhar a si mesmo, não estabelecendo, portanto, uma relação ética.

Na relação ética, no encontro face a face, o eu não pode tomar posse do outro, nem o “coisificar” e nem o massificar. Conforme Lévinas, o rosto recusa-se à posse, aos meus poderes. Na sua epifania, na expressão, o sensível ainda captável transmuda-se em resistência total a apreensão. A proposta de Lévinas é fazer com que o Eu não se feche em si mesmo, mas se abra para um humanismo, acolhendo com ternura a novidade sempre constante que o rosto traz, e essa deve ser a escolha realizada pelo Eu, antes de qualquer outra manifestação[56].

Lévinas também chama a atenção para o fato de que não podemos conhecer o outro em absoluto, uma vez que ele ultrapassa todos os esquemas pré-estabelecidos, todas as definições, avaliações, conceitos metafísicos, inclusive, os discursos verbais: “a relação com o outrem ou o discurso é uma relação não alérgica, uma relação ética, mas o discurso acolhido é um ensinamento. O ensinamento não se reduz, porém, à maiêutica. Vem do exterior e traz-me mais do que eu contenho. Na sua transitividade não-violenta, reduz-se a própria epifania do rosto”[57].

No rosto do outro, toda a humanidade se torna presente: “as necessidades, as preocupações, as dificuldades e os problemas daquele rosto são também os de todos os outros rostos em igual situação e fazendo apelos semelhantes”[58]. Frente a essa afirmação, o que dizer da atrocidade acarretada sobre milhões de pessoas nas muitas guerras? Das bombas atômicas lançadas sobre pessoas? Do descaso histórico para com o continente africano? Parece oportuno, portanto, repensar o atual modelo ético centrado em uma razão exacerbada, lógica e insensível ao rosto do outro.

Em síntese, pode-se dizer que a proposta de Lévinas é oferecer uma ética centrada no rosto do outro e não simplesmente no olhar iludido. O olhar é englobante, dominador e apreensivo, ao passo que, o rosto é exterior, aberto e compreensivo, mas ao mesmo tempo, é visitação e transcendência[59]. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que da fonte de águas límpidas as grandes vitrines dos shoppings, o humano continua se deixando ser guiado pelo olhar  e não pelo rosto. O referencial, portanto, é a ética da alteridade que serve de suporte para a convivência possível e necessário no mundo globalizado, ou, nas palavras de Boff, “uma coalizão de valores que se funda na hospitalidade e na acolhida incondicional do outro, no respeito de sua cultura e na disposição para uma aliança duradoura com ele. Ou fazemos isso ou então perderemos as razões para vivermos juntos na mesma Casa. E ai sim, poderemos ir fatalmente ao encontro do pior”[60].

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sites consultados

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[1] É Pós-graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília. É coautor do livro - Filosofia: alguns dos seus caminhos no Ocidente – pela Editora Baraúna. É professor de Filosofia da Rede Pública de Ensino em Brasília.

[2] MORAES, Alfredo. Dialética da alteridade. 21ª Semana de Filosofia da UNICAP, n. 1, p. 56-66, 2001.

[3] DE CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa. Metamorfoses em Tradução. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. A tradução da obra – Metamorfoses de Ovídio - feita por Carvalho é de fundamental importância para quem deseja aprofundar-se na poesia de Ovídio. Dessa tradução, apropriamo-nos da parte que trata do mito de Narciso.

[4] “O mundo mítico é um mundo todo especial, impermeável à experiência e inacessível às nossas formas de pensamento; o homem mítico considera o mito a sua própria realidade, a sua própria verdade, não considerando a existência distinta de conhecimento objetivo (real e verdadeiro) e de conhecimento mítico; para ele, a leitura da paisagem do mundo é uma só e única.” ALMEIDA apud BASSO, Maximino. Os Pensadores Originários gregos. 2. ed. Brasília: Universa, 2002, p. 92-97.

[5] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[6] DE CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa. Metamorfoses em Tradução. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

[7] DE CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa. Metamorfoses em Tradução. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

[8] DE CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa. Metamorfoses em Tradução. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

[9] Segundo Murray Stein, “várias associações poderiam fazer com a flor narciso: ela é ‘bonita e inútil’; fenece, após uma vida muito breve; é ‘estéril’; tem um ‘perfume soporífero’ e é venenosa, tal qual o jovem Narciso, que, carente de virtudes masculinas, é estéril, inútil e venenoso”.STEIN, Murray. Natcissus. Rev. Spring, New Work, 32-53, 1976, p. 34. Para uma leitura aprofundada sobre esse mito vale a pena ler o comentário proposto por BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vols. 2. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 181-198.

[10] Grifo nosso.

[11] DE CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa. Metamorfoses em Tradução. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

[12] “Trata-se, no mito de Narciso, de uma imagem de si fugidia, reflexo que não reenvia ao objeto refletido e, portanto, só por zombaria e provocação poderia apresentar-se como objeto”, ou ainda, “A imagem é aí tanto uma presença iluminada que fascina com a ilusão de um eu/outro maravilhoso, quando uma ausência , sombreamento fatal que o fez perder-se. A visão não é mais que uma ‘sombra’ não apenas no sentido de ser um reflexo enganoso que não permite que se veja o real objeto, mas porque o reflexo do corpo que permite que venhamos a reconhecê-lo como próprio é sombreado por outro objeto: pelo outro” (FERES, Cláudia Mendes; RIVERA, Tania Cristina. Narciso na caverna: o efeito da ausência do outro. Tempo Psicanal, v. 40, n. 2, p. 359-376, 2008).

[13] FERES, Cláudia Mendes; RIVERA, Tania Cristina. Narciso na caverna: o efeito da ausência do outro. Tempo Psicanal, v. 40, n. 2, p. 359-376, 2008.

[14] SKYNNER, B. F. Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cutrix, 1974, p. 31.

[15] DE CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa. Metamorfoses em Tradução. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

[16] PLATÃO. A República [514a-517c.].  São Paulo: Edipro, 2006.

[17] PLATÃO. República VI, 511 b-c; Fedro 265 c-d; Leis VII, 344 b. Ver melhor comentário in: FEITOSA, Elisa Geralda et al. Filosofia: alguns dos seus caminhos no Ocidente. São Paulo: Baraúna, 2014, p. 112-123.

[18] Irigaray, L. (2002). A questão do outro. Labryz: Estudos Feministas, (1-2).

[19] VAZ, H.C. de Lima. Ontologia e história. São Paulo: Loyola, 2001, p. 232.

[20] ESTEVAM, José Geraldo. O reconhecimento da alteridade como possibilidade de construção de um novo paradigma na cultura ocidental em Joel Birman e Emmanuel Lévinas. HORIZONTE, v. 6, n. 12, p. 169-179, 2009.

[21] MIRZOEFF, Nicholas. Una introduction a cultura visual. Buenos Aires: Paidós, 1998, p. 53.

[22] Disponível em<http://www.dicionariodoaurelio.com/sociedade>. Acesso em 04 Fev. 2015.

[23] FERRARA, Lucrécia. A comunicação como espetáculo epistemológico. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Epistemologia da Comunicação” do XIX Encontro Anual da Compós na Puc-RJ, p. 8-11.

[24] Essa obra é uma teoria crítica (que foi publicado pela primeira vez em novembro de 1967, em Paris) que em seu esboço deixa entrever a desilusão da existência, a negação da vida tornada visível, a perda da qualidade de vida ligada à forma-mercadoria, a proletarização do mundo, ao modelo econômico capitalista, a sua forma de estruturação da sociedade.

[25] DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Para a reflexão presente será adotada a abreviação dessa obra (SdE) e as devidas teses.

[26] AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Espetáculo, comunicação e comunismo em Guy Debord. Kriterion: Revista de Filosofia, v. 48, n. 115, p. 167-182, 2007.

[27] FONTENELLE, Isleide Arruda. O nome da marca: McDonald's, fetichismo e cultura descartável: São Paulo, Boitempo, 2002, p. 285.

[28] “Por reificação, entende-se o processo de coisificação onde o próprio direito passa a ser mercadoria de consumo. As ações humanas e suas implicações deixam de ser consideradas propriamente ‘humanas’, para serem encaradas como ‘coisas’ e, consequentemente, serem vistas como substituíveis e plurais. Já no fetichismo, a aparência mascara a essência do próprio fenômeno, mascarando as relações sociais que o envolvem, e a capacidade de envolvimento de que o próprio fenômeno necessita (sem o envolvimento do humano – subjetivo -, o fenômeno – abstrato - não ocorre)”. POHLMANN, Lisiane. Sobre a categoria trabalho, reificação e fetichismo em Marx. Disponível em: <http://vermelhoaesquerda.blogspot.com.br/2014/01/sobre-categoria-trabalho-reificacao-e.html>. Acesso em: 19/08/2014.

[29] KEHL, Maria Rita. O espetáculo como meio de subjetivação. In: BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. 1 reimp. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 52-53.

[30] KEHL, Maria Rita. O espetáculo como meio de subjetivação. In: BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. 1 reimp. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 57. Ver melhor comentário a esse respeito em: DOLGHIE, Jacqueline Ziroldo; CAMPOS, Breno Martins. SACERDÓCIO, MERCADORIA E ESPETÁCULO. Uma perspectiva teórica do consumo de música evangélica no Brasil.

[31] ESTEVAM, José Geraldo. O reconhecimento da alteridade como possibilidade de construção de um novo paradigma na cultura ocidental em Joel Birman e Emmanuel Lévinas. HORIZONTE, v. 6, n. 12, p. 169-179, 2009.

[32] JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p. 12.

[33] Selfie. Disponívem em: <http://www.significados.com.br/selfie/.>. Acesso em: 10 fev. 2015.

[34] Disponível em: <http://bbb14.net/tag/vai-ter-casa-de-vidro-bbb14>. Acesso em: 29 mai. 2014.

[35] A expressão indústria cultural remete a dois pensadores da Escola de Frankfurt, precisamente, a Theodor Adorno e Max Horkheimer em sua obra a Dialética do esclarecimento. Já o termo espetacular remete a Sociedade do Espetáculo de Guy Debord.  Quanto a Sociedade consumista ela é caracteriza pelo consumo massivo de bens e serviços originado pelo avanço do desenvolvimento industrial capitalista.

[36] Heidegger, pensador existencialista contemporâneo, em sua obra Ser e tempo, trabalha a emblemática questão da propriedade do ser. Há um bom estudo a esse respeito. A angústia, o nada e a morte em Heidegger. “O ser-aí, o Dasein, imerso em sua existência, é um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], que se encontra sempre situado num contexto de vivência no mundo, e não está simplesmente lançado num espaço apenas delimitado física ou naturalmente. O conceito de ser-no-mundo é uma estrutura ontológica fundamental do ser-aí, que indica a inseparabilidade do homem e do mundo e igualmente do mundo em relação ao homem. Estar em um mundo significa habitar o mundo [...], morar nele, deter-se nele, e não simplesmente encontrar-se nele como uma coisa, um ente simplesmente dado. As coisas existem no mundo como categoriais, estão no mundo como algo que está apenas em uma outra coisa, ao passo que o Dasein está no mundo na forma dos existenciais, existindo num mundo e o habitando, se detendo nele”. WERLE, Marco Aurélio. Anguish, nothingness and death in Heidegger. Trans/Form/Ação, v. 26, n. 1, p. 97-113, 2003.

[37] DE CARVALHO, Luzia Alves. A condição humana em tempo de globalização: a busca do sentido da vida. Revista Visões 4ª Edição, Nº 4, Volume I – Jan/Jun 2008.

[38] “No mundo contemporâneo o estilo de vida entrou em crise. Os valores da modernidade, as tradições, as crenças, as verdades e as formas de conduta se relativizaram.  Essa relativização aconteceu por causa do avanço do progresso do pensamento e do conhecimento técnico e científico.  Vivemos numa época onde as instituições e os códigos sociais e morais não podem mais determinar os modos de vida. Não há mais grupos de referências que poderiam servir de modelos para guiar nossa existência. [...] O mundo contemporâneo se caracteriza pela perda de valores ligada ao mundo moderno. As noções como verdade, justiça, razão, virtude, Deus foram relativizados como consequência do progresso técnico e científico.  [...] Vivemos numa época onde  os códigos morais, sociais e institucionais já não podem mais determinar os modos de existência. Não há mais grupos que poderiam servir de modelos para a vida dos indivíduos. A experiência contemporânea é determinada pelo fim dos padrões, da tradição, dos dogmas, da estabilidade, da segurança e das verdades absolutas. Vivemos na era das incertezas, do medo e da insegurança”. SOUZA, Michel Aires de. A crise do estilo de vida no mundo contemporâneo: a boa vida e como devemos vivê-la. Blogspot. Filosofonet. Disponível em: http://filosofonet.wordpress.com/2013/04/03/a-crise-do-estilo-de-vida-no-mundo-contemporaneo-a-boa-vida-e-como-devemos-vive-la/. Acesso em: 12 set. 2014.

[39] FRAGOSO, Tiago de Oliveira. Modernidade líquida e liberdade consumidora: o pensamento crítico de Zygmunt Bauman. Perspectivas Sociais, n. 1, 2013.

[40] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 16-17. “No mapeamento das principais características da sociedade atual, destacamos alguns aspectos: a cultura do narcisismo, a difusão do individualismo, a valorização da imagem, do externo, o imediatismo, a espetacularização da vida, a cultura do consumo. Para além de uma cultura do consumo, Zygmunt Bauman concebe a ideia de que vivemos hoje numa sociedade dos consumidores, onde os indivíduos são transformados em mercadorias que, na complementação da concepção de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo, definem uma sociedade que enseja a transformação do sujeito e de suas relações em objetos. Imersos em uma cultura que prega o consumo, a efemeridade dos objetos e o hedonismo, todo e qualquer objeto torna-se extremamente desejado e rapidamente torna-se obsoleto e descartável (DA SILVA BRECHA, Marília Gabriela; LOPEZ, Nilcéa Pessoa; CAMPOS, Vanuza Monteiro. Voracidade e sofrimento psíquico na adição: considerações sobre compulsão, hedonismo e imediatismo no contemporâneo).

[41] BAUDRILLARD, Jean. La société de consommation: sesmythes, ses structures. Paris: Edition Danoël, 1970, p. 18.

[42] SOUZA, Michel Aires de. Blogspot. Filosofonet. A sociedade do consumo e a vida do espírito. Disponível em: <http://filosofonet.wordpress.com/2011/04/16/os-fundamentos-psicologicos-da-sociedade-do-consumo/>. Acesso em: 23 set. 2014.

[43] ADORNO, Theodor. Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 33.

[44] BAUMAN, Zigmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

[45] PORCHEDDU, Alba. Zygmunt Bauman: entrevista sobre a educação. Desafios pedagógicos e modernidade líquida. Cadernos de pesquisa, v. 39, n. 137, p. 661-684, 2009.

[46] RAMOSI, Flávia Regina; THOLLII, Adriana Dutra. A alteridade como critério para cuidar e educar nutrizes: reflexões filosóficas da prática. 2008. Ver também: BOUDON R, BOURRICAUD F. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática; 1993. E, ainda: ABBAGNANO N. Dicionário de filosofia. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[47] “A filosofia moderna foi marcada pela célebre verdade indubitável de René Descartes: eu penso, eu sou, que deriva para eu sou uma coisa que pensa. Quem – ou o que – é o outro, no sistema cartesiano? Ora, o outro é um produto de meu pensamento, assim como todas as outras coisas das quais posso ter certeza racional. Isto significa dizer que penso, tematizo, concebo o outro sempre na interioridade de meu ser, na interioridade de meu pensamento. O outro é um conceito, um efeito do pensamento. O outro de que falo é uma representação; isto é, não tematizo o outro enquanto outro, alteridade absoluta, mas o tematizo como um efeito de meu próprio pensamento. Em outras palavras, no âmbito de uma filosofia da representação, como é a filosofia cartesiana e toda a filosofia hegemônica, desde suas origens até nossos dias, o outro não passa de algo que eu mesmo crio, no pensamento. O outro sou eu mesmo” (GALLO, Sílvio. Eu, o outro e tantos outros: educação, alteridade e filosofia da diferença. In: CONGRESSO INTERNACIONAL COTIDIANO: diálogos sobre diálogos. 2008).

[48] “Na concepção levinasiana, o pensamento lógico-filosófico voltado para si mesmo, em que ontologicamente o que prevalece é o ser enquanto ser, relega o outro ao esquecimento, daí decorrendo toda a violência praticada contra o outro na história ocidental. Assim, sua filosofia consiste na proposta de uma nova compreensão da própria filosofia, a ser construída sobre o alicerce da alteridade como princípio ético. Para Lévinas, a ética precede a ontologia e como tal deveria nortear o comportamento do homem para a alteridade, na qual o eu é que deve se colocar a serviço do outro, como maneira de supressão da violência que perpassou a cultura ocidental” (ESTEVAM, José Geraldo. O reconhecimento da alteridade como possibilidade de construção de um novo paradigma na cultura ocidental em Joel Birman e Emmanuel Lévinas. HORIZONTE, v. 6, n. 12, p. 169-179, 2009).

[49] LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 91.

[50] “A alteridade se constitui neste espaço. Espaço que ouso chamar de dialógico, porque o Outro diferente me interpela a novas condutas e atitudes frente ao vivenciado” (RAMOSI, Flávia Regina; THOLLII, Adriana Dutra. A alteridade como critério para cuidar e educar nutrizes: reflexões filosóficas da prática. 2008).

[51] LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 91.

[52] RAMOSI, Flávia Regina; THOLLII, Adriana Dutra. A alteridade como critério para cuidar e educar nutrizes: reflexões filosóficas da prática. 2008.

[53] MONTEIRO, Henrique Moura. O outro artificial e a alteridade na cultura pós-moderna. 2011.

[54] “A satisfação possível que se apresenta ao campo das subjetividades compreende, portanto, a manipulação e a apropriação do corpo do outro. Aquilo que se desenha para além dos limites do eu se torna um instrumento, uma ferramenta com prazo de validade. Com isso, as relações inter-humanas assumem um status comercial, onde o outro, enquanto objeto de consumo, passa a ser comprável e trocável. Considerando-se ainda os moldes de uma sociedade pautada pelo consumo, a relação com a mercadoria torna-se o modelo para as relações sociais” (BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000).

[55] Afonso, M. R. (2013). A responsabilidade por outrem na ética de Lévinas.

[56] LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 176. Ver também: de Melo, P. G. R., & Síveres, L. (2012). A pedagogia da hospitalidade a partir da filosofia da alteridade em Levinas.

[57] LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. José P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 37-38.

[58] Afonso, M. R. (2013). A responsabilidade por outrem na ética de Lévinas.

[59] LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. José P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 37-38.

[60]BOFF, Leonardo. O outro é tudo. Disponível em:

<http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=14543>. Acesso em: 27 fev. 2014.