SISTEMA CARCERÁRIO DE SÃO LUÍS: lugar de ressocialização ou reduto de desiguais
Por Idbas Ribeiro de Araujo | 05/04/2013 | DireitoSISTEMA CARCERÁRIO DE SÃO LUÍS: lugar de ressocialização ou reduto de desiguais? *
Henrique Kaian Souza Fonseca**
Idbas Ribeiro de Araujo
Sumário: Introdução; 1 Desigualdade distributiva e Cárcere: uma linha tênue; 2 Um sinistro legitimado: a visão do preso e de sua família sobre o sistema penal maranhense. Conclusão; Referências.
RESUMO
O presente artigo realiza uma análise teórico-prática acerca da relação existente entre a desigualdade distributiva e a prática de delitos cometidos pelos internos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Busca ainda identificar uma estrutura hierárquica dentro do cárcere que reflete a realidade ludovicense e coloca em lados opostos, oprimidos e opressores, espoliados e espoliadores.
PALAVRAS-CHAVE
Desigualdade. Maranhão. Sistema Carcerário.
INTRODUÇÃO
Vivemos em uma sociedade onde as discussões acerca dos direitos fundamentais garantidos na Constituição de 1998 parecem se avolumar gradativamente na “ágora” daqueles que acreditam “fazer” o Direito. A justiça amplamente discutida desde os tempos de Sócrates, Platão e Aristóteles e tão almejada pelo homem desde os primórdios, tem ficado cada vez mais confusa quando voltamos nossa atenção para o estado do Maranhão.
Não é difícil perceber a tragédia social que permeia suas avenidas e becos, quando, lado a lado, a fome e a pobreza convivem com a riqueza e a luxúria, como se fossem amigas de longas datas. Esse convívio que a princípio aparenta refletir um mundo dos que teem e outro dos que não teem, exige de nós uma reflexão mais profunda sobre o assunto e nos induz a perquirir sobre a igualdade de oportunidades, as circunstâncias e as disparidades sociais que
* Artigo científico apresentado à disciplina de Filosofia do Direito do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco ministrada pelo professor Msc Isaac Reis.
** Acadêmicos do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.
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estratificam a sociedade e põem tão próximos ricos, pobres e miseráveis, visto que, “não é fácil estabelecer diretrizes sempre justas, uma vez que os princípios norteadores são quase sempre muito gerais e derivam de valores nem sempre bem definidos”1.
Neste contexto trágico de desigualdades, trataremos a justiça distributiva como ponto de cisão entre o bem e o mal, a partir de depoimentos de internos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, bem como de suas famílias. Cuidaremos ainda de perquirir acerca da estrutura intracarceragem (física e política) como reflexo da organização social da sociedade maranhense.
Por fim, tentaremos mostrar que os mecanismos responsáveis pela disseminação das construções sociais que criam e reafirmam práticas e identidades hegemônicas, discursos, significados e sujeitos estigmatizam a população carcerária como se esta fosse a única responsável pelas infrações que cometem.
1. DESIGUALDADE DISTRIBUTIVA E CÁRCERE: UMA LINHA TÊNUE
Ao longo dos tempos, a sociedade, através dos mecanismos criadores e disseminadores de ideologias criaram estereótipos do criminoso que reside dentro dos presídios maranhenses, sem ao menos buscar as causas primeiras, ensejadoras de tantas práticas criminosas ou desenvolver políticas capazes de reverter esse tão caótico quadro.
Diante de uma sociedade pluralista, Gisele Citadino2 nos faz entender em sua obra, Pluralismo, Direito e justiça Distributiva, que existe pelo menos dois significados diferentes para o pluralismo, responsáveis pelas diferentes noções acerca do justo e do injusto. De um lado estão as “concepções individuais” e do outro a “multiplicidade de identidades sociais”.
A idéia de igualdade que parece viger para grande parte da população carcerária ludovicense atende ao primeiro dos significados expostos acima e possui adeptos como o filósofo e jurista norte-americano Ronald Dworkin e o seu igualitarismo liberal3. Para esta corrente de pensamento, as desigualdades econômicas são justificadas desde que sejam oriundas das escolhas individuais e não das circunstâncias.
1 DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Paradigmas de Justiça Distributiva em Políticas Sociais. Revista de Estudos Universitários, Sorocaba, SP, v.34, n.1, junho 2008. p 03
2 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p.1
3 Igualdade como ideal: entrevista com Ronald Dworkin. Recebido para publicação em 16 de setembro de 2006. Novos estudos CEBRAP 77,março 2007 pp. 233-240.
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Parece-nos evidente que grande parte dos depoimentos dos encarcerados apontam para as circunstâncias quando, de alguma forma, tentam justificar a ida ao cárcere. As escolhas individuais encontram-se ancoradas em limites já estabelecidos por uma sociedade legitimamente capitalista. Neste contexto, existe um pêndulo que tende constantemente para a prática de ilícitos penais, oriundos de situações marginais de miséria e tantas outras desigualdades.
O cárcere, jamais almejado, passa a fazer parte da trajetória de milhares de jovens que em função das condições de vida, convivem com a tensão de a qualquer momento tentar buscar no ilícito o que entendem ser dever do Estado. Uma linha tênue que em pouco tempo pode estereotipar uma vida e rotulá-la pra sempre.
2. UM SINISTRO LEGITIMADO: A VISÃO DO PRESO E DE SUA FAMÍLIA SOBRE O SISTEMA PENAL
Em visitas ao Complexo Penitenciário de Pedrinhas entrevistamos cinquenta internos sentenciados a pena de reclusão por crimes diversos. A visão de cada um deles sobre o cárcere, o Estado e, sobretudo, às oportunidades no seio da sociedade, em muito se assemelham.
Percebemos a princípio que cerca de noventa por cento dos internos nascidos em São Luís, não possuem sequer o ensino fundamental completo. Os oriundos do interior em quase sua totalidade são analfabetos.
Quando perguntamos acerca da importância da educação, todos eles acreditam que o acesso a educação certamente teria impedido a prática de alguns delitos. Os que possuem filhos, afirmam categoricamente que se preocupam e incentivam a educação deles, como forma de alcançarem uma vida mais digna e sem passagem pelo cárcere.
Oitenta por cento dos que cometeram homicídio arrependem-se do crime que cometeram e apontam para uma mudança de vida ao saírem do cárcere. Os que cometeram assaltos condicionam a não reincidência às oportunidades que encontrarão lá fora.
Em noventa e dois por cento dos discursos analisados, atribui-se à desigualdade social o motivo de entrada e permanência no mundo do crime e o sustento da família é um dos principais motivos apontados como motivador dos crimes contra o patrimônio.
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As condições estruturais das celas bem como a qualidade da comida, contempla cem por cento dos discursos e constitui o principal motivo de motins e rebeliões, seguido de perto pelo tratamento violento de agentes penitenciários aos presos.
Analisamos ainda algumas famílias desses encarcerados e pudemos perceber que noventa e oito por cento dos familiares vivem em condições marginais, nos bairros periféricos de São Luís. A expectativa de ressocialização em torno do parente encarcerado, é muito baixa e as atribuições negativas ao Estado, também fazem parte do discurso desses familiares. Para estes internos e seus familiares, as iniciativas do estado na tentativa de ressocialização, são ínfimas se comparadas à complexidade dos problemas que permeiam suas vidas.
Uma observação muito curiosa, diz respeito ao conjunto de regras existentes dentro do sistema prisional, que se assemelha ao sistema capitalista de produção. Os internos mais conceituados4 comandam o meio carcerário e possuem súditos que pagam pedágios5 em troca de proteção. Dentre as regras existentes, está o repúdio àqueles que cometem crimes de estupro e contra crianças e mulheres. A prática de furos6 dentro da cadeia transforma o individuo que o comete em um transgressor, tal qual faz o sistema penal, com o agravante da pena capital: a morte (normalmente quando eclode um motim ou uma rebelião).
Percebemos, portanto, uma sociedade estereotipada e seu ponto de vista em relação ao mundo. Enquanto de um lado as ideologias hegemônicas criam seus castelos e excluem o produto marginal da desigualdade distributiva, estes por sua vez apontam para uma desigualdade proveniente das circunstâncias que não se justificam por não serem frutos de escolhas individuais, a exemplo do que defende o igualitarismo liberal de Dworkin.
CONCLUSÃO
O modelo maranhense de buscar nas instituições policiais e penitenciárias um subterfúgio para escamotear as desigualdades existentes na sociedade, estabelece uma verdadeira “ordem” ditatorial que massacra a população pobre e gera consequências desastrosas.
4 Expressão utilizada para identificar aqueles internos que possuem respeito em função da sua coragem e influência no mundo do crime. Normalmente são traficantes de drogas ou homicidas de autoridades policiais e judiciárias.
5 Os pedágios são contribuições em dinheiro paga por aqueles que não tem influência no mundo do crime para os que comandam a cadeia em troca de proteção no âmbito carcerário.
6 Esta é uma expressão utilizada pelos internos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas para identificar atos que não corroboram com as regras da cadeia. Normalmente isso acontece quando um preso dá sua palavra e não cumpre, ou então rouba um pertence de outro preso.
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Loïc Wacquant7, em sua obra as prisões da miséria, afirma que “devemos erguer a voz e corrigir uma tendência insidiosa – a tendência que consiste em imputar o crime antes à sociedade do que ao indivìduo”. Ousamos discordar deste ilustre autor, por entender que não podemos generalizar a culpa quando estamos diante de sociedades tão desiguais como a maranhense. Como podemos observar ao longo deste trabalho, a relação existente entre a desigualdade distributiva e a população carcerária é de cumplicidade, uma vez que mais de noventa por cento da população carcerária, bem como suas famílias, não possuem o mínimo necessário para satisfação das suas necessidades básicas.
O acesso a educação, a saúde e a alimentação é escasso e muitas vezes inexistente, contribuindo significativamente para a prática de condutas ilícitas. O modelo estrutural de contenção ao convívio em sociedade padece de muitos vícios que em nada correspondem ao propósito constitucional de recuperação de infratores. Um sistema, dentro de um sistema, que reproduz a opressão gerada pela desigualdade distributiva e cria uma rede de espoliados e espoliadores com requintes de crueldade e legitimidade.
REFERÊNCIAS
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.
DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Paradigmas de Justiça Distributiva em Políticas Sociais. Revista de Estudos Universitários, Sorocaba, SP, v.34, n.1, p.19-31, junho 2008
Igualdade como ideal: entrevista com Ronald Dworkin. Recebido para publicação em 16 de setembro de 2006. Novos estudos CEBRAP 77,março 2007 pp. 233-240.
ANDRADE, Vera. Sistema penal máximo X cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora ,2003.
WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001
7 WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p.62