"Ser" ou "não-Ser", eis a questão

Por Lucas Araújo de Oliveira Cintra | 11/06/2018 | Filosofia

O filme “o Jardineiro Fiel”, dirigido por Fernando Meirelles, conta a história de Justin, um membro do Comissariado Britânico (relativo ao Corpo Diplomático Brasileiro), que se vê em uma verdadeira odisseia para solucionar os motivos que levaram ao assassinato brutal de sua esposa. Durante a trama, ele acaba descobrindo que Tessa (sua esposa), foi morta por tentar levar relatórios comprometedores de um laboratório farmacêutico instalado no Reino Unido, à ONU, divulgando relações amistosas entre o Governo Britânico e a organização, que testa um novo medicamento em pessoas na África. Toda a trama se desenvolve por meio de flashbacks que fazem com que o telespectador compreenda as emoções do protagonista no desenvolver da situação.
Sabe-se que as relações descritas no filme são baseadas na verdade (GGN, 2013). Diversas organizações utilizam-se de respaldos internacionais - sejam institucionais, no que tange ao apoio de um Estado, sejam respaldos no capital – para se beneficiarem. O filme trata de uma questão muito mais complexa do que o maniqueísta certo e errado: pessoas já condenadas, que vão morrer, podem ser utilizadas para o benefício de milhões de outras pessoas, até então, que contribuem para a sociedade em que vivem? Ao analisar o contexto apresentado, a ideia hobbesiana, de que o homem externo ao “eu”, é mero objeto, é completamente colocada em prática. Isso desencadeia uma infinidade de questões apresentada durante o filme, em diversos momentos, mas que não serão, em sua maioria contempladas nesse texto, que se prestará em analisar a atuação da organização (o laboratório farmacêutico).
Vê-se claramente no decorrer do filme que o laboratório não age sozinho, e com absoluta certeza, não conseguiria ter a abrangência que teve, no que tange às pesquisas com cobaias humanas, aos assassinatos e a manipulação de resultados, sem o apoio, tanto do governo britânico, quanto do governo local. A única instituição que no filme, é tratada com certa neutralidade é a Organização das Nações Unidas, em seu trabalho humanitário. Isso leva a refletir sobre a atuação do poder soberano sobre a vida natural, no que se refere ao simples estado de ser vivo, biológico.
O laboratório, ao se relacionar com os governos – tanto britânico quando nativo - busca um respaldo institucional para suas ações, o que indica, de certo modo, uma espécie de legalidade. Se o governo, em sua condição de soberano, detentor dos poderes, concorda com a ação da organização, como definir a problemática? Mesmo que o discurso seja a respeito da ética, que em definição simples, é a estrutura de convívio social respaldada por uma determinada época, em um determinado local, ou seja, é uma construção histórico-cultural, como seria possível compreender e julgar atitudes como as tomadas pelo laboratório? Sabendo que essas são respaldadas pelo governo, em um contexto social, cultural e histórico extremamente diferente das comunidades em que estavam inseridos aqueles que lutavam contra essas atitudes, e, inclusive, a aqueles que pretendem escrever esse texto.
No filme, é importante ressaltar, que o laboratório, caso cedesse as pressões e retomasse as pesquisas antes de levar os medicamentos ao público, resultaria em mais três anos, no mínimo, sem contar o dinheiro investido. Portadores de HIV podem desenvolver formas mais graves de tuberculose, segundo o laboratório Cremasco (2014), o que faz com que a doença se desenvolva e acabe levando ao óbito em menos de um ano, sem o devido tratamento. Desta forma, pensando no ambiente retratado pelo filme, até que o laboratório retome as pesquisas e as conclua, todos os infectados já teriam morrido. Segundo a revista Exame (2016), o governo queniano está entre os mais corruptos do mundo, o que configura em um descaso com a situação do país. A euforia humanista, que é basicamente o que Bauman, professor e sociólogo polonês, chama de multiculturalismo, na qual estão imersas as classes média e alta dos países do Ocidente, nada faz para mudar realmente o cenário no qual vivem as pessoas que necessitam do apoio médico do laboratório, pelo fato de que, conscientemente ou não, fazem parte do conceito hobbesiano apresentado: tudo externo ao “eu”, é mero objeto, corpos sem valor.
O que adianta uma mulher britânica, casada com um diplomata, querer fazer valores próprios de um país rico e estável em uma comunidade que anseia por bens básicos? Não faz sentido, muito menos produz resultados. A ideia que é desenvolvida aqui, não é que uma organização internacional possa fazer o que bem entender, nem mesmo que seja correta a ação do laboratório farmacêutico
retratada no filme, mas, compreender que todos os infectados, ou com HIV, ou com tuberculose, morrerão, e que seria “menos pior” tentar salvar algumas vidas. A situação, como já foi dito, pede muito mais complexidade do que o certo ou o errado. Se, por ventura, a empresa parasse com os testes, estaria condenando as pessoas que poderiam ser salvas, à morte. Mas continuando, mata aqueles que já morreriam. A empresa tem poder para lidar com a vida natural, aquela que é própria daquele que vive? A vida seria algo que pode ser decidida por uma organização qualquer? Seria a vida natural, própria do Estado? Este pode definir, literalmente, quem vive e quem morre? Quem escolhe o que é bom ou ruim? As perguntas são muitas, e não existem respostas.
É próprio da cultura Ocidental, e aqui refere-se ao que consiste as classes média e alta, que, por motivos diversos, possuem certa homogeneidade, pesar as situações com base em sua própria vivência, seus desejos e suas necessidades. Como é sabido, tais desejos e necessidades, são requeridos pelas pessoas numa espécie de “escada de precisão”, quando determinadas coisas são sanadas, outras aparecem no lugar, e assim sucessivamente (PERIARD, 2011). Desta forma, como esperar que as necessidades e desejos de alguém dentro das dadas condições, sejam as mesmas que de uma pessoa vivendo em um país, Quênia, cujo grande parte da população vive abaixo da linha da pobreza (45.9% em 2005, segundo o site Actualitix).
A ética, onde se baseia grande parte das denúncias contra as organizações que fazem pesquisas como as realizadas pelo laboratório retratado no filme, também significa liberdade de escolha e voz. Voz para falar e ser ouvida. Mas para que alguém seja ouvido, primeiro esse alguém precisa ser, de fato, “alguém”. Precisa ser uma pessoa, um ser humano como todos os outros. Seus corpos precisam ter o mesmo valor que os corpos do “eu”, do “Ser”. Talvez, no dia em que essas pessoas que não são ouvidas, nem percebidas, passarem do “não-ser” para o “Ser”, se tornarem alguém, pessoas de fato, atitudes como as do laboratorio acabarão, já que, neste momento, a ideia hobbesiana do “eu” e do “objeto”, acabará.
Mas qual a conceituação que deve ser utilizada para definir o que são pessoas? Seriam cidadãos? Sendo cidadãos, pressupõe-se que sejam propriedades do Estado, sendo esse responsável por suas vidas naturais, biológicas. A complexidade do tema tende a aumentar. A argumentação abre cada vez mais brechas, fazendo com que os conceitos do bom e ruim, certo e errado, fiquem cada vez mais abstratos, mais intangíveis e relativos. Com quais pesos se deve pesar a condição do homem? Quais corpos são de fato “homens”, no sentido de “Ser”?
CREMASCO, Laboratório. Tuberculose, uma doença silenciosa que pode matar. 2014. Disponível em <http://laboratoriocremasco.com.br/tuberculose-uma-doenca-silenciosa-que-pode-matar/> Acesso em 17 de Maio de 2018.
GGN, Jornal. Os testes clínicos dos grandes laboratórios na África. 2013. Disponível em <https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/os-testes-clinicos-dos-grandes-laboratorios-na-africa> Acesso em 17 de Maio de 2018.
HOBBES, Tomas. Leviatan. s/a. Disponível em <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf> Acesso em 19 de Maio de 2018.
PERIARD, Gustavo. A hierarquia de necessidades de Maslow – o que é e como funciona. 2011. Disponível em <http://www.sobreadministracao.com/a-piramide-hierarquia-de-necessidades-de-maslow/> Acesso em 19 de Maio de 2018.
ACTUALITIX. Quênia: população abaixo da linha da pobreza (%). 2005. Disponível em < https://pt.actualitix.com/pais/ken/quenia-populacao-abaixo-da-linha-de-pobreza.php> Acesso em 19 de Maio de 2018.
EXAME. Esses são os 40 países mais corruptos do mundo. 2014. Disponível em < https://exame.abril.com.br/mundo/estes-sao-os-40-paises-mais-corruptos-do-mundo/> Acesso em 19 de Maio de 2018.

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