SENHORES E SERVOS

Por João Felinto Neto | 15/02/2015 | Crônicas

O vento soprava a areia quente fazendo pequenos redemoinhos, enquanto eles se abrigavam na casa de pedra numa reunião extremamente secreta, porém já sabida por seus Senhores. Os descontentes Servos discutiam sobre a questão da desigualdade social, por que tinha de haver Senhores e Servos e não Senhores e Senhores?

Judas, um Servo traidor estava infiltrado na tal reunião da qual já tinha repassado ao seu Senhor Maomé o dia em que seria realizada, observava com atenção quem eram os cabeças da revolução, talvez a primeira da história e as diretrizes.

           Mustafá destacava-se como um dos principais líderes, estava exaltado, com movimentos das mãos discursava sobre as devidas providências a serem tomadas: - Fica definido que se acaso não for cumprida nossa única exigência, a de que todos sejam iguais, extinguir a classe de servos para que todos sejamos Senhores, executaremos nossas ameaças, as quais foram discutida e registradas nos autos e grafada em um folheto que não será enviado por um mensageiro aos Senhores, mas apresentado pessoalmente por um dos nossos no dia D, de Decisivo.

           Naquele mesmo dia, o servo Judas relata ao seu Senhor Maomé, todo o conteúdo da assembleia, os nomes dos principais membros da revolução e o que foi discutido inclusive uma cópia autenticada do dito folheto com as ameaças. Concomitantemente Maomé organiza uma reunião de emergência com todos os outros Senhores.

           Moisés, entre os senhores o de mais astucia, lê em voz alta o conteúdo da dita copia do folheto para todos os outros ali presentes que se agitam e falam alto expressando indignação. Maomé pede silencio e acalma os ânimos enquanto Moisés volta a falar: - Senhores, Senhores, digamos que hipoteticamente eu possa transformar essa revolta numa reviravolta, ou seja, melhor explicando, trasmudar as ameaças dos servos em mandos dos Senhores a serem cumpridos por aqueles. Prestem bem a atenção, a minha ideia é que cumpriremos à exigência de que todos sejamos iguais, só que invertendo a situação, em vez de todos sermos Senhores, como eles pretendem, todos nós seríamos servos.

           Nessa hora houve um alarido de revolta, entre os Senhores: - Não nos rebaixaremos a servos, replica o Messias;

               - Eu herdei meu senhorio do meu pai e não abrirei mão dele, replica Baltazar.

           Maomé apazigua os ânimos pedindo silencio: - Calma senhores, quer dizer servos, não Senhores mesmos, ou seja lá o que for, deixemos Moisés se explicar.

           - Pois não. Não é necessário pânico, tudo será apenas de fachada, nós os enganaremos, o povo é muito tolo, é muito susceptível, faremos com que nossos servos acreditem piamente que é verdade, confiem em mim, deixem por minha conta e risco.

           Moisés sempre tivera a confiança dos outros Senhores, além de uma grande capacidade de persuasão.

           Chega enfim, o dia D, estabelecido pelos servos como o dia da decisão final, do destino, todos os servos estavam de pé diante de um palanque improvisado, provavelmente o primeiro da história, Maomé pra variar acalmava os ânimos, ele é bom nisso:

- silêncio minha gente, queremos que escolham entre vocês um representante para subir até aqui e nos repassar mais um vez suas justas reivindicações.

           Depois de um tumultuado movimento de mãos e dedos, no par ou impar, sobrou para Mustafá que cheio de si e dos outros, sobe no palanque.

           - Nós só temos uma única exigência, igualdade, que de hoje em diante todos sejamos iguais, todos sejamos Senhores. Porém, se essa exigência não for seguida a risca, nós daremos cumprimento às nossas ameaças.

           Num gesto de extrema dignidade retira do bolso o maldito, que dizer o dito folheto no qual contém as ameaças e o entrega nas mãos de Moisés que o recebe com muita probidade e pede com delicadeza que Mustafá desça para escutar junto aos outros sua declaração. Depois finge que lê pela primeira vez o tal folheto e do alto do palanque olha a todos e dirigi-lhes a palavra:

- Senhores, quero dizer, servos...

           Há um tumulto, um burburinho, mas Maomé pede silêncio mais uma vez, num movimento de mãos acalma a todos, eu não disse que ele era bom nisso.

           - Mais que uma decisão, continua Moisés, tenho uma revelação a fazer, a pedido de meus amigos os Senhores que aqui se encontram, para lhes dar uma luz quanto a reivindicação, aliás justa, de vocês. Fui até o monte, onde tenho um pequeno castelo para refletir sobre o assunto. Eis que à noite, tendo eu perdido o sono e olhando as estrelas, de repente ouço uma voz vinda do céu que me ordena, nessa hora ele faz uma voz como se ecoasse, Moisés, tudo que lhe direi, deixarei escrito em uma tábua para que repassasse a todos. Eis aqui a tábua.

           Enquanto isso Maomé apresenta uma tábua de pau branco (Nesse tempo ainda era fácil se encontrar no mato) lixada e pintada com grandes caracteres, tendo como título, os mandos do Senhor.

           - Ele me disse, prorroga a enrolação Moisés, eu sou seu Senhor e você é meu servo. E que isso sirva para todos os outros, todos são meus servos. Quem não obedecer aos meus mandos será duramente castigado. A voz calou-se e diante da escuridão eu vi um pé de carrapicho pegar fogo e perto dele essa bendita tábua que está nas mãos de Maomé.

           Fez-se um enorme silencio na multidão e muitas caras de espanto, até aquela data nunca se falara em uma divindade, sendo assim não entendiam bem o que se passava, ficando todos com uma interrogação na cabeça.

Aproveitando o suspense, Moisés muito perspicaz, explica detalhadamente toda aquela história que ele havia elaborado com tanta dedicação e cuidado para não deixar ponto sem nó, provavelmente ali nasceu a religião, deixa pra lá. Moisés prossegue com o discurso: - O que isso quer dizer, que se nós Senhores, somos servos, todos somos iguais, não como vocês queriam, que todos fossemos Senhores. Igualdade lembram, a principal e única exigência. E por mera coincidência os mandos do Senhor contradizem suas ameaças: o primeiro mando amar ao seu Senhor, contraria a ameaça do servo odiar ao seu Senhor; o segundo mando não matar, contraria a ameaça do servo matar o seu Senhor; o terceiro mando não cobiçar a mulher do próximo, contraria a ameaça do servo ficar com a mulher do seu Senhor depois dele morto; o quarto e último mando não roubar, contraria a ameaça do servo ficar com os bens do seu Senhor.

           Nessa hora há uma ovação e louvores ao Senhor vindo da multidão que começa a se desfazer pois cada servo segue para cumprir suas atividades habituais e em contrapartida cada Senhor segue para sua propriedade para dar ordens, depois é claro da comemoração pelo desfecho estupendo e dar graças ao Senhor, Senhor Moisés óbvio, o arquiteto de toda aquela história maluca.