SEGUNDO TURNO
Por Claudia Curcio | 08/01/2009 | Contos
Quando a campanha eleitoral começava na tevê a vida de Circe virava de perna pro ar. Tudo em razão de ter sido escolhida para mesária já na primeira eleição da qual participou. Até pensava em aderir a um partido qualquer, só para fugir do compromisso, mas Ademar era contra, já que a concentração de homens, que pudessem azarar sua esposa, é maior nesses comícios e encontros partidários. Por essa razão preferia vê-la levantar cedo no domingo a distribuir panfletos pelas ruas.
Aquele dia não foi diferente. Um gole de café preto, meio morno, bebido às pressas, duas bananas e um sanduíche para o almoço, mais uma garrafa térmica com suco de maracujá. O Ademar fazia gemer o motor do Opalão azul, a Circe, ainda cambaleando de sono acomodava, no berço, a menina, que dormindo aguardava o retorno do pai. Ia contrariada, cansada de fazer o que não gostava, do jeito que não queria. Casou porque tava barriguda, senão tivesse, não teria casado com o primeiro homem que lhe apareceu na vida, mas fazer o quê? Tinha mais era que se acostumar e guardar as queixas para lavar junto à louça da janta.
Estalou um beijo no beiço largo do Ademar, disse que ia ligar de um orelhão assim que terminasse tudo, ele olhou sério para ela, comentou que levaria a menina para a casa da mãe dele, Circe, sabida de sua predestinação tinha a certeza de que Ademar ia botar mulher pra dentro de casa, como fazia, isso segundo a vizinhança. Baixou a cabeça.
Ele:
– Vou beber um trago com o Gordo – limpando a garganta – almoço na mãe, depois venho com a Bruna te pegar.
Desceu, o colégio eleitoral ficava numa zona afastada do centro. Lá estava o zelador, calçando alpargatas e um boné. Passou rente a ele sem dar ao menos “Bom dia”, pois tinha certeza de que o marido a espiava, então preferia passar a grosseira que levar uma bordoada ao pé do ouvido. Ademar ficava muito violento por conta do ciúme, mais porque a Circe era uma mulher bonita.
Subiu até a sala, as outras pessoas, uma moça risonha e de cabelos encaracolados e um jovem com grossas lentes já estavam a postos, dessa vez cumprimentou-os com um tímido “oi”, imaginando que possivelmente o marido pudesse ter dado um “chega-pra-lá” no zelador e a seguido. Sentou-se na cadeira do meio, como sempre ditava os números para o rapaz computar na maquininha. Reparou que, desde a última eleição o casal estava mudado, a moça havia tingido os cabelos de loiro e ele estava noivo. Quanto a ela, era impossível saber que, nesse intervalo de dois anos, tivesse tido nenê, demais a mais Ademar a obrigava a usar a aliança na mão esquerda mesmo quando recém começavam a namorar.
– Isso é pra impor respeito – enfiando o anel, que apertava e a fazia premer os olhos – tu já tem dono.
Sentia-se como uma cadela ou outra fêmea qualquer, a qual pode-se meter uma coleira com o nome e endereço de seu proprietário.
Como o movimento ainda fosse pouco o casal pôs-se a conversar, ela continuava firme, retida a lembranças, o jeito como o Ademar a abordou depois daquela festa:
– A boneca quer dançar? – dependurado num copo de cerveja: – tão bonita – resvalando os dedos porosos nas suas bochechas.
– Cai fora , já tenho par. Nisso grudou-se ao primo Evandro, que desavisado com o tamanho do oponente gritou:
– Te liga meu, a mina não é pro teu bico.
A Circe até
tentou apartar, houve confusão e, não é que o Ademar deu uma coça no coitado do
Evandro, que estava ali só para acompanhar as primas que a mãe insistia
– Vamos votar – sugeriu a moça loira.
Os outros dois acordaram. Circe ditava, o rapaz, Odair, lembrou ela, passava os dados para a maquininha enquanto a loira ia para detrás da cabine. Revezaram-se, quando chegou a vez dela o rapaz exclamou:
– Circe – e rindo – nunca iríamos acertar – justificou – estávamos apostando qual era teu nome, achei que fosse com “A” ela chutou no “J”.
– Não lembrávamos – corrigiu a loira – eu sou a Daiane – quebrando o gelo.
– Eu sei, na última eleição teu cabelo era castanho – e menos séria – e o Odair não havia noivado.
O rapaz ficou sem graça. A moça calou-se. Circe baixou os olhos, sentiu-se indiscreta. Nisso uma pessoa apareceu, cumpriram os procedimentos, veio mais outra e outra, a coisa toda começou a ficar tumultuada. Igual ficou sua cabeça quando o Ademar apareceu novamente à porta da casa, queria e muito falar com ela, trouxe um buquê de flores ordinárias, às quais estendeu à mãe da Circe, a velha, comovida tratou de chamar a filha:
– O moço, aquele que te trouxe ta na sala – a velha olhando com desprezo para a moça, ordenou: – vê se dá um jeito nessa cara, marido hoje ta em falta!
A Circe foi. Uma flor no cabelo, um vestido de cetim, bastante pintura e a sandália, presente de quinze que a madrinha deu. O Ademar ficou empertigado, teve que disfarçar a reviravolta que acontecia dentro das suas calças. Circe estava linda, apertou as mãos dela, frias como cubos de gelo, pediu desculpas. Conversaram, riram, convidou-a para sair, pediu permissão para a mãe que não foi contra. A Circe foi se acostumando com ele, foi gostando da companhia, foi cedendo, cedendo até que ele sugeriu:
– Queria te levar para um lugar mais calmo.
O Odair disse que tudo bem, que não se importava com a observação dela, a Daiane, ajeitou-se na cadeira, lançou o corpo para frente:
– Tu casa quando?
– Antes do nenê nascer – sério – a coisa ta indo muito depressa – corando.
– Tu engravidou a guria? – gracejou a loira.
– Se ela diz que é meu...é meu – deu de ombros. O rapaz era o tipo que não atrai muito o mulherio, pouca musculatura, miopia aguda, mas por dentro, tinha algo que faltava ao Ademar e, que a Circe não sabia ao certo o quê era.
– Eu também casei grávida – disse.
Os dois voltaram a atenção para ela, mas vinha um senhor que precisava ser ajudado em sua cadeira de rodas.
– Minha princesa, a gente casa e fica tudo bem – agarrando-a pela cintura, não precisa ter medo de mim – e beijando-a no pescoço – tu vai gostar.
Uma, duas, na terceira vez pegou barriga. Ficou assustada o Ademar dizia que era muito natural a menstruação da mulher atrasar, mudou de idéia quando o ventre dela começou a aparecer. Prometeu uma casinha num bairro nobre e depois tinha trabalho fixo na metalúrgica, ela podia largar o colégio e ficava tudo certo.
– É uma barra – desabafou o rapaz – eu recém ingressei na faculdade e vou ter que largar.
– Faculdade de quê? – Daiane.
– Administração.
– Ah...eu to cursando Pedagogia, segundo semestre.
– Fazer o quê – conformado – fiz cagada...agora danou-se.
A Circe, pensativa quis participar da conversa, mas sem saber por onde começar:
– É complicado, já sabe se é menino ou menina?
Outra pessoa entrava. Calaram-se, lá fora começou a formar-se uma extensa fila. Os três só conseguiram reatar a conversa meia hora depois.
Conforme se passavam os meses o Ademar ia mudando. Primeiro foi o descaso para com as promessas, a casa tinha três cômodos, quarto, cozinha e um banheiro com azulejos descolando, numa vila distante do centro, prometeu reforma, mas o dinheiro foi curto. Acomodou-se e não largou o hábito da bebida, o sagrado aperitivo depois do serviço. E o pior é que exigia disposição da Circe, ainda que o hálito dele lhe causasse náusea. Ademar passou a rechaçá-la porque Circe, como toda gestante, estava engordando, então aliviada trazia a certeza de que o dinheiro da reforma alimentava uma ou duas putas que atendiam, melhor que ninguém, as vontades do marido.
– É um menino – gabou-se.
– E como vai se chamar – interpelou a loira.
– Não sei – desconversando – Talvez Fladson, Júnior...
A Circe criou coragem, extraiu uma fotografia da bolsa, nela estavam ela, o Ademar e a filha:
– A minha se chama Bruna e tem um aninho e dois meses.
Novamente a Daiane:
– Ai que gracinha – e apontando a mão de unhas bem feitas – esse deve ser o maridão...
– É – assentiu, estendendo o retrato para Odair que se deteve na escrita da camiseta do Ademar: “ Não cobiçar a mulher do próximo - Quando o próximo estiver próximo”, a Circe percebeu e emendou:
– Foi no dia do aniversário dele, os amigos deram de presente.
– Legal – disse o rapazola.
– Acho Júnior muito feio – interpelou a Daiane – Odair Júnior...éca...parece nome de cantor brega.
Todos riram, a Circe sentiu-se feliz, de alma lavada, como dizem, há tempo não conseguia gargalhar discreto e gostoso, sem os olhos do Ademar vigiando.Nova fila. Recompuseram-se. Enquanto os eleitores revezavam-se na cabine, ela torcia pelo segundo turno.