São Cristóvão, o Clube Cadete
Por Laércio Becker | 25/01/2012 | SociedadePor: Laércio Becker, de Curitiba-PR
No século III d.C., na região da Lícia (hoje, parte da Turquia), um cidadão bem forte chamado Óferus, Réprodo ou Relicto vivia de ajudar as pessoas a atravessar o rio Xantos. Até que um dia carregou o próprio Cristo nos ombros, fato esse que motivou sua conversão ao cristianismo. Foi então batizado Christophoros (Cristóvão), ou seja, “aquele que carrega Cristo”. Como converteu muitas pessoas e morreu martirizado pelos romanos, foi canonizado no século IV. Em razão do transporte que realizava no rio Xantos, virou o padroeiro dos motoristas.
No Rio de Janeiro, por volta de 1627, os jesuítas construíram uma igrejinha dedicada ao culto de São Cristóvão, junto à praia que ganhou o mesmo nome. Essa praia era muito freqüentada por pescadores, que amarravam suas canoas perto da porta da igrejinha.
Como a enseada que ali existia – antes das obras de aterramento – era propícia ao remo, e os citados pescadores que o digam, foi num barracão na vizinhança dessa igrejinha que, em 12.10.1898, quatorze atletas fundaram o Grupo de Regatas Cajuense. Mais tarde, o clube mudou sua sede para outro barracão mais adiante, na mesma praia. Em 12.09.1901, em razão de uma fusão com o Grupo União Náutica, mudou-se para a sede deste, na Quinta do Caju. Em 1902, trocou de nome para Club de Regatas São Cristóvão.
Um dos maiores atletas do CR São Cristóvão foi Abrahão Saliture. Segundo Victor Andrade de Melo, ele foi “um dos atletas mais renomados e mais importantes dos primeiros anos de estruturação do campo esportivo brasileiro”. Apesar de um defeito no braço, venceu inúmeras competições de natação (de curta e longa distância), remo e pólo aquático, desde 1898. Aos 37 anos, competiu nessas três modalidades na primeira Olimpíada de que participou o Brasil, em 1920.
Pelo CR São Cristóvão, Abrahão Saliture venceu a 3ª (1923) e a 4ª (1924) Travessias da Guanabara. Essa competição de natação, inaugurada em 1921, tinha um percurso de 4.100 metros que ia da ilha da Boa Viagem, em Niterói, à praia de Santa Luzia, que existia no Rio de Janeiro, antes de ser aterrada. Aos 49 anos, ainda estava em forma para disputar os jogos olímpicos de 1932. Provavelmente, foi o primeiro atleta olímpico que passou pelo clube.
Em 05.07.1909, na casa de João Batista Rollo, na Rua Bela (então Rua Bela de São João, antiga Rua dos Quartéis), dezenove outros esportistas fundaram o São Cristóvão Athletic Club, o grande campeão de 1926 (conquista minuciosamente descrita em livro de Gustavo Côrtes e Raymundo Quadros), dedicado ao futebol e outros esportes terrestres. Sua primeira partida foi uma ímpia goleada de 5x1 sobre o Piedade FC, em 01.08.1909.
Segundo Adolpho Schermann, o primeiro campo do São Cristóvão foi instalado no terreno da residência em que foi fundado. Depois, mudou-se para o “Buraco Quente”, junto a uma pedreira da Ladeira do Barro Vermelho (hoje Rua Fonseca Teles). De lá, o time passou a um dos campos do Campo de São Cristóvão (então Praça Marechal Deodoro), onde treinava e jogava até que, na gestão do presidente Guilherme de Almeida Brito, adquiriu um terreno no nº 200 da Rua Figueira de Mello, próximo ao rio Joana.
Foi nesse endereço onde inaugurou seu campo, com o lançamento da pedra fundamental das arquibancadas, em 07.09.1915, com uma vitória de 1x0 sobre o America. Mas ainda era apenas um campo. Estádio mesmo só foi inaugurado em 23.04.1916, com corrida, esgrima, luta romana e duas partidas de futebol: na preliminar, São Cristóvão (segundos quadros) 2x1 Palmeiras AC (primeiros quadros; um clube do bairro); na partida principal, São Cristóvão 1x1 Santos FC (sim, o próprio, em seu primeiro jogo interestadual; o primeiro interestadual do São Cristóvão foi em 15.11.1915, vitória de 5x3 contra o CA Ypiranga, de São Paulo). O gol inaugural foi de Heitor Pinheiro, aos 14 do 1º tempo, para os donos da casa. E, em 20.06.1934, foi a inauguração dos refletores, tendo por paraninfo o America FC.
A arquibancada de madeira tremia, rangia e estalava durante os jogos. Até que, em 19.09.1943, aos 18 do 1º tempo de São Cristóvão x Flamengo, quando o rubronegro vencia por 1x0, parte da arquibancada superlotada (era jogo para o São Januário, segundo editorial do Jornal dos Sports) desabou e 224 torcedores foram hospitalizados. No dia 22, a partida prosseguiu no estádio do Vasco, o São Cristóvão empatou a partida e a receita do jogo foi destinada aos feridos no acidente.
Graças a isso, o clube resolveu substituir a arquibancada de madeira por outra de concreto, que foi inaugurada em 29.06.1946, numa vitória de 3x1 sobre o vizinho de bairro, o Vasco (algumas fontes informam placar adverso de 3x5 para o time da Colina). É lá que está seu estádio até hoje, com capacidade para 3 mil torcedores – o recorde foi de impressionantes 19.040 torcedores, em 14.07.1926, numa derrota de 2x3 para o mesmo Vasco. Seu nome oficial é Estádio do São Cristóvão, mas também é conhecido como “Figueirinha” (interessante, porque a grande maioria dos estádios é conhecida por um aumentativo).
Em 13.02.1943, o CR São Cristóvão e o São Cristóvão AC se fundiram no São Cristóvão de Futebol e Regatas. O Clube de São Cristóvão Imperial – clube social e recreativo então conhecido apenas como “Clube de São Cristóvão” (mudou de nome em 1960) – foi convidado, mas não participou da fusão. Pena, pois a data de fundação do clube resultante retroagiria para 16.12.1883. Curiosidade: naquela época, o Imperial ficava no Campo de São Cristóvão e atualmente está na Rua General José Cristino, nº 19, mas de 1949 a 1959 ele era vizinho de rua do Clube Cadete, pois instalou-se provisoriamente na Rua Figueira de Mello, nº 426, 2º andar.
Em 1953, o governo desapropriou o terreno da Quinta do Caju, para as obras de ampliação do porto, forçando o clube a mudar-se para a Av. Brig. Trompowsky (Armando Figueira Trompowsky de Almeida, Ministro da Aeronáutica no governo Dutra; não confundir com Roberto Trompowsky Leitão de Almeida, que deu origem à Av. Marechal Trompowsky, no bairro Usina), nº 580, perto da ponte do Fundão, onde construiu sua Sede Náutica em 1954 e 1955.
O clube disputou as regatas assiduamente até 1962 e de forma mais esparsa até 2001. Infelizmente, desde então, o São Cristóvão não tem participado de competições de remo com regularidade (parece que ensaiou um retorno em 2010). Mesmo assim, para o lazer dos sócios e o garimpo de novos talentos esportivos (como Ronaldo Fenômeno), o clube mantém a sua Sede Náutica, com dois campos gramados (um para futebol de campo, outro para futebol soçaite), uma cancha de areia, uma quadra de piso de cimento, uma piscina, o Ginásio Esportivo Armando Novais (coberto), restaurante, bar, quatro vestiários, sauna, dez banheiros, quinze funcionários, churrasqueiras e galpões abertos, em que os sócios fazem restauro e manutenção de embarcações. Tudo isso por módicas mensalidades, que vão de R$ 10,00 a R$ 20,00, depedendo da categoria – vale a pena. Na secretaria da Sede Náutica, pode-se adquirir camisas, calções, porta-chuteiras, flâmulas e adesivos do São Cristóvão – expediente: diariamente, das 8h às 16h.
Oxalá as obras de despoluição da baía da Guanabara, para as Olimpíadas de 1916, revalorizem a sede náutica e dêem ao São Cristóvão as condições para um glorioso retorno ao remo.
A mascote do São Cristóvão é o Carneiro (ver o capítulo “O burro Faísca”, em nosso artigo “Animais em campo”).
Quanto a apelido, o clube tem dois: São Cri-Cri (ver nosso artigo “A gramática dos nomes de clubes brasileiros de futebol”, item 2.4.8) e Clube Cadete, porque nele os jovens militares praticavam educação física – Raymundo Quadros cita os Marechais: Osvaldo Cordeiro de Farias (Ministro do Interior de Castello) e Zenóbio da Costa (Ministro da Guerra de Getúlio); os Generais: Canrobert Pereira da Costa (Ministro da Guerra de Dutra), Newton Estilac Leal (Ministro da Guerra de Getúlio), Adhemar de Queiroz, Dimas Siqueira de Menezes, Ernesto Dornelles, Jorge Santana e Valdemar Barroso Magno; e os Almirantes: Francisco Barroso Magno e João Germano Pereira Gomes.
A propósito, interessante a histórica gravação que Sílvio Caldas fez, em 1950, da Marcha do São Cristóvão (adotada como hino), pela gravadora Continental, em 78 rpm (juntamente com a Marcha do Vasco). Composta por Lamartine Babo, ela tem um arranjo meio marcial e é executada aparentemente por uma banda militar (sobre o assunto, ver nosso artigo “Influências carnavalescas no futebol carioca”). Neste caso, tudo indica que a intenção foi refletir, na música, o perfil militar do Clube Cadete.
Esse perfil também se reflete no Estatuto do clube, aprovado em 1968 e revisto em 2011, cujo art. 8º, alínea “a”, define, entre os membros de honra, os “Comandantes das Escolas Militares, para oficialato, das Forças Armadas”.
Na realidade, a tradição militar do bairro vem de longa data. A vizinhança do Campo de São Cristóvão, tradicionalmente, era ocupada pelo pessoal da caserna. Tanto que as ruas do bairro homenageiam militares importantes, como General Almério de Moura, General Argolo, General Bruce, General Canabarro, General Padilha, Coronel Cabrita, Capitão Félix e, é claro, Figueira de Mello. O Tenente-Coronel Francisco Frederico Figueira de Mello, natural de Sobral (CE), foi um comandante do 26º Corpo de Voluntários da Pátria, morto na Guerra do Paraguai, em 29.10.1866, acidentalmente atingido por um sentinela do seu acampamento.
Antigamente, a Rua Figueira de Mello chamava-se Caminho da Feira, pois era usada pelos tropeiros, viajantes e boiadeiros, para acessar um rossio (praça larga) no atual Campo de São Cristóvão, onde faziam suas transações comerciais (depois, a feira nordestina). Nos anos 1960, a rua passou a se concentrar no comércio de peças e acessórios de automóveis. Na década de 70, um viaduto a descaracterizou completamente – e levou junto uma parte da arquibancada do Estádio do São Cristóvão. De rua clara e larga, passou a ser estreita e escura, abalando seu tradicional comércio.
Considero interessante transcrever os artigos do Estatuto do clube, que tratam das cores e símbolos do São Cristóvão. Note-se que a rara camisa cor-de-rosa, embora de uso primordial dos esportes aquáticos (p.ex., o remo), também pode eventualmente ser utilizada nos terrestres (p.ex., o futebol) – sobre a origem da cor-de-rosa em seu uniforme, ver o nosso artigo “Camisas de clubes de cores diferentes”:
Art. 108. O São Cristóvão de Futebol e Regatas adota, como insígnias próprias os seguintes símbolos:
a) CORES: branca, preta e rosa, em conjunto;
b) BANDEIRA: formato retangular, campo branco com escudo oficial ao centro, circundado por um friso rosa de 5 (cinco) milímetros de largura;
c) ESCUDO EMBLEMÁTICO: contorno contendo na parte superior de sua área, no ângulo esquerdo, um círculo róseo onde, em preto, figuram uma âncora, um estrela, um remo e um croque, de cuja periferia divergem, em forma de leque, 11 (onze) raios brancos e 11 (onze) pretos; logo abaixo, divide a área uma listra branca em diagonal, da direita para a esquerda, onde se inscreve o nome ou a sigla do Clube; partem daí 5 (cinco) listras brancas e 6 (seis) pretas, da mesma largura, dispostas paralela e verticalmente, terminando no semi-círculo que forma a parte inferior do contorno;
d) FLÂMULA: formato em triângulo isósceles, campo branco com escudo oficial no terço mais amplo, circundado por um friso rosa;
e) TRAÇADEIRA: fita branca de 9 cms. De largura por 16 mas. De boca, com escudo oficial;
f) FAIXA: fita branca de 9 cms. De largura (tamanho variável para tiracolo) com escudo oficial na parte inferior e roseta com as cores estatuídas.
Art. 109. O São Cristóvão de Futebol e Regatas conserva para suas apresentações desportivas os uniformes tradicionais das entidades fundidas:
1) DESPORTOS TERRESTRES – camisa branca com escudo oficial no peito (lado esquerdo) e calção branco com listra preta vertical no sentido das costuras externas.
2) DESPORTOS AQUÁTICOS – camisa rósea com escudo oficial no peito (centro) e calção preto.
§ 1º. Os atletas, em geral, apresentar-se-ão com os uniformes previstos neste artigo, todavia, de acordo com a modalidade do desporto e a necessidade momentânea, os praticantes dos desportos terrestres poderão utilizar o uniforme nº 2 e os praticantes dos desportos aquáticos, o uniforme nº 1.
§ 2º. Aos uniformes não poderá ser acrescentado nenhum distintivo extra além do número de posição ou ordem, ou luto quando for determinado ou permitido.
OBS.: No arquivo PDF em anexo, fotografias do clube, tiradas por mim de 2010 a 2012.
HINO DO SÃO CRISTÓVÃO (autor: Lamartine Babo)
São Cristóvão, São Cristóvão
Teu passado é tão belo
Quantas vitórias em Figueira de Mello.
Quando vences outro clube
Oh! São Cristóvão pertences
Aos corações sãocristovenses.
Estimulam sua fibra extraordinária
Os grandes feitos do saudoso Cantuária.
(Refrão:) Avante São Cristóvão
Por teu bem, por nosso bem
Pela grandeza dos esportes
Que esta terra tem.
És de um bairro cuja história
Tem um valor profundo
Bairro ditoso de D. Pedro II.
Quando vais à Zona Sul
Jogar com um clube bem forte
Tens a torcida da Zona Norte.
São Cristóvão, São Cristóvão
Teu passado é tão cheio
Aos teus rivais inspiras sempre receio.
(Refrão.)
FONTES:
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