SANTO ANTONIO FUJÃO

Por João Cândido da Silva Neto | 22/04/2011 | Literatura

SANTO ANTONIO FUJÃO


Fez porque quis! Todo mundo aconselhou, falando por uma boca só: não vá, decline deste honroso convite, moça donzela que serve de testemunha em casamento fica pra titia, você não deve ir!
Mas, não, encasquetou! Teimosa igual mula quando empaca em beira de estrada! Pode esporear e açoitar-lhe as ancas a mais não poder que ela não sai do lugar! Fica ali, paradinha. Não mexe uma orelha nem sacode o rabo. Bicho de grande serventia, mas decidido nas atitudes!
Mas sabe-se que neste mundo três coisas não têm jeito: fogo morro a cima, água morro a baixo e mulher quando quer!
Pois ela fez deste jeito, seguiu o roteiro da escrita! Empinou o nariz, saracoteou com as mãos nas cadeiras e "vou porque vou, é minha amiga de infância, não posso afrontá-la negando-me ao usufruto de tão portentoso deleite...". Pronto. Deu no que deu...
Agora tá aí. Moça prendada, de acetinada formosura, mimoseada com os mais arrebatados encantos, de corpo escultural ? não se pode negar o que os olhos veem -, mas avançada em anos, sem que encontre um pretendente que seja, unzinho só, pra mode conduzi-la às tão sonhadas honras do himeneu.
É desse jeito! Até Santo Antonio, pobrezinho, estressado por tantas e tão agoniadas súplicas, sempre alternadas por ameaças e castigos ? como o de retirar dos seus braços e esconder a imagem do menino Jesus ? só achou um jeito de pôr cobro a tão desapiedadas arbitrariedades: sumiu. Escafedeu-se sem deixar rastro.
Já não era sem tempo, coitado. Vivia num sofrimento que ninguém avalia.
Até posso imaginá-lo saindo de mansinho ali por aquela porta da cozinha, com suas sacrossantas vestes arribadas até nos joelhos pra mode não sujar ou rasgar; as sandálias de couro cru, novinhas, seguras na mão esquerda, pois costumam ranger a cada pisada. Espiando pra trás, meio ressabiado, se bem que dando graças a Deus por se livrar de tão tenebrosas agruras. E o crucifixo na mão direita, pra mode espantar as imundícies que vagueiam pelas madrugadas e, mais importante, não alarmar a cachorrada, pois Militão, Jaó e Tieta, que dormem bem ali, debaixo daquele paiol, têm ouvidos treinados em caçar bicho do mato e, no escuro, é bem capaz de não identificarem ou não saberem discernir entre uma santa figura e um bicho que nunca viram. Todo o cuidado é pouco, juízo de cachorro não é como o de gente, não. Juízo de cachorro possui estrutura filamentosa muito diferente. A natural sapiência dispôs tudo conforme as necessidades.
Com certeza ele caminhou pé ante pé até naquele alto, bem onde fica o velho jacarandá; lá calçou as sandálias, aprumou o espinhaço, fez o pelo-sinal e deitou o capoeirão até lá embaixo. Depois foi fácil: passou debaixo daquela cerca e abriu carreira no estradão antes que alguém desse por sua falta.
Só posso acreditar que foi exatamente assim. Pois se até o mais calmo dos homens estremece diante das tempestades intuitivas de uma mulher, imagine o coitado do santo às carreiras. Deus livre e guarde! Ninguém merece uma sina tão triste, não senhor!
Ninguém sabe a direção que ele tomou, mas, com a fama que tem, não há de ficar desempregado, principalmente por estas bandas. Até porque sua folha de bons serviços prestados é longe e impecável. Bom, pelo menos até o povo ficar sabendo dessa estória.
Cá por mim, já foi é tarde. Pois se o próprio povo fala que Santo de casa não faz milagres. Dá pra entender muito bem esse ditado, mas que tem um pouco de ingratidão tem sim, senhor. Eu explico.
Santo que é bem tratado numa casa afeiçoa-se por demais à família. No início se esforça pra mode atender aos pedidos, sempre variados e constantes. Uns envolvem angústias e dores, outros pura vaidade; alguns mesclam insólitos desvarios, tão faiscantes de extrapolada sem-vergonhice que é bom nem especular, faço ouvidos de mercador.
Se o coitado do Santo adota o critério de atender rapidamente os pedidos recebidos, os mendicantes relaxam nas obrigações e, por qualquer necessidade, por menor que seja, lá vão eles aporrinhar o pobre, em vez de arregaçar as mangas e buscar aquilo que desejam com a fé em Deus e o esforço pessoal. A toda e qualquer hora vai ter fila de gente ajoelhada na frente do Santo, com as mãos postas orando, lágrimas sentidas escorrendo do cantinho do olho e descendo pela bochecha e com o rosário suspenso no polegar, doida para que chegue logo a sua vez de, frente a frente, transmitir àquele virtuoso emissário divino os seus aflitivos martírios. Aflitivos martírios, sei...
Se, ao contrário, o Santo demora em atender os suplicantes, pra mode incentivá-los à dedicação e empenho visando à aquisição dos necessários merecimentos, ver-se-á rodeado de velas acesas dia e noite, o cangote ardendo de tanto ficar de pé e a cara, ou melhor, seu Santo semblante chamuscado pelo calor emitido pela luminosidade provinda de tanta vela. Se isto não for castigo, não sei como chamar. Só quem sabe o que é vida de Santo pode avaliar tamanha penúria a gozo de santidade. Sem falar no monte de cera que sempre se forma aos pés da figura, pois as muitas velas acesas próximas umas das outras contribuem para que o calor de uma apresse a queima da outra e, consequentemente, o derretimento de todas ocorre em menor espaço de tempo. A exacerbada demonstração de fé dos súplices penitentes só faz aumentar o suplício do Santo condenado. O coitado se vê desnudo, na boca da fornalha do inferno, enquanto o capeta arranca-lhe o couro do lombo a golpes de chibata para deleite dos impiedosos impenitentes. Valha-nos, Deus! É salvo pela fé. Dele. Se dependesse da fé da mocinha que procura, que procura não, que espera sentada, a chegada do príncipe ardentemente desejado, o pobre do Santo há muito já teria sido esquartejado por Cérbero, o pavoroso cão de três cabeças, guardião da porta do inferno. Credo em cruz três vezes!!!
Em decorrência desta narrativa vem-me à lembrança um costume já há muito esquecido.
O historiador Herôdoto, de Halicarnasso, que viveu antes de Cristo e é considerado o Pai da História, narra uma das belas tradições cultivadas pelos babilônios.
Segundo ele, os casamentos eram realizados uma vez por ano em cada vila ou cidade da Babilônia.
Na data aprazada, após prévia divulgação do dito evento, por sinal bastante concorrido, reuniam-se os homens e rapazes interessados em encontrar e adquirir uma boa moça para matrimônio.
O leiloeiro ajuramentado que fora designado recebia as donzelas casadoiras e dividi-as em dois grupos: no primeiro lote ficavam as moças bonitas, educadas e de famílias que detinham posições de relevo na sociedade; o outro lote englobava as moças feias, as de famílias pobres e as que tinham alguma deficiência.
O leilão começava pelas moças mais bonitas, do primeiro grupo, com os pretendentes fazendo lances, visando adquirir as desejadas donzelas para desposar, observados os costumes.
As moças mais bonitas eram disputadas por muitos interessados, aqueles melhor situados na escala social ? cheios de grana pra mode investirem -, portanto, eram vendidas sempre por preços elevados.
Findo o leilão das donzelas mais bem dotadas de corpo e fisionomia começava o leilão das moças do segundo grupo. Este funcionava ao contrário.
O leiloeiro ia chamando as moças, uma de cada vez, e começava fazendo ofertas para os possíveis interessados em aceitar levar uma das garotas e se casar. As ofertas colocadas pelo leiloeiro começavam por valores baixos; os pretendentes é que empurravam o preço para cima, visando obter um bom valor na concretização do negócio.
Nenhuma moça donzela ficava sem marido, pois o dinheiro apurado na venda das mais bonitas era empregado como incentivo para os homens e rapazes arrematarem as garotas da, digamos, segunda divisão.
Mas havia critérios em voga, que eram rigorosamente obedecidos. O arrematador tinha de oferecer, como garantia, a palavra de uma pessoa idônea afiançando que o casamento se realizaria. Se o casamento não se realizasse por desentendimento entre os dois era preciso devolver o dinheiro; e a moça voltava ao leilão no ano seguinte.
Não se tem notícia de nenhum outro povo que tenha adotado este costume ou outro parecido. Na nossa cultura se casa por amor ou então... vira-se a imagem de Santo Antonio de cabeça pra baixo dentro de um copo d?água.
Neste mundo três coisas não têm jeito...


João Cândido da Silva Neto