Santidade Nossa De Cada Dia
Por Nara Junqueira | 20/03/2008 | ContosNasci para ser santa. Aliás, já quando dei sinal de vida, soube mais tarde pela boca das antigas empregadas que serviam à casa de minha mãe, tratei de juntar um homem e uma mulher à beira do abismo nas suas relações conjugais. Dizem que meu pai, safado por tradição de família, ao me ver assim franzina, de pele rosinha e indefesa, atribuiu a mim uma mensagem do céu para que criasse juízo, deixasse as putas na rua e voltasse ao comando da sua família, composta de cinco machos pequenos, todos confusos e perdidos entre os gritos de minha mãe, chinelos que voavam em todas as direções à procura do lombo de meu pai, as lágrimas de minha avó materna e as rezas das negras que corriam assustadas para a cozinha. De quebra, quase sempre havia a presença consoladora de tia Joana, irmã de papai, a dizer a mamãe que homem nasce e vive perdido por vontade de Deus; que assim foi com todos os homens que nasceram filhos de sua mãe, uma mulher pequena e forte, capaz de cozinhar do melhor tempero e oferecer às muitas mulheres que seu marido tinha no povoado. Era um sorriso às passantes e um olhar fixo na cruz da igreja, a selar seu compromisso de carregar até o fim o fardo que herdou ao desposar Affonso no vigor da sua mocidade de macho. Sabia que ele se cansaria do brinquedo um dia e haveria de ser ela a lhe acariciar os pés debaixo do cobertor. Jamais fraquejou e, entre uma oração e outra, escondia suas lágrimas na capelinha que espiava a todos do alto da rua principal, e donde retornava com esperanças renovadas. Aos olhares dos curiosos respondia com a elegância que lhe era peculiar e seguia para casa, agora serena e disposta a perdoar ao marido mais uma escapadela.
O meu nascimento foi, então, a redenção de uma alma alquebrada pelo fogo das vaidades do mundo. Tanto que, a partir daí, meu pai viveu para a mulher e os filhos somente. Logo cedo, bem diferente de outros tempos, empenhava-se pessoalmente na tarefa de mimar a mulher: corria à padaria do Chico Trombeta e voltava carregando pão, leite e algum mimo para seus rebentos. No caminho, dando de cara com as antigas parceiras, tratava de apressar o passo e nem olhava para trás. Dizem que nunca mais triscou num só corpo que não o da sua mulher, que não havia carnes que o fizessem cair de volta na perdição. E, se porventura, sentia-se fraquejar, tomava-me nos braços, apertava-me e rogava aos céus, que lhe atendiam prontamente, quando, então, os ânimos serenavam, o suor cessava, a respiração normalizava e o coração voltava ao compasso dos homens de bem.
Esse homem, agora remido de todos os pecados, aceitou de bom grado o dever de cuidar da sua santinha e não descansou um só minuto nesta empreitada, principalmente quando os anos avançavam sobre a minha infância e enchiam-me de curvas e requebros. E embora os quinze anos, não saía sem que ele soubesse aonde eu ia, quando voltava e com quem estaria. Namorar nem pensar! Foi dele a idéia de dobrar a vigilância contratando babás, desnecessárias até para a visão de minha mãe, que não via maldade alguma em que eu fosse com Orlando e meus cinco irmãos ao cinema de domingo ou dar voltas na pracinha central onde moças e rapazes ruidosos trocavam os primeiros olhares. Onde ninguém via perigo, meu pai exagerava nas possibilidades de vir a acontecer o indesejável. E não fazia por menos: antes de sairmos, reunia a todos, lia o rosário de recomendações e avisava a meu irmão mais velho sobre os cuidados que deveria ter comigo.
De fato, ninguém se aproximava e o caminho da minha santidade seguia sem maiores problemas. Eu passava os dias entre os livros, a música e a vida doméstica, sem sequer imaginar as coisas boas que um homem e uma mulher podem fazer na calada da noite ou nos dias quentes de verão.
Mas o mundo está em constante transformação! E nem meu pai, na sua vigilância obstinada, poderia supor que a santidade é atacada por todos os lados desde que o homem resolveu abandonar o paraíso. E que os ataques quase sempre acontecem quando e onde menos esperamos. Lúcifer usa de artimanhas sofisticadas para enfeitiçar as pobres almas que se vão perder e engrossar o seu exército que anda pelo mundo tentando aumentar o rebanho.
Num dia de descuido, Orlando, até então um poço de timidez e recato, resolveu desafiar as normas estabelecidas.Papai viajou com meus irmãos e foi até a fazenda de um amigo tratar de alguns negócios que pretendia realizar. Boa ocasião para o ataque, pois a casa estava quase desguarnecida. Mamãe e as empregadas estavam todas ocupadas com a faxina do casarão e não se ouvia um só barulho ou voz. Orlando entrou em silêncio e encontrou-me estudando como de costume. Trouxe-me uma flor vermelha e resolveu entregá-la de uma forma diferente: roçou seus lábios no meu pescoço e sussurrou no meu ouvido palavras que me fizeram corar. Levei um susto, levantei-me apressadamente, olhei bem para ele e quis saber o que era aquilo. Disse-lhe, ainda, que, se papai soubesse, ele seria banido da nossa casa para sempre. Orlando, caindo em si, viu que fez uma grande tolice, pediu desculpas e foi-se embora para nunca mais voltar. Antes, confessou-se apaixonado, confidenciou algumas safadezas que fazia pensando em mim e mais todas essas bobagens que meninos costumam vivenciar. Nunca mais o vimos. Papai e meus irmãos estranharam, mas creditaram ao fato de o pai de Orlando ter ficado mais importante depois que assumiu um cargo elevado no governo. Calei-me para sempre sobre o ocorrido.
O trem do tempo seguia seu trilho. Comecei a sentir falta das bobagens do Orlando. Comecei a imaginar coisas estranhas que até faziam a minha santidade balançar. Passei a espreitar pelas janelas das casas em busca das coisas que a gente grande faz escondidinho. Passava nas bancas e ficava olhando aquelas revistas estranhas, mas nem sonhava em falar para papai e meus irmãos, pois sabia que eram porcarias a perder a juventude. Corria para casa, ajoelhava e pedia perdão a Deus pelos meus pecados, jurava nunca mais voltar lá e minha santidade voltava à corzinha que sempre foi.
No outro dia, lá estava eu, assim meio sem querer, tentando fugir para sempre, mas de olhos bem abertos e coração acelerado pelo medo de ser vista por qualquer conhecido de minha família. De repente, ouço alguém me gritar:
— O que você faz aí, menina? Não vê que as esquinas são lugares de gente perdida? Onde está seu pai, que deixa sua santinha solta assim? Era o Firmino, o alfaiate, um homem ríspido, muito magro e de bigodes volumosos. Dei-lhe uma desculpa e corri para casa. Entrei ofegante e, vendo meu pai surgir enorme por detrás da porta, senti o chão sumir debaixo dos meus pés, minha vista escureceu e nada mais pude dizer.
Ao recobrar os sentidos, pus-me a chorar desesperadamente. Chamei meu pai e minha mãe para uma conversa íntima. Roguei-lhes que me mandassem para um convento, donde eu pudesse cuidar melhor da minha santidade e seguir o meu destino. Entreolharam-se por um breve instante. Na verdade, acho que já esperavam por isso, sabiam que, mais dia menos dia, sua santinha haveria de procurar o caminho do céu. Trataram, então, de executar a minha vontade. Aliviada pensei novamente em Orlando. Seria ele o anjo que abreviaria o meu destino, ou o demônio que me poria a perder de vez?
Feito o enxoval, tudo branquinho e cheiroso, fiz as malas e tomei o caminho do céu na terra. Meus pais me acompanharam até a porta de entrada, onde a estátua de um anjo nos espiava lá de cima. Mamãe chorou, deu-me um beijo demorado e virou-se tristonha, indo colocar-se no bando traseiro do automóvel que nos trouxe. Meu pai apertou-me fortemente e agradeceu-me por sua salvação. Ao virar-se para sair, tive a surpresa de ver uma lágrima correr-lhe pela face.
Madre Cândida veio receber-me e estava especialmente feliz. Disse-me da alegria de ver uma moça tão bonita e cheia de graça dedicar-se às coisas de Deus nestes tempos em que o mal prevalecia na vida do homem. Aí pensei novamente no Orlando. Tive vontade de saber como estava, o que estava fazendo e essas coisas que uma mulher tem interesse num homem. Subi ao quarto de dormir, desfiz as malas e rezei um terço inteiro para afastar de mim a tentação. Dormi profundamente e acordei no meio da noite estranhando a cama, as paredes e tudo ao redor. E novamente pensei em Orlando e novamente rezei para esquecê-lo.
Logo pela manhã despertei com as orações matinais. Na capela, dois anjos enormes me fitavam. Eu rezava! Os olhos dos anjos eram iguais aos olhos do Orlando e me diziam coisas obscenas. Eu rezava e rezava! De fato, não estava ali a minha paz, pois os anjos estavam lá e tínhamos que ficar na capela por muitas horas, o que era um grande tormento para mim. A tentação vinha me visitar logo pela manhã e, até à noite, me rondava. Eu dormia e aqueles anjos apareciam, eu acordava, rezava e tornava a dormir, para despertar logo depois encharcada de suor, com o coração acelerado. Passei a dormir pouco e mal, comer pior, não conseguia me concentrar nos estudos e chamava a atenção de todas as irmãzinhas. Eu queria ser santa a todo custo, mas aqueles anjos estavam ali para não deixar. Pensei na luta que Jesus travou nos quarenta dias no deserto e isto me deu ânimo novo. Jurei resistir e rezei terços, rosários inteiros.
Mas que santa sou que não enfrento a tentação de peito aberto? Passados mais alguns dias, eu já estava bastante cansada de fugir daqueles olhos e chegava ao fim a minha paciência. Foi assim que arquitetei um plano que não poderia falhar e que me conduziria diretamente aos braços de Nosso Senhor. Pedi à irmã superiora para me dar a oportunidade de trabalhar na limpeza da capela. Ela concordou e, logo cedo, lá estava eu de escovão, vassouras, panos e baldes. Comecei pelas janelas e dizia aos dois demônios que os eliminaria tão logo chegasse a hora. Eles não se mexiam, mas riam de mim. Avancei sobre o altar-mor e deixei tudo no maior capricho. Nada ficou no lugar: varri as teias de aranha que se formaram nos últimos dias, dei lustro nas peças douradas que enfeitavam os portais, dei vida nova aos castiçais e, por último, lancei um sorriso de vingança aos dois zombeteiros. A hora era aquela! Sondei cada espaço em que os dois estavam confortavelmente instalados, pois precisava acertá-los com um só golpe para não despertar suspeitas. Agora sabiam com quem estavam metidos! Disfarçadamente eu ainda os provocava nas costas das irmãs que se recolhiam. Fi-los desejar voltar o tempo e não resisti a lhes enfiar o espanador nas ventas! Era só o começo da luta que travávamos pelo reino eterno e que haveria de pôr fim ao martírio a que os dois me submetiam desde que aqui cheguei:
— Então, as duas gracinhas pensam que estou para aceitar brincadeiras com tipos demoníacos disfarçados de anjos protetores? Acreditam que minha santidade vá fraquejar somente porque tive a infelicidade de vir me instalar ao lado de criaturas pequenas e traiçoeiras. Negativo, aceito o embate! E anotem aí que eu, santa já no ventre de minha mãe, vou mandá-los de volta ao inferno com tamanha rapidez que sequer terão tempo de mandar avisar ao chefe. Tratem de aproveitar estes últimos momentos, pois aqui está aquela que lhes tem em menor conta.
De repente, quando eu estava quase a desferir-lhes o meu golpe fatal, Madre Cândida entra apressadamente e, acompanhada por dois serventes, avisa-me que vai retirar aqueles dois anjos para levá-los ao restaurador.Quase desmaiei de susto! Ainda não era daquela vez que eu poderia cantar a vitória da minha pobre santidade, ameaçada, até aquele momento, por aqueles dois demônios. Lá se foram eles, para meu desespero, pois em breve voltariam para me assombrar.
Mas... se Deus está por mim... Soube depois que os tais anjinhos foram vítimas de violência quando a casa do restaurador foi arrombada por ladrões, aliás, bons ladrões, que, não encontrando dinheiro ou peça de valor, trataram de desfigurar as imagens encontradas. Graças a Deus, e porque a sua justiça que nunca falha, jamais puderam voltar à capela onde hoje sou a encarregada da limpeza e dou glória ao nosso Criador, na certeza de que salvei a minha santidade para todo o sempre.