Santa Ceia
Por Carlos Moreira | 14/06/2007 | Filosofia
"Quem jamais ergueu-se da mesa, num banquete
com o apetite agudo que tinha ao sentar-se?."
Shakespeare, O Mercador de Veneza, Ato II
"Falai baixo, se falais de amor."
Idem, Muito barulho por nada, Ato II
"o Amor, que move o sol
e as mais estrelas."
Dante Aliguieri, Paraíso, XXXIII
O Cardápio do Banquete
Sócrates foi o homem-marco divisor da história da filosofia clássica. Nascido em Atenas (469-399 a.C.), era filho de um escultor e de uma parteira. Talvez por isso tenha sabido tão bem esculpir homens e idéias, e fazer da sua maiêutica (literalmente "arte de trazer à luz", em grego), tantas consciências obscurecidas nas trevas cavernosas da consciência.
Sócrates aprendeu com os sofistas a se concentrar nas questões que diziam respeito diretamente ao homem, ao invés de, como os chamados pré-socráticos, tentar explicar a natureza. Mas, diferente dos sofistas, abriu mão do relativismo das idéias e valores e da retórica como arte de atingir interesses pequenos. Preocupou-se com a busca da Essência do homem e de idéias como Bem, Verdade, Justiça, Amor e Belo. Ultrapassava assim a notação do meramente empírico, para tentar compreender o homem em sua anima, alma, eu-consciente. Por isso o "conhece-te a ti mesmo" tornado lema e leme, numa clara opção pelo humano e seus labirintos. Apesar de não ter deixado nada escrito, deixou marcas de texto e textura em seus discípulos (Xenofonte, Platão) e adversários (Aristófanes, por exemplo), que o imortalizaram.
O método filosófico de Sócrates era de uma coerência e artimanha aracnídeas: consistia em usar, de maneira estratégica, dois recursos complementares: a Ironia e a Maiêutica. No primeiro momento, interrogava seus interlocutores sobre o que estes pensavam saber, daí atacava de maneira lúcida (e, em geral, brilhante) suas respostas, até destronar seus "conceitos" e, é claro, a empáfia de sua arrogância. Costumava ser uma luta injusta, em que as "reflexões" eram sutilmente desmascaradas como idéias sem substância.
Demolidos em seu orgulho de saber, era hora de Sócrates dar o segundo passo: reconstruir. Uma nova série de questionamentos ajudava os discípulos a tocar os nervos reais de suas idéias, concebendo conceitos mais profundos e universais. Como sua mãe, Sócrates habilmente ajudava a filosofia a nascer daquelas consciências e, rapidamente respirar.
Eis o contexto filosófico d'O banquete, e seu cardápio de prato único: o Amor. Nesse texto Platão narra o diálogo de Sócrates com discípulos e adversários sobre Eros. Apresenta-se nessa obra o dualismo platônico típico entre corpo e alma, em que se dará primazia ao amor "espiritual", mais conhecido "amor platônico". Além disso, traz à tona o contexto cultural em que se encontra Atenas nesse período.
No banquete vários discursam: Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes (que desenvolve o mito do andrógino inicial), Alcibíades, Ágaton, este último dono da casa e sobre quem Sócrates irá aplicar seu "método" filosófico. As opiniões destes nada ou quase nada acrescentam à idéia geral do amor, sendo mais diluições de idéias pré-estabelecidas sobre o tema. Após desconstruir, através da ironia, as opiniões de Ágaton, Sócrates usa de um expediente genial: narra um diálogo que teve com uma sábia de nome Diotima, que tudo conhecia sobre o deus Eros. Hoje está banida a possibilidade de Diotima ter sido uma personagem histórica. Usando desta personagem, Sócrates poderá livremente dizer o que deseja, sem irritar nem ofender os interlocutores. Ágaton, em seu curto intercurso com Sócrates, já se havia impacientado, o que talvez tenha levado Sócrates a criar, de si e para si, uma nova interlocutora. Da boca dessa mulher partirá o discurso do próprio Sócrates que, além de dar lições sobre o amor, brinda seus amigos com uma bela lição de humildade, modéstia e paciência ao ensinar. E o que ensina Diotima a Sócrates?
Entre outras coisas, que o Amor é filho de Penia, a miséria, e de Poros, a riqueza e a beleza. De sua mãe Eros trazia então a carência congênita:
É pobre, e muito longe está de ser delicado e belo, como todos vulgarmente o pensam. Eros, na realidade, é rude, é sujo, anda descalço, não tem lar, dorme no chão duro, junto aos umbrais das portas, ou nas ruas, sem leito nem conforto.
(PLATÃO, 2007, p. 140)
Mas, como é próprio da natureza dualista do Amor,
Por influência da natureza que recebeu do pai, Eros dirige a atenção para tudo o que é belo e gracioso; é bravo, audaz, constante e grande caçador; está sempre a deliberar e a urdir maquinações, a desejar e adquirir conhecimentos, filosofa durante toda sua vida; é grande feiticeiro, mago e sofista.
(PLATÃO, 2007, p. 140)
Em seguida, Diotima (esta genial Mona Lisa de Sócrates), pergunta a Sócrates, em sua própria maiêutica sempre em busca da essência das idéias e dos seres, se ele saberia responder qual a causa do Amor e do desejo. Ao dizer nada saber disso, recebe da sábia a resposta: o desejo de imortalidade:
É a natureza mortal que procura, na medida de suas forças, eternizar-se e imortalizar-se. Mas isso ela alcança pela procriação, porque deixa sempre um indivíduo novo no lugar de um velho. (...) E não só no corpo se dão as mudanças: o mesmo acontece com o espírito. Costumes, convicções, desejos, prazeres, aversões, temores – todas essas coisas jamais permanecem as mesmas. (...) É assim que o mortal, o corpo e as outras coisas, participam da imortalidade; de outra maneira, isso seria impossível. Não deves, pois, te espantar de que todos os seres amem a quem procriaram, pois é devido ao desejo de imortalidade que amam e se desvelam!
(PLATÃO, 2007, p. 146)
Tais idéias de Sócrates-Diotima-Platão serviriam de base, séculos depois, por exemplo, para Schopenhauer desenvolver sua "Metafísica do Amor", e seriam mesmo confirmadas pela seleção natural de Darwin e teorias como a do Gene-egoísta, de Richard Dawkins.
Sendo o Amor um "demônio", espécie de intermediário entre os homens e os deuses, acaba nos elevando do amor físico dos belos corpos ao das belas almas, daí para o do conhecimento. Ou seja, o amor terrestre conduz ao Amor celeste, o que significaria que a Verdade não precisa ser buscada apenas pela via da razão e da inteligência, já que haveria também o caminho do "coração", que permite passar da beleza sensível à Beleza perfeita da idéia inteligível. Essa concepção de Amor ainda permanece viva em nossos dias, e inspirou grandes pensadores e poetas, como Santo Agostinho, em sua visão de Deus, até Dante Aliguieri, em suas alegorias platônicas do Inferno e do Paraíso.
Nessa linha de pensamento, o Amor a ser mais desejado é o Eros adulto e amadurecido, que atravessa a beleza do corpo e vai se embevecer na beleza da alma, e que nesse sentido nada tem de impossível ou utópico: tem sido a conquista de muitas pessoas ao longo da história, mesmo as mais anônimas.
O contexto do banquete é uma Atenas regida pelo diálogo, cuja figura central é Sócrates. Uma sociedade praticamente livre de preconceitos em que o conceito de homossexual sequer existia. Os outros povos sim, "os bárbaros", temiam os riscos do poder que este tipo de amor causava (vide o discurso de Pausânias e o caso do amor de Aristogíton e Harmódio).
Não se pode esquecer que, fiel a sua idéia de liberdade, em que homens, mulheres, escravos e estrangeiros tinham a mesma importância, Sócrates põe nos lábios de uma mulher, Diotima, a mais clara e profunda concepção de Amor até então. Havia, portanto na Santa Ceia Socrática, mais uma convidada, invisível mas presente, e que mais belamente discursou sobre Eros, seus erros e acertos.
Referências Bibliográficas
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PLATÃO. Apologia de Sócrates / Banquete. 18. edição. São Paulo: Martin Claret, 2007.