SANTA BARBARA
Por Romano Dazzi | 14/11/2009 | Contos270 - SANTA BARBARA
A tempestade rugia lá fora. Uma chuva pesada e contínua, empurrada pela ventania, batia ruidosamente nas frágeis folhas de zinco do barraco.
Assustada, encolhida num canto, Bárbara tentava acalmar suas crianças.
Se tivesse tempo para olhar para trás, lembraria os anos de trabalho duro nos canaviais de Pernambuco, os calos das mãos, as feridas dos pés descalços, a comida escassa, o sono sempre atrasado.
Lembraria a viagem estafante, numa leva de retirantes desesperados, ao longo de 3000 quilômetros de estrada. E a fome, a sede, o calor, a poeira, a miséria.
Lembraria a sensação maravilhosa de ter conseguido a liberdade, para decidir de sua vida, procurar trabalho, ser dona de si mesma.
Lembraria o seu primeiro homem, as ilusões, as decepções, e por fim a sua irreparável solidão.
Lembraria o seu primeiro barraco; e o segundo e o terceiro, sempre perdidos, destruídos ou queimados, ao ser enxotada pelos donos e pelos policiais.
Todos cumprindo sua obrigação; todos respeitando ordens; e ela não entendia de quem.
Não entendia porque não apareciam para desalojá-la, enquanto pregava as tábuas com a força da sua esperança, com a determinação da sua fé.
Não entendia porque só vinham depois, com policia, cães, tratores, quando o barraco estava finalmente pronto, e derrubavam tudo; não porque precisassem do espaço, mas apenas para reafirmar seus direitos contra a solidariedade, o bom senso e a fraternidade de que tantos falam e que ninguém pratica.
Mas como é que não se conseguia encontrar, numa terra tão grande, numa nação tão rica, num povo tão generoso, um cantinho de nada, para ela e para os seus meninos?
Era porque ela não sabia ler nem escrever? Era porque não conseguia assinar seu nome? Porque nunca tinha tirado uma fotografia e não tinha um documento?
Não: ela não era ninguém, era uma coisa, um objeto, um capacho, apenas.
Agora, tinha finalmente seu barraco, em baixo de uma ponte.
Ninguém tinha aparecido para reclamar; mas ela sabia que viriam.
As crianças, quietas, assustadas, nem se queixavam mais de fome.
Entendiam, confusamente, que a situação era difícil, grave.
Se a água subisse mais um pouco, as instáveis estacas plantadas na terra fofa, encharcada, não resistiriam e tudo seria levado pelo rio.
Na seca, apenas um córrego sem importância; sob a chuva torrencial, uma correnteza violenta e traiçoeira.
Tudo aconteceu de repente:
O clarão do relâmpago chegou junto com o estrondo do trovão.
A porta do barraco escancarou-se e Bárbara entendeu que era um aviso.
Um recado de Santa Bárbara, a sua xará, a Santa das tempestades.
O recado era claro: Saiam daqui!
Mas para aonde vou? E de que jeito, com essas crianças mortas de frio, de medo, de fome, descalças, sem agasalho? ...
Mas o chamado era muito forte; novamente um raio atravessou o céu e o trovão parecia remexer as profundezas da terra.
Ela tomou coragem: saiu, lançou-se à íngreme subida da encosta, para ganhar o nível da ponte.
Escorregou, subiu, caiu, subiu de novo, sentada, ajoelhada, acocorada, ajudando suas crianças, rezando, fazendo força, rindo, até, nervosamente, do ridículo dessa situação trágica..
Finalmente chegou lá em cima e puxou um suspiro de alívio; mas ao olhar para as crianças viu que agora não eram mais as três dela; eram sete... não, oito!
Todas tão sujas, enlameadas, emplastadas, que não dava para descobrir quem era quem. Não importava. Agora eram todos filhos seus. E ela os adotou na hora; tantos pobres meninos Jesus.
Olhou para baixo, sob a ponte e viu um espetáculo assustador.
O barraco que haviam ocupado até dez minutos antes, abria-se em dois, as estacas cedendo lentamente, o zinco dobrando-se como folha de papel, emitindo um guincho, como um lamento triste.
Os postes escorregaram para a água e tudo foi sendo levado pela correnteza.
Ficou assim, aturdida, olhando o fim de seus sonhos, a morte de sua última ilusão. E agora?
Lembrou da mãe, que dizia: - “Deus sabe o que faz. Qualquer coisa aconteça, tenha fé, acredite: ele nunca vai decepcioná-la.”
Mas este fardo era pesado demais.
Ficou de joelhos na beirada da ponte e desabou no choro.
Ficou um tempo assim, sob a chuva grossa, as crianças quietas ao redor dela.
Voltou a si, refeita; entre as lágrimas e as gotas de chuva, pareceu-lhe ver uma grande luz vindo na sua direção. Seria uma vela? Uma vela acesa, desafiando a chuva? No meio da rua? Talvez fosse um Santo; ou um Anjo....
Não era uma luz só; eram duas.
Duas velas, no meio da rua, vindo na sua direção.
Do jeito que estava, acreditaria
Mas não era um milagre: Era apenas um enorme caminhão do exército, a carroçaria coberta por uma lona verde oliva, que vinha de faróis acesos, procurando voltar depressa à base, o quartel do segundo agrupamento de artilharia de campo, a pouca distância de lá.
Freou a dois metros da Bárbara.
Desceram dois soldados, um deles seguramente um oficial – e dos graúdos .. Olharam para a tropa, meneando a cabeça; conversaram um pouco entre si, chamaram os garotos e os puseram um por um no caminhão, enlameando-se todos, apesar dos infinitos cuidados.
O quartel era enorme; no fundo, separados por uma cerca alta, vários locais maltratados e abandonados: alojamentos antigos, banheiros, uma cozinha.
Até uma horta descuidada, cheia de mato alto,
O coronel comandante permitiu que aquela “tropa” estacionasse lá provisoriamente. Um provisório que trazia um leve perfume de definitivo.
A criançada adotou o quartel, e o segundo agrupamento de Artilharia de Campo adotou os meninos.
Numa estória dessas não se pode escrever: “...e assim viveram felizes para sempre...” Não há príncipes, nem princesas, nem dragões.
Então não é uma estória verdadeira; é apenas uma fábula, que contamos às crianças na hora de dormir.; assim elas continuarão acreditando que, de uma forma ou de outra, o bem sempre vence.... ainda que demore um pouco.
Há quem não acredite: mas eu creio firmemente que tudo foi armado por Santa Bárbara: porque, além de ser a protetora contra raios e tempestades, e xará da nossa heroína, é também a Santa protetora dos Artilheiros!..