Samu 192: Anjos do Asfalto? Um Paradoxo na Atividade de Trabalho dos Socorristas

Por Giane Melo | 17/11/2008 | Psicologia

SAMU 192: anjos do asfalto?

Um paradoxo na atividade de trabalho dos socorristas

Giane Alves de Melo e Assis Cunha

Luciana Maria Cesário Coelho

Maria da Piedade Cortes Rodrigues

Silmara Cristina Maciel

Carlos Eduardo Carrusca Vieira

Resumo: esta pesquisa focaliza a realidade do trabalho de técnicos de enfermagem que atuam no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) em Belo Horizonte. Para a coleta dos dados, utilizamos a técnica de entrevista em profundidade. Os dados foram analisados segundo uma abordagem qualitativa. Os resultados encontrados indicam a necessidade de mudança na jornada de trabalho e apoio psicológico para que os profissionais possam saber lidar com as situações de trabalho, permitindo assim um espaço onde possam se expressar sobre as dificuldades vividas nas situações de trabalho.

Palavras-chaves: SAMU, atividade de trabalho, sofrimento psíquico, ergonomia.

Introdução

Durante o ano de 2007, na disciplina de Estágio Supervisionado III,elaboramos um projeto de pesquisa cujo objetivo era abordar os sentidos atribuídos à morte pelos profissionais (enfermeiros) do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) nas diferentes situações em que envolvem o óbito de crianças.

Por meio da pesquisa teórica e empírica foi possível colher informações que contribuíssem para o desenvolvimento do projeto e para a obtenção dos resultados apresentados.

A hipótese inicial era que o óbito de crianças socorridas repercutia sobre o atendimento e a subjetividade destes profissionais. Contudo, após o contato com o campo de pesquisa percebemos que outras questões relativas às situações de trabalho e que provocavam sofrimento mental, repercutindo na subjetividade dos trabalhadores.

Tendo em vista a complexidade e a importância desse tema para a prática profissional do psicólogo, percebemos a necessidade de ampliar o objetivo durante a pesquisa de campo, o que permitiu o surgimento de novas questões.

1. O SAMU-192

Segundo informações institucionais (PBH, 2006), o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) surgiu na França, na década de 1960, quando foi criada uma central de regulação para coordenar os serviços móveis de atendimento pré-hospitalar daquele país. A idéia chegou ao Brasil nos anos de 1980, quando cidades como São Paulo começaram a se preocupar com o atendimento no próprio local da ocorrência médica.

Entre as décadas de 1980 e 1990, outras cidades também implantaram o SAMU, dentre elas Porto Alegre, Fortaleza, Recife e Curitiba, cada uma com seu próprio sistema de funcionamento. Em 2003, o Ministério da Saúde nacionalizou o programa, ganhou a adesão dos municípios e ampliou os serviços de atendimento móvel de urgência para outras localidades (PBH, 2006).

De acordo com a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU – 192) , é um serviço oferecido pelo Governo Federal Brasileiro, que tem como finalidade prestar assistência pré-hospitalar à população.

O SAMU conta com veículos específicos, suas ambulâncias que são divididas em nível de suporte: Unidades de Suporte Avançado (USAs) responsáveis pelo Tratamento Intensivo, Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) móveis - usadas em casos mais graves, quando há risco de morte, Unidades de Suporte Básico (USBs) e Veículos de Transporte (VTs), sendo os dois últimos usados em casos mais simples, quando não há risco de morte e no transporte do paciente do centro de saúde para o hospital.

Para o Ministério da Saúde, o SAMU é o principal componente da Política Nacional de Atenção às Urgências e tem por objetivo reduzir o número de mortes, o tempo de internação nos hospitais, as seqüelas decorrentes da falta de socorro imediato e as filas nas emergências hospitalares.

A maior parte dos serviços prestados nas comunidades (principalmente na área da saúde) é ineficiente, e reconhecer isso é um grande passo da Política Nacional, uma vez que tem por objetivo reduzir o número de mortes por falta de atendimento pré-hospitalar. Mas é preciso pensar também na saúde psíquica dos profissionais que atuam na área da saúde, pois são eles que lidam diariamente com situações que envolvem a morte do socorrido e que, muitas vezes, ocorre devido à sua condição social.

2. Referencial Teórico

Para melhor entender o trabalho realizado pelos profissionais do SAMU, pesquisamos na obra de François Guérin (2001) definições e explicações sobre a ergonomia que esclarece aspectos importantes sobre o trabalho humano.

De acordo com Guérin (2001), a ergonomia tem por objeto de estudo o trabalho e este abrange vários aspectos da relação entre funcionário – empresa.

"É preciso reconhecer que a palavra "trabalho" abrange varias realidades como condições de trabalho, o resultado do trabalho, e a própria atividade de trabalho. A atividade, as condições e o resultado da atividade não existem independentemente uns dos outros, o trabalho é a unidade dessas três realidades. É necessário certo recorte do campo de conhecimento e de ação, cada um se coloca em função desse recorte, sem ignorar, contudo que a dimensão do trabalho pela qual ele se interessa não é independente das outras. "(GUÉRIN, 2001 p. 11)

É importante estabelecer as principais diferenças entre trabalho, tarefa e atividade, pois, tais conceitos são básicos e afetam as formas de análise do trabalho. O trabalho, segundo F. Guérin (2001) abrange as três realidades interdependentes: a atividade, as condições de trabalho e o resultado da atividade. A tarefa se refere ao trabalho que é prescrito para o funcionário executar. Já a atividade, central na análise do trabalho, consiste na dimensão pessoal e socioeconômica do trabalho, ela é aquilo que o sujeito faz efetivamente:

"A atividade de trabalho tem uma função integradora, e uma seqüência de determinantes. De um lado tem o trabalhador com suas características específicas, pessoais, experiências em sua formação adquirida, e estado momentâneo. De outro lado tem a empresa com objetivos e ferramentas, tempo determinado, uma organização do trabalho estabelecida e um ambiente. No centro, entre o trabalhador e a empresa, e que contribui para essa organização, tem o contrato, as tarefas prescritas e as reais, e a atividade de trabalho. E o resultado disso tem dois lados, o primeiro é a produção tento quantitativa, como qualitativa, e o segundo são as conseqüências que acarretam aos trabalhadores, como saúde, acidentes, competências e conseqüências negativas". (GUÉRIN, 2001)

Foi considerada também a obra de Christopher Dejours (1994) em que estabelece diferenças entre o conteúdo ergonômico e a carga de trabalho.

"O conteúdo ergonômico diria respeito às exigências físicas, psicomotoras, psicossensoriais e intelectuais da tarefa. A carga de trabalho seria determinada a partir da estrutura de personalidade de cada trabalhador, do que para cada um representa o confronto com as exigências da tarefa. Deste modo, haveria pessoas necessitando de trabalhos com grande atividade física, outras de tarefas que implicassem em estimulação psicossensorial contínua, etc..." (RÊGO, 1987)

Este mesmo autor (2004) distingue a psicopatologia do trabalho, que estuda as causas do adoecimento psíquico, e a psicodinâmica do trabalho, que trabalha na perspectiva que a dinâmica e as interações é que provocam adoecimento. E elucida muitas situações vividas por várias categorias de trabalho. A primeira tem como foco a doença e a segunda a normalidade. Essas noções são úteis para compreendermos como os trabalhadores vivenciam o cotidiano de trabalho.

3. Metodologia

Como forma de investigar as hipóteses anteriormente levantadas, utilizamos a entrevista em profundidade. Essa opção se fez com o objetivo de adquirir uma escuta diferenciada, de forma mais abrangente, analisando aquilo que os profissionais tinham a dizer e não focalizando apenas as hipóteses iniciais.

J. Chasin (1995) citado por Lima, afirma que em psicologia do trabalho, a melhor forma de conhecer e compreender para analisar a atividade de trabalho é:

"Antes de tudo, dirigir nosso olhar em sua direção, tentando deixar de lado qualquer idéia apriorística que possamos ter a seu respeito. Ou seja, em vez de impormos nossa lógica a esse objeto, devemos tentar desvendar sua própria lógica. E o que é mais importante: somente após decifrá-lo e conhecê-lo em todos os seus matizes é que estaremos efetivamente de posse de um método. Portanto, é o próprio objeto que nos fornece o caminho para conhecê-lo e decifrá-lo, sendo que o método, neste caso, não é construído no início, mas ao fim do processo". (Lima: 2002 p. 125)

Assim foi utilizado como forma para verbalização na entrevista a consecutiva, que é realizada fora do ambiente de trabalho. Isto foi possível tomando por base as questões levantadas no primeiro encontro.

O contato com o campo de pesquisa se deu através da Central de Regulação do próprio SAMU. A primeira entrevistada Elaine, 6 anos de atuação como socorrista no Serviço de Atendimento Móvel à Urgência, nos recebeu na própria entidade, e discorreu mais com relação ao funcionamento do serviço. Mesmo porque estava em horário de serviço, ou seja, caso houvesse algum chamado, ela sairia para atender, correndo o risco de prejudicar a análise posterior à entrevista. Neste caso foi a única entrevista, introdutória, para conhecer o campo da pesquisa e buscar compreender a atividade real de trabalho, como um todo para corroborar ou não as hipóteses iniciais.

A segunda entrevistada Heloísa, que teve maior disponibilidade de tempo, pode nos atender fora do horário de trabalho no SAMU, atua há 2 anos neste serviço. Neste caso houve melhor aproveitamento do tempo, além das entrevistas manterem uma continuidade. Com esta entrevistada realizaram-se três entrevistas, sendo que estas ocorreram no mês de abril de 2008.

4. O trabalho dos profissionais do SAMU

4.1. Competências necessárias para o trabalho

Ao técnico de enfermagem compete atender a vítima da melhor maneira possível com o dispêndio do menor tempo possível para o transporte até o hospital. Dentre as tarefas prescritas a este socorrista está a responsabilidade de "ser o olho do médico". Isto implica uma grande responsabilidade, pois, é a partir do relato do técnico que o médico orientará o atendimento. Neste caso, é explicitado o tipo de atendimento dado pelas Unidades de Suporte Básico (USB's).

De acordo com as informações fornecidas pelos profissionais entrevistados, tal responsabilidade demanda sensibilidade e precisão no relato que estão relacionadas com as vivências do profissional e a partir delas, tomará as atitudes mais convenientes.

De acordo com a entrevistada Heloísa, a pessoa liga para o 192 e é atendida por um dos despachantes que passará a ligação para o médico de plantão na central de regulação, local onde é controlada a atividade externa dos socorristas e lhes fornece orientações, tanto dando as coordenadas do local da chamada como orientando as USBs no próprio atendimento.

O médico plantonista na central de regulação é quem determina a necessidade ou não de deslocar uma ambulância para o local. Caso seja necessário, ele retorna a ligação para o despachante, informando o caso e o local. O despachante, então entra em contato com a unidade mais próxima do local do fato. Dependendo da complexidade do caso, envia uma Unidade Básica ou de uma Unidade Avançada.

A partir do momento em que a ambulância chega ao local do chamado, a responsabilidade pelo suporte, o contato com o médico para passar os dados da situação e receber orientações de como proceder é do socorrista. E mediante a tamanha responsabilidade ainda é preciso estar preparado para enfrentar qualquer tipo de situação. Heloísa enfatizou que, infelizmente muitos dos socorristas aprovados em concurso para atuar neste serviço não possuem nenhuma das características do perfil deste profissional. Ela relatou que Já houve caso em que a pessoa fez o concurso apenas por achar o uniforme bonito, o que foi um grande equívoco.

De acordo com o relato de Heloísa, alguns profissionais às vezes não dispensam o devido cuidado ao socorrido, o que a deixa perturbada. Segundo ela, quando o serviço é acionado é porque há necessidade, exceto em lamentáveis situações de "trotes".

4.2 Situações de trabalho do SAMU

Ocorreu em certa ocasião, em uma escola pública, que uma aluna simulou um desmaio e a direção da escola chamou o SAMU. Na abordagem, uma colega de Heloísa disse para a garota: "pode levantar daí que eu sei que não está acontecendo nada de errado". Heloísa interveio na falta de sensibilidade da colega de trabalho e a explicou em particular que não era esse o procedimento correto, independente de estar ou não passando mal. Para contornar a situação, Heloísa dirigiu-se à garota e procedeu como se acreditasse que ela estava realmente passando mal, pois segundo ela, dependendo da abordagem, a garota poderia não ter nenhuma "cara" para voltar na escola.

Percebe-se, com isso, que as atitudes tomadas pela profissional não têm relação somente com o prescrito pelo protocolo, mas também com sua história de vida e com o tempo de atuação profissional. Neste sentido é necessário um preparo adequado, pois a vida humana está em questão e requer um cuidado especial, além de muito "jogo de cintura", porque dependendo do caso, segundo ela, a ocorrência é provocada por questões sociais.

Para exemplificar este tipo de cuidado que, de acordo com as prescrições, não é necessário, Heloísa relatou um atendimento em que vizinhos solicitaram o serviço. Ao chegar ao local, depararam com uma casa totalmente revirada e uma senhora angustiada, que tremia muito e repetia a todo o momento: "eu tenho que dar comida pro meu filho". Tentando entender o que havia acontecido, os socorristas descobriram que, aquela senhora era empregada doméstica e dependia do salário para comer e pagar o aluguel, porém, o patrão, que sempre a pagava em dia, adoeceu e a esposa assumiu seus negócios. Vale ressaltar que a senhora, conforme informou Heloísa, era tão honesta que não tinha coragem de tirar um pão da casa da patroa para alimentar o filho.

A senhora em questão permaneceu dois meses sem receber salário e quando o mantimento acabou, dava pão dormido e água para o filho, chegando a ponto de o menino (nove anos) não agüentar mais comer a mesma coisa.

Em determinado momento, a senhora decidiu pedir um adiantamento à patroa, pois, já estava quase sendo despejada de onde morava por motivo de atraso no pagamento do aluguel. Chegando à casa dos patrões presenciou a mulher voltando do supermercado com uma farta compra. Naquele momento a empregada entrou em surto, pois não lhe pagavam os salários atrasados, mas tinham condições de comprar muitos suprimentos, ao passo que ela não tinha sequer um pão para dar ao filho.

Decidiram por encaminhá-la ao Centro de Referencia em Saúde Mental (CERSAM). Porém, penalizados com a situação se organizaram e fizeram a doação de uma cesta básica para esta senhora. Tal ação foi condenada pelo protocolo, mesmo sendo uma atitude envolvendo somente a equipe em questão, e esta a mais correta segundo suas histórias de vida.

De forma semelhante, os enfermeiros atenderam a um chamado de uma mãe desesperada, que após levar seu filho repetidas vezes na mesma semana ao Centro de Saúde, não recebera atendimento por falta de médicos. Mesmo sabendo não ser função do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência tal atendimento, foi este o recurso encontrado pela mãe do garoto que precisava de cuidados. Ela supôs que chegando ao hospital de ambulância, o filho seria atendido imediatamente.

Apresenta-se assim uma das realidades vividas pela população de baixa renda do entorno da cidade, e também um tipo de situação que requer cuidado por parte dos socorristas. Infelizmente, nem todos os profissionais têm esta sensibilidade, já ocorreu, segundo informações da entrevistada, de alguns colegas advertirem tais mães, justificando que, ao atenderem a este tipo de chamado, outras pessoas poderiam estar realmente morrendo. Entretanto eles não entendem, diz Heloísa, que é através desta medida extrema que algumas pessoas conseguem atendimento quando precisam. Nesta situação apresentam-se algumas variabilidades, a saber, do contexto socioeconômico, que diante da situação real requer sensibilidade e jogo de cintura por parte do socorrista para lidar com o que se apresenta como necessidade no momento, mesmo que no protocolo não tenha nenhuma referencia a atitude a ser tomada.

Várias das situações retratadas requerem que o profissional faça escolhas, segundo Sartre (1978) o ser humano "possui a liberdade de escolher e isto é angustiante, pois, ao escolher, ele torna-se responsável por si e pelos outros". Tal afirmativa explicita a razão pela qual, algumas atitudes têm peso para o profissional do SAMU em algumas atitudes e em outras não.

4.3. Condições prescritas e condições reais

As condições prescritas são constituídas pelo protocolo que regulamenta as atividades que os técnicos de enfermagem devem executar. No protocolo constam as atividades que só podem ser desenvolvidas pelo médico e as normas no que tange à hierarquia dos cargos (médicos estão hierarquicamente acima dos enfermeiros, estes acima dos técnicos e assim por diante).

Assim, a ergonomia aponta a existência de uma distância entre o trabalho prescrito e o real. Tal distância, segundo Schwartz (2006), é sempre ressingulizada, a entidade que a conduz é uma entidade simultaneamente alma e corpo e a arbitragem está relacionada com um complexo de valores, pois o trabalho é sempre encontro de valores.

Em condições reais aparece o que realmente a pessoa faz em sua atividade de trabalho. Heloísa relatou situações em que o protocolo foi desobedecido visando o bom andamento do socorro. Vemos nessa circunstância que o trabalho exige mais do que a obediência aos procedimentos, mais que passividade.Parece assim, que certos valores conduzem a atividade. François Guérin denomina esta influência como a dimensão pessoal do trabalho. De acordo com ele,

"A importância dessa dimensão é considerável para o indivíduo: o significado de sua atividade, ao concretizar-se no resultado, impregna de sentido sua relação com o mundo, fator determinante da construção de sua personalidade e de sua socialização. Trabalhar não é somente ganhar a vida; é também e, sobretudo ter um lugar, desempenhar um papel". (F. GUÉRIN: 2004 p.18)

Pode-se tomar como exemplo um atendimento que foi feito a acidentados na BR-381, no trevo de Ravena - MG. O pai alcoolizado, dirigindo com a esposa e a filha no carro, bateu de frente com um ônibus que transportava estudantes. Foi constatado que a esposa já havia falecido na hora do acidente e o marido estava em estado grave. Após atender o único estudante ferido, Heloísa percebeu que havia uma adolescente presa às ferragens.

O médico responsável pela equipe, sem ter verificado pessoalmente o estado da garota, afirmou que a prioridade era o pai, porém a enfermeira percebendo a urgência em remover a adolescente ao hospital tomou as necessárias providências, contando com o auxílio ao Corpo de Bombeiros (muito eficiente por sinal), mas desacatando as ordens do médico. Tal atitude poderia gerar conflitos que originaram do próprio documento regulador, pois, neste caso, o erro foi do médico. Segundo a enfermeira, quando há divergência de opiniões no momento do socorro entre os médicos e os técnicos a conseqüência do erro é diferente. Quando o erro é médico, "colocam os panos por cima", mas quando os técnicos erram são advertidos.

Ao final do relato, Heloísa disse que no hospital outro médico constatou que se em questão de poucos minutos a adolescente não fosse removida, teria morrido. O pai, que aguardou o helicóptero do Corpo de Bombeiros, não resistiu aos ferimentos e morreu três dias depois do acidente. Podendo contar com a ousadia e iniciativa da profissional do SAMU e após ser submetida a várias cirurgias, a garota sobreviveu.

Percebe-se através deste relato de caso que o mesmo protocolo elaborado para regulamentar a atuação do profissional limita sua forma de trabalhar, tirando-lhe a autonomia ou em outras ocasiões, deixando de ser cumprido para facilitar o trabalho real, a saber: salvar vidas.

Heloísa confidenciou que o trabalho dos bombeiros é muito eficiente e de grande relevância no socorro das vitimas, sobretudo no momento em que, com precisão e velocidade, retiram o acidentado das ferragens.

4.4. Jornada de trabalho/ritmo

Sobre a jornada de trabalho pode-se salientar que geralmente é percebida como estressante. Normalmente, tal jornada ocorre em plantão (12x36). Neste caso, Heloísa trabalha de 18:00 à 6:00, dia sim, dia não. Entretanto há situações em que é necessário "dobrar" o plantão, ou seja, ao invés de trabalhar 12h trabalhar 24h seguidas. Tal situação torna o trabalho exaustivo, prejudicando a qualidade do atendimento devido ao cansaço, à fadiga e ao sono dos plantonistas.

De acordo com Dejours (1994), o equilíbrio ou fadiga pelo trabalho ocorre devido à carga psíquica do trabalho, que é constituída de uma retenção de energia pulsional que deriva da relação do trabalhador com a organização. Esta carga psíquica pode se apresentar positiva quando o trabalho se torna fatigante, ou negativa quando permite a diminuição desta carga psíquica e o aumento do prazer no trabalho. Tal fator deve ser levado em consideração, pois o potencial de surgimento de doenças mentais provenientes do trabalho depende da forma em que o trabalhador canaliza esta energia. Tal fator tem relação de interdependência com o contexto social da atividade de trabalho, além das relações entre o trabalho e a própria organização.

"A fadiga é uma testemunha não específica da sobrecarga que pesa sobre um ou outro dos setores do organismo psíquico e somático". (DEJOURS, 1994). Neste caso surge a necessidade de flexibilização da organização do trabalho. Tal mudança propiciaria uma reorganização do tempo por parte do trabalhador que poderia canalizar a carga psíquica existente em sua relação com a atividade de trabalho e lidar melhor com suas próprias escolhas no contexto laboral.

É importante lembrar que à noite, o contato com a equipe é feito por telefone e nos intervalos entre os atendimentos, os profissionais aproveitam para descansar um pouco. Dependendo do avanço das horas, a sirene que deve ser acionada imediatamente assim que a ambulância sai, não é ligada para não incomodar os vizinhos e porque, segundo os profissionais, não há problemas de deslocamento no trânsito de madrugada.

A exemplo de situação com sobrecarga de trabalho, um fato ocorreu com a entrevistada em uma dobra de plantão (ela trabalhou o dia todo e a madrugada inteira). Na ocasião, a entrevistada estava na vez de atender ao telefone e após receber o chamado voltou a cochilar por cinco minutos. Assim que o telefone tocou novamente, a enfermeira acordou assustada e chamou aos demais integrantes da equipe, que também estavam descansando, para se deslocarem, iniciando a transmissão dos dados da chamada.

Ao chegarem ao local solicitante, depararam-se com um caso de complicação de um quadro infeccioso. A pessoa a ser atendida, uma senhora de meia idade, estava com uma fratura na perna que já estava ferida e agravou provocando uma embolia e posteriormente, ocasionou uma parada cardiorrespiratória (PCR). Quando os socorristas chegaram, a paciente estava "em parada" e mesmo depois da aplicação da técnica de ressuscitação (desfribilação), a caminho do hospital, o quadro evoluiu a óbito.

Um forte sentimento de culpa surgiu na vida da entrevistada e arrebatou-lhe a paz interior. De acordo com ela, a jovem filha da paciente presenciou todo o atendimento e isso lhe desencadeou tal culpa, pois se questionara: "ela precisava ver tudo isso? A mãe morrer a caminho do hospital, após a demora dos socorristas, apesar de alguns procedimentos para tentar salva-la, mesmo sendo a causa da morte visível para quem a socorria?"

De acordo com Guérin (2001), esta forma de trabalho sob fortes constrangimentos de tempo e necessitando de uma grande atenção impõem durante sua realização uma modificação do funcionamento psíquico normal que instiga o trabalhador a agir em conformidade com seus valores morais e não seguindo as regras prescritas.

A atividade de trabalho, os códigos de trabalho, ou seja, a linguagem utilizada nestas situações aparece na vida fora do trabalho. Guérin explicita que estes sinais podem desaparecer habitualmente quando não se é mais submetido à situação de trabalho que os produziu, entretanto, são extremamente penosos gerando muita culpa além de poder ter conseqüências na convivência com os outros e, principalmente a família. .Percebemos tais fatores, quando a entrevistada relata: "Minha mãe já me pediu várias vezes para desistir dessa profissão. Pois, freqüentemente chego em casa chorando muito e fico revivendo os fatos ocorridos no dia".

4.5. Apoio psicológico

De acordo com Heloísa não há apoio psicológico aos profissionais socorristas. Em situações em que não dão conta de lidar com as emoções, ou em ocasiões que se preocupam com um "pós-atendimento" aos socorridos, são chamados à atenção e recebem advertência. Como se fosse proibido exteriorizar as emoções durante a atividade laboral.

Heloísa ainda relatou que muitos dos socorristas tomam medicação controlada e há um grande índice de depressão e afastamento do trabalho devido ao adoecimento mental causado pelas situações estressantes. Além de que já ocorreu de uma enfermeira surtar dentro de um hospital por causa do descaso e da forma em que alguns profissionais atendiam a um paciente.

5. Aspectos psicossociais da atividade

Um aspecto importante identificado, referente à psicologia é o sentimento de culpa tanto em situações que o profissional não tem autonomia para atuar, sendo impedido pelas regras, quanto em situações em que o tempo é como um fio que separa a vida e a morte. Conseqüentemente surge uma grande angústia principalmente em situações que o profissional fica impotente para agir.

Outro aspecto ressaltado nas entrevistas e reincidente com as profissionais entrevistadas (duas) foi a construção de vínculo com os atendidos. A preocupação com o bem estar do paciente é marcada pela atenção, mesmo depois do atendimento, quando o paciente já se encontra hospitalizada.

De certa forma, este é um ponto positivo que tende a valorizar a atividade de trabalho, mas às vezes pode ser negativo, pois faz com que os profissionais sofram por causa do estado de saúde do paciente e se apeguem a ele e à sua família, além de poder afetar a própria vida afetiva.

6. Variabilidades das situações de trabalho

As variabilidades das situações de trabalho aparecem como as condições de trabalho com as quais o profissional tem que lidar.

Analisando as diversas situações de trabalho, pode-se perceber que algumas variabilidades decorrem de escolhas feitas pelo profissional ao agir. Ele por exemplo, pode escolher entre tentar acalmar o paciente ou tentar imobilizá-lo. Outras destas variabilidades são provocadas pelas situações de trabalho e interferem para que o atendimento ocorra tranqüilamente ou não. Entende-se por atendimento tranqüilo aquele que não há nenhuma complicação. É influenciado por fatores que Guérin (2004) nomeia como externos, que descrevem a situação na qual se exerce a atividade. Podemos citar como estes fatores: objetivos a alcançar, meios técnicos, organização de trabalho, regras e normas, meios humanos, normas de segurança e espaço de trabalho. Neste caso se apresentam como: o trânsito, pois, a equipe tem aproximadamente um minuto para se deslocar para o local da chamada, enfrentam dificuldade neste caso por causa do congestionamento e também dependendo do horário. Afinal, muitos acidentes acontecem nas vias de acesso ao centro da cidade (Av. Cristiano Machado, Av. Antônio Carlos, Av. Afonso Pena e Amazonas) no horário de maior movimento; a idade da vítima, pois dependendo dos procedimentos a serem realizados, não se sabe qual a reação do paciente (quanto a resistir ou não); a facilidade ou não de encontrar a veia para medicar; o quadro clínico do socorrido também é importante, pois se este apresentar alguma doença sistemática, ou seja, tome alguma medicação controlada, as chances do quadro agravar serão bem maiores do que aquele que não apresenta nenhuma doença, além das condições físicas do trabalhador, se ele está atento, se está sonolento, se está cansado ou mesmo estressado.

Considerações finais

Em suma, nossa pesquisa contribuiu não somente para compreendermos o sentimento atribuído pelos profissionais (enfermeiros) do SAMU às situações que envolvem o óbito de crianças, mas às situações diversas vivenciadas por esses profissionais que, varias vezes, podem causar sofrimento. Como base no próprio relato da profissional, percebe-se que esse sofrimento é maior devido à falta de apoio psicológico.

É preciso considerar que, a qualidade de vida no trabalho deve ser compreendida e comprometida a partir das condições de vida no trabalho, que inclui aspectos de bem-estar, garantia da saúde e segurança física, mental e social. Não depende só de uma parte, ou seja, depende simultaneamente do profissional e da organização, e é este o maior desafio.

Partindo do exposto, é necessário também que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) encare a sua responsabilidade com a saúde dos profissionais (enfermeiros), já que se trata de uma importante questão de saúde pública, não apenas porque o sofrimento psíquico decorrente do exercício laboral atinge uma categoria profissional, como também porque seus efeitos atingem ampla e gravemente toda a sociedade.

Portanto, esta pesquisa nos instiga a pensar em formas para que esta categoria de profissionais pudessem ter o acesso, concedido pelos diretores e não particular, ao apoio psicológico dado as implicações do atendimento feito por estes profissionais.

Enquanto graduandos, acreditamos que os saberes obtidos com este trabalho tendem a ampliar os nossos conhecimentos sobre as diversas esferas com as quais o ser humano lida sendo que, o trabalho é uma das principais.

7. Referências

DEJOURS, Christophe: Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho/ tradução de Frank Soudant/ Selma Lancman e Laerte Idal Sznelwar (orgs). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Brasília: Paralelo 15, 2004.

DEJOURS, Christophe: Psicodinâmica do trabalho, contribuições da Escola Dejouriana a analise da relação prazer, sofrimento e trabalho./ Christophe Dejours, Elizabeth Abdoucheli, Christian Jayet; coordenação: Maria Irene Stocco Betiol. Tradutores Maria Irene Stocco Betiol… [et al.] – São Paulo: Atlas, 1994.

GUÉRIN, F.: Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia [et al.] tradução Giliane M. J. Ingratta, Marcos Maffei – São Paulo: Edgard Blucher: Fundação Vanzolini, 2001. 

LIMA, M. E. A. A questão do método em psicologia do trabalho. In: Iris Barbosa Goulart. (Org.). Psicologia organizacional e do trabalho: teoria, pesquisa e temas correlatos. 1 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002, v., p. 10-37.

 MARCONI, Marina de Andrade e LAKATOS, Eva Maria: Fundamentos da metodologia científica. Editora Atlas S. A., São Paulo, 2007.

 SCHWARTZ, Yves: Reflexão em torno de um exemplo de trabalho operário. --

Graduanda do 5º período do curso de Psicologia – manhã, na PUC MG – S. Gabriel.

Graduanda do 5º período do curso de Psicologia – manhã, na PUC MG – S. Gabriel.

Graduanda do 5º período do curso de Psicologia – manhã, na PUC MG – S. Gabriel.

Graduanda do 5º período do curso de Psicologia – manhã, na PUC MG – S. Gabriel.

Coordenador do Estágio IV do 5º período do curso de Psicologia – manhã, na PUC MG – S. Gabriel.

Disponível em: http://portal2.pbh.gov.br/pbh/index.html?id_conteudo=3110&id_nivel1=-1

Também denominado de SAMU 192, porque o serviço telefônico do Brasil permite acesso ao SAMU através do número 192 e a ligação é gratuita.

Nome fictício da 1ª entrevistada.

Nome fictício da 2ª entrevistada.