Saindo da neblina...

Por Romano Dazzi | 20/06/2009 | Crônicas

 

SAINDO DA NEBLINA

de Romano Dazzi

 

 

Como se estivesse saindo da neblina, acordou. Ou pareceu-lhe ter acordado. Estava com todo o corpo adormecido, os sentidos inativos. Era ele mesmo, agora; reconhecia-se, tomava conta de seus próprios pensamentos; não era mais nenhum daqueles fantasmas nos quais se havia transformado nos dias anteriores (ou seriam semanas, ou meses?)  enlouquecido pela febre e por dores insuportáveis no corpo todo.

No meio daquela neblina escura, compacta, que estivera ao redor dele – quase dentro dele - por tanto, tanto tempo, pareceu-lhe distinguir  finalmente uma leve claridade – mas era mais uma impressão impalpável que uma sensação verdadeira.

Mas era isso,,mesmo, uma difusa película de luz, que vinha aumentando lentamente, pouco a  pouco, sem pressa. 

Percebeu então que estava com os olhos cerrados.

Quem sabe há quanto tempo não os abrira; parecia-lhe que as pálpebras estavam coladas, pesadas,  e a própria luz forçava-as a ficarem abaixadas. Abriu os olhos aos poucos, penosamente e a claridade invadiu todo o seu ser. A consciência voltava-lhe lentamente, como se fosse um barco de pesca, voltando do alto mar,  costeando, aproximando-se calmamente para trazer sua carga preciosa.

Os braços e as pernas doíam-lhe; estavam enfaixados, mas ele não conseguia perceber como, nem se lembrava por que.

Um ombro picava-o com uma agulhada profunda,  cada vez que respirava. Tentou então respirar mais leve, segurando o ar nos pulmões, e dosando-o  para evitar que o corpo todo se movimentasse, enfatizando a dor que sentia.

 

Tornou-se indispensável tentar distinguir a realidade da fantasia, o hoje do passado,  a verdade do pesadelo.

Percebeu que por muito tempo – não saberia medi-lo – estivera pendurado sobre um abismo, ou talvez, caindo por ele, tragado pela profundidade, por um  minuto, talvez, que lhe pareceu eterno, infinito.

 

E aquelas dores, a cabeça girando, sacudindo, oscilando sem controle de um lado para o outro– agora percebia que tudo voltava e se encaixava devagar, mesmo confusamente e vinha em ondas contínuas, recolocando-se no lugar.

 

De repente lembrou-se. A trincheira úmida, fétida, mais parecendo uma cova preparada para eles, futuros defuntos. Os cem companheiros de desventura, aprisionados nela, sem esperança. O reboar dos canhões, ensurdecendo  e levando todos à loucura. A fuzilaria esparsa, contínua, mortífera; um tiro, um grito;  uma bala, uma vida.

Os inimigos atacavam.

Não sabia quem eram, não fazia idéia de onde vinham, do que queriam; e nem fazia diferença. Vinham em bandos, em hordas, atirando, caindo,  tropeçando, amaldiçoando, morrendo, enquanto xingavam e blasfemavam; e se renovavam o tempo todo, como se ressurgissem, se retornassem à vida. . 

De repente, lembrava ele vagamente, houve um clarão imenso, um estouro aterrador. Depois, mais nada.

Tudo escureceu, calou-se,  parou.

 

A luz vinha agora em ondas fortes, quase violentas, como se fosse vento de tempestade, fustigando os olhos, trazendo-o de volta do inferno.

E ele sentiu gratidão por esta volta, por esta luz, por poder virar a página e se encontrar naquele ambiente branco, acolhedor, silencioso, inspirando repouso e abandono.

 

Quis lembrar-se de tudo o que acontecera. Pois, daquele momento em diante, não sentira nem percebera mais nada que fosse coerente, que fizesse sentido. 

 

Lembrou-se de ter lutado contra os fantasmas que queriam levá-lo, contra braços e mãos poderosas, que o seguravam, o amarravam e o imobilizavam,  enquanto outros cortavam sua carne e deixavam seu sangue sair e se perder.

 

Pareceu-lhe ter perdido tudo, quando finalmente o horror acabou e um calor se espalhou pelo braço, trazendo-lhe conforto e paz.

 

Paz!  Esta era a palavra mágica.  Depois da trincheira, da explosão, do grave ferimento que tinha praticamente acabado com ele, finalmente estava em um hospital;  devia ser um prédio muito velho, talvez uma antiga igreja; anjos, santos, bispos, pintados no teto, ofereciam assunto para mil reflexões.

 

Sentiu-se cansado, exaurido; sentiu como se os braços e as pernas, apesar de apoiados na cama, quisessem  se recostar, se estender.

 

Sentiu-se novamente criança, na missa do domingo, quando olhava para o forro da igreja, e se sentia arrastado pelas figuras coloridas, pintadas lá em cima e ficava distraído, longe de tudo e de todos.

 

Mal percebeu quando a freira silenciosa, deslizando suavemente pelo piso encerado, chegou perto dele e arregaçou os cobertores. Mas já com os olhos fechados, com um esforço sobre humano, murmurou: Obrigado, Mamãe !...