SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS DA CULTURA NEGRA: RELIGIOSIDADE E CAPOEIRA

Por Gabriela Costa Faval | 13/12/2016 | Sociedade

Resumo

Neste artigo objetiva-se discutir o processo educativo não-formal, presente nas religiões de origem africana e na capoeira, enquanto instrumentos culturais e identitários. Foram tomados como lócus de pesquisa o grupo União Capoeira e o Terreiro de Tambor de Mina “Casa Grande de Mina Jeje Nagô de Doy Lisá Con Abe Manjá-Huevy”, ambos localizados na região metropolitana de Belém-PA. Para que se pudesse perceber a importância desses espaços na preservação da cultura e da identidade dos sujeitos, fez-se necessário  compreender o processo histórico de escravidão e  de aculturação dos sujeitos, utilizando-se para isto do levantamento bibliográfico. O registro das pesquisas foi feito mediante entrevistas gravadas e depoimentos transcritos, tanto de integrantes desses espaços quanto de educadores e pesquisadores da temática. Os resultados obtidos fazem referência ao processo educacional não escolar, realizado através da transmissão oral de saberes e do aconselhamento que visam preparar os sujeitos para o convivio social e a vida em comunidade e que encontram-se presentes nas duas formas de manifestação cultural.

INTRODUÇÃO             

Resistindo as imposições das metrópoles modernas, os povos vítimas da colonização desenvolveram estratégias dentro de sua cultura para manter vivas suas histórias, tradições, características.

Infelizmente, mesmo tendo se passado mais de um século do término da diáspora na América, os saberes e fazeres das etnias que foram escravizadas continuam ocupando um espaço marginal na sociedade brasileira, especifiamente na cultura negra, que, em grande parte de suas caracterísitcas, religiosas, musicais, lúdicas, suas representações e imaginários ainda paira a pécha da inferioridade.

O espaço escolar, reproduzindo essa compreenção, negligencia um olhar mais apurado sobre a cultura negra, um exemplo disso é a história ensinada que não retrata a própria luta do negro pela conquista da liberdade. É ensinado a nossas crianças que um belo dia uma princesa branca, benfeitora, amante da negritude, infeliz com as condições em que os escravos se encontravam, decreta o fim do cativeiro.  Ainda hoje quando se menciona o Quilombo de Palmares nos livros de história da educação básica, narra-se apenas a sua destruição por Domingos Jorge Velho e companhia, não se conta que o quilombo da Serra da Barriga resistiu e derrotou mais de trinta campanhas militares que o estado promoveu contra ele. Esse é apenas um exemplo do trato que se dá a cultura e a história negra no país.

Esse processo é resultado de discursos que, apesar de distantes no tempo, ainda circulam em variados textos e permanecem incorporados no imaginário social, como a ideia de existência de uma democracia racial instaurada após a abolição dos escravos. Segundo Zulbaran  e Silva (2012), “o discurso da democracia racial contribuiu para camuflar o racismo e encobrir as desigualdades e os conflitos etnico-raciais”. Para as autoras, um dos efeitos dessa democracia foi a “folclorização das manifestações culturais afro-brasileiras, sua cristalização num passado distante e a-histórico” o que apagou a contribuição destas para a cultura e a história brasileiras.

O período colonial trouxe consigo mecanismos de descaracterização das raças consideradas subordinadas. Dentre eles cita-se como principal a afirmação da ausência, ou seja, a caracterização de uma raça como deficiente em relação aos conceitos culturais europeus, renegando-lhe a cultura, a moral, a inteligência e a própria história.

A cultura negra trazida com os escravos ao solo brasileiro foi grandemente negada e marginalizada, principalmente aquela cuja linguagem era proveniente dos terreiros e quilombos. Estes, tornaram-se o maior instrumento de resistência e propagação dos custumes e crenças africanas e foram, a longo prazo, a via de manutenção das raízes dos negros escravizados.

Segundo Dantas (s/d)

As expressões culturais afro-brasileiras, em especial as originárias dos Povos de Terreiros, principalmente no interior, sofrem continuamente com o preconceito institucional, além das campanhas sistemáticas de descrédito e desrespeito religioso e a falta de apoio para a manutenção das atividades religiosas e culturais. (DANTAS, s/d, p. 1)

A religião, para Santos & Santos (1999) “foi e é o maior transmissor de valores da negritude afro-americana”. Valores carregados de tanta plasticidade, que conseguiram sobreviver a toda a opressão e pressão que lhe foi imposta. Esse processo dialético de resistência-acomodação permitiu que a religiosidade se acomodasse sem “embranquecer”, ou seja, sem perder o vínculo com a história de suas origens. Um dos meios encontrados pelos escravos africanos para manter seus cultos protegidos foi o sicretismo religioso. Associando seus deuses aos santos da igreja católica (religião dominante da época), os escravos conseguiram manter seus costumes religiosos sem que os seus senhores percebessem e, desta forma, garantiram seus ritos e a transmissão de saberes às gerações seguintes.

Vale ressaltar que a conversão forçada surgia no momento do desembarque dos escravos em solo brasileiro. Cada escravo era re-batizado ao desembarcar dos navios negreiros e perdia sua identidade social, sua origem e sua historicidade. Estas práticas não foram aceitas facilmente. Houve resistência de diversos grupos e a própria organização em terreiros e quilombos veio fortalecer essa negativa. Os grupos formados possuíam características específicas e, em algumas situações, eram verdadeiros grupos guerrilheiros da atualidade, devido à forte resistência e luta travada contra a escravidão imposta. Um dos casos que expressa tal situação foi o surgimento da Sociedade Secreta Ogboni, cuja maioria de integrantes era de origem malês e que fornecia treinamento de guerra.

Algumas dessas sociedades foram desfeitas com o tempo, outras prevaleceram e permanecem existindo na atualidade, com a função de perpetuar as origens religiosas e realizar a transmissão dos saberes oralizados.

Para Santos & Santos (1999),

Foi através da prática contínua da religião que o negro conservou um sentido profundo de comunidade. A América Latina viu transportar, implantar e reformular em seu solo, um complexo cultural que se expressa através de associações religiosas, nas quais se mantém e renova o mais específico de seus sistemas de origem. (SANTOS & SANTOS, 1999, s/p).

Os negros trazidos ao Brasil como escravos não eram provenientes de uma única região africana. Muitas vezes não era possível a comunicação entre eles por pertencerem a tribus diferentes e terem dialetos distintos. Assim, também, a religiosidade destes não era idêntica e, ao ser combinada com outras culturas, como a indígena e a europeia, teve suas alterações, porém, volta-se a repetir, não perdeu sua matriz. Por tal motivo, não ocorreu o surgimento de uma nova religião, mas uma re-configuração das manifestações já existentes, uma adaptação que, apesar de imposta, conseguiu preservar as origens e a transmissão dessa religiosidade.

O Tambor de Mina é um exemplo atual dessa adaptação. Promovendo a junção das cultruas negra, índia e europeia, a religião se mantem com uma predominância africana em seus ritos, linguagens, vestimentas e na própria hierarquia do terreiro.

Surgida no Nordeste brasileiro e posteriormente, recriada na Amazônia o Tambor de Mina carrega em sua nomenclatura a origem de seus integrantes, negros mina-jejes e mina-nagôs provenientes da Costa da Mina, atual República do Gana, região das Repúblicas do Togo, Benin e Nigéria.

Nesse contexto onde saberes, práticas e vivências se misturavam, a religiosidade dos negros escravos encontrou caminhos para resistir e existir. Para Martinic (1994, p.74) apud Mota Neto (2011),

Este conocimiento proporciona un conjunto de objetivaciones, certezas y parâmetros que permiten al sujeto comprender su experiencia y, aun más, hacerla inteligible para los demás. Es un conocimiento compartido que se produce y sigue siendo real en tanto permite un reconocimiento colectivo (MARTINIC, 1994, p. 73 apud MOTA NETO, 2011, p.8).

Essas vivências são identificadas pelo autor como sabedoria popular, constituída em função de uma racionalidade específica das classes e grupos populares, configurada à parte do cientificismo dominante e do saber oficial.

Temos, assim, na religiosidade desses grupos afro-brasileiros uma das principais, senão a principal fonte de transmissão e perpetuação da cultrua que encontrou, no contexto de exclusão, negação e dominação em que se encontrava, meios de resistir e existir, resguardando-se da miscigenação cultural que constituiu o povo brasileiro.

Conjuntamente com a resistência religiosa, a organização dos quilombos e terreiros exigiu dos negros escravos a idealização de formas de defesa que dispensassem armas – já que estas se encontravam fora do alcance deles. O único instrumento de que dispunha para isso era o próprio corpo. Como afirma Salles (2004),

Aí é que entra um dos capítulos mais sugestivos da cultura popular, pois à defesa com o corpo gingado e negaceado, como o ataque rápido e certeiro, tão característico do negro de Angola, se creditou a origem da hoje nacional “capoeira” – espécie de jogo de destreza, ou uma forma de luta, conforme Edison Carneiro, “muito valiosa na defesa da liberdade de fato ou de direito do negro liberto”. (SALLES, 2004, p.113)

A capoeira, incialmente utilizada para defesa, termina incorporando em sua prática a musicalidade (instrumentos e cantos). Expressão da lúdica popular a capoeiragem torna-se a herança cultural negra, com um aprendizado que se transmitia ainda na infância, através da imitação dos maiorais.

Ainda segundo Salles (2004), no Pará a capoeira se associou ao batuque de tambores do carimbo

tambores que se irmanaram ao povo mina-nagô e mina-jeje [...] Esse mesmo batuque derramou-se nas danças rituais quando foi possível restaurar as tradições religiosas fricanas e se multiplicou nas danças de terreiro, muitas delas agrupadas na grande família do samba (SALLES, 2004, p.135)

Desta forma, a capoeira se mistura ao Tambor de Mina dentro dos terreiros, unindo-se ao tambor-de-crioula do Maranhão, ambos elementos constitutivos do carimbó e dentro dos terreiros se torna mais um elemento de transmissão de saberes, vivências, da história e da identidade dos povos africanos agrupados em seu entorno.

[...]

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