A PRÁTICA DE “INFANTICÍDIO” NAS COMUNIDADES INDÍGENAS FRENTE AO ESTADO BRASILEIRO

Por Raíssa Daniela Pompeu Oliveira | 31/08/2017 | Direito

A PRÁTICA DE “INFANTICÍDIO” NAS COMUNIDADES INDÍGENAS FRENTE AO ESTADO BRASILEIRO: O PAPEL DO DIREITO PENAL E AS DISCUSSÕES ACERCA DO RELATIVISMO CULTURAL E DO DIREITO À VIDA[1]

 

Adriana Teixeira Mendes Coutinho[2]

Raíssa Daniela Pompeu Oliveira[3]

José Cláudio Cabral Marques [4]

 

 

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 A CARACTERIZAÇÃO DO INFANTICÍDIO NO DIREITO PENAL2.1 A situação jurídica dos índios estabelecida na Constituição Federal de 88 bem como o que dispõe o Estatuto do Índio e a visão antropológica frente ao caso. 3 O “INFANTICÍDIO INDÍGENA” NO BRASIL SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS 3.1 O papel do Estado brasileiro como defensor dos direitos humanos. 4 O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E A NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DO ESTADO FRENTE AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E AO RELATIVISMO CULTURAL. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.

 

 

RESUMO

 

A proposta do presente artigo científico é analisar de forma interdisciplinar para além da norma jurídica, as mortes intencionais de crianças que ocorrem em aldeias indígenas e que ainda são práticas comuns em algumas comunidades. Os motivos são diversos tais como a má formação, deficiências físicas ou por apenas por serem gêmeas. Diante disso, pretende-se analisar a prática do “infanticídio indígena” levando em consideração o papel do Estado e do Direito Penal diante destes casos frente ao relativismo cultural. A análise será pautada em aspectos antropológicos, tais como o etnocentrismo e o pluralismo cultural, nos direitos humanos e, principalmente, no direito à vida. Para isso, é de suma importância a verificação da caraterização deste “crime”, para o Direito Penal e a Antropologia, além da situação jurídica dos índios estabelecida na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto do Índio. Além disso, será abordada e possibilidade de aplicação de políticas públicas em face do papel do Estado Brasileiro nesses casos, como defensor dos direitos humanos. Vale ressaltar, que a pesquisa será balizada pelo princípio da proporcionalidade e respeito ao relativismo cultural.

 

 

Palavras-chave: Infanticídio. Relativismo cultural. Direito à vida. Direitos Humanos.

1 INTRODUÇÃO

 

            A morte intencional de crianças em aldeias indígenas é tema polêmico, que envolve não apenas o Direito Penal, mas a Antropologia e os Direitos Humanos, por ser um tema necessariamente interdisciplinar, assim, merece ser amplamente discutido. Diante disso, o presente artigo científico se propõe ainda elencar teorias importantes como o relativismo cultural, o pluralismo cultural e a universalidade de direitos.

            É importante ressaltar, que vivemos em um Estado Democrático de Direito, que possui como uns de seus alicerces os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Logo, a compreensão da operatividade e da dimensão deste princípio é uma base para fazer um enfrentamento jurídico das questões relacionadas ao “infanticídio indígena”, o que envolve, inclusive, a Bioética.

    É necessário destacar que o objetivo geral deste trabalho é, justamente, analisar, sob a perspectiva do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, a prática de “infanticídio indígena”, levando em consideração o papel do Estado e do Direito Penal frente ao relativismo cultural.

                No que tange aos objetivos específicos, pretende-se verificar como o “infanticídio” se caracteriza, frente ao Direito Penal e à Antropologia, bem como a situação jurídica dos índios estabelecida na Constituição Federal de 88 e no Estatuto do índio em confronto com o Código Penal Brasileiro; realizar, sob a ótica dos direitos humanos, uma análise acerca das políticas públicas a serem adotadas devido à prática de “infanticídio indígena” bem como o papel do Estado, como defensor dos direitos humanos e relacionar o direito fundamental à vida com a necessidade de intervenção do Estado, no que tange o princípio da proporcionalidade e o respeito ao relativismo cultural.

Logo, é relevante destacar que, consequentemente, surgem dilemas envolvendo a dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais que devem alcançar a todos, bem como o pluralismo cultural frente à universalidade de direitos. Portanto, a escolha do tema se torna pertinente, diante da necessidade, o debate a respeito destas questões que envolvem o pluralismo cultural, o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. Todavia, é conveniente para este estudo, uma análise sob a ótica do relativismo cultural, tendo em vista a incapacidade do ser humano ser altero para com o próximo, facilitando e ao mesmo tempo desafiando o indivíduo com um assunto que, frequentemente, é visto de forma etnocêntrica e até mesmo preconceituosa.

 

Por isso, o interesse das autoras têm como base a importância do tema, por ser um debate bastante rico, que envolve diversos assuntos importantes tais como: cultura, direito penal, relativismo cultural, direitos fundamentais, direitos humanos, dentre outros, que necessitam ser estudados e aprofundados pela comunidade acadêmica e a sociedade em geral. Para tanto, o debate sócio-jurídico se encaixa perfeitamente neste propósito.

Em suma, a pesquisa quanto aos objetivos se classifica como exploratória, uma vez que visa ampliar os conhecimentos em relação ao tema abordado, e como bibliográfica quanto aos procedimentos, pois tem sua base fundamentada em livros e artigos já publicados

 

2 A CARACTERIZAÇÃO DO INFATICÍDIO NO DIREITO PENAL

 

Cumpre, primeiramente, destacar que o infanticídio se caracteriza, no Código Penal, como “uma espécie de homicídio doloso privilegiado”, concedido pelo fato do estado puerperal que incide sobre a parturiente. Disposto no art. 123 do referido código, tal privilégio é um componente essencial, caso contrário o delito tipificado será outro (CAPEZ, 2014, p. 135). Tal dispositivo é enfático: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após” (CÓDIGO PENAL, 1940).

Neste sentido, Cleber Masson (2014, p.66) também pontua que o estado puerperal é o “conjunto de alterações físicas e psíquicas que acometem a mulher em decorrência das circunstâncias relacionadas ao parto tais como convulsões e emoções provocadas pelo choque corporal, as quais afetam sua saúde mental”.

Partindo deste pressuposto, se discute, portanto, se essa condição elementar está presente nos casos indígenas, já que em determinados assassinatos de crianças, a mãe não está imbuída de tal estado, e não deseja livrar-se do seu filho, mas pratica o ato em nome da tradição cultural e por pressão da tribo. Outras realmente veem a criança como um verdadeiro fardo que por um defeito, tornou-se indesejada. É por isso que muitos suicídios também são registrados, já que as mães se recusam a perpetuar estes atos e desistir de um filho (SUZUKI, 2007).

O infanticídio, portanto, é crime, e a situação a ser discutida é que nem sempre estas crianças são mortas pelas mães, na condição elementar de estado puerperal, pelo contrário, frequentemente elas querem permanecer com a criança, mas a comunidade não permite, devido a tradições culturais. Caracterizando-se assim um homicídio e não um infanticídio, já que a elementar não está presente.

 

2.1 A situação jurídica dos índios estabelecida na Constituição Federal de 88 bem como o que dispõe o Estatuto do Índio e a visão antropológica frente ao caso

 

A nossa CF reconhece a pluralidade cultural e étnica e é assegurado aos índios o direito à alteridade, conforme a Convenção 189 da OIT. Além disso, o CC dispõe que a capacidade dos índios será regulada em lei especial, portanto a interpretação de que são inimputáveis é errônea e ultrapassada. Deve ser analisado se o indígena tinha, efetivamente, condições de conhecer o caráter ilícito daquele ato. (SANTOS FILHO). 

Em primeiro lugar a análise não é pautada em uma ótica etnocêntrica, mas sim na questão da ponderação de valores. Vale destacar, que para Everardo Guimarães Rocha (1988, p.07), este “é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”. Por isso, para o enriquecimento do trabalho, estes conceitos antropológicos são importantes.

Quanto a esses povos a Constituição Federal de 88 estabelece em seu art. 231 que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988). Fato este que incide a defesa dos antropólogos em não interferir na cultura daquele povo, muito menos querer lhes impor a nossa cultura bem como nossas leis.

Diante disso, destaca-se a situação dos índios na Constituição de 1988. Em primeiro lugar destaca-se o art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Outro dispositivo pertinente como o artigo 215, elenca:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

 

Discute-se acerca imputabilidade ou não do indígena frente ao que dispõe o art. 121 do Código Penal. Tendo em vista, que não se trata de um infanticídio, mas sim de um homicídio. Vale dizer que, antes da Constituição de 88 e do Código Civil de 2002, quanto a questão da imputabilidade era analisada de acordo com o art. 26 do CP, e o art. 4º do Estatuto do índio. Levava-se em consideração a inimputabilidade dos índios isolados, bem como a imputabilidade dos integrados à sociedade (SANTOS FILHO).

A Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o Estatuto do Índio, dispõem em seu artigo 2º, inciso VI que:

 Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos:

   VI - respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes; (grifo nosso).

 

            Partindo deste pressuposto, destaca-se a pertinente discussão a respeito da compatibilização da universalidade de direitos com o pluralismo cultural, buscando uma análise afastada de uma visão etnocêntrica. Por isso é importante ressaltar que há críticas a esta proposta de universalidade de direitos, tendo em vista que ela pode ser usada como uma forma de legitimação de valores de um povo perante outro ou de universalização de crenças próprias em prol de algum interesse (PEIXOTO, 2007).

            Desse modo, elencamos algumas críticas no que tange ao relativismo cultural bem como a proposta de universalidade de direitos. Em primeiro lugar, a noção de direitos e deveres nos povos pode não ser igual, além disso, a visão de direitos humanos é fundada em uma visão antropocêntrica de mundo que não abrange todas as culturas, sendo algumas vistas como “erradas”, “desumanas”, a visão universal de direitos humanos também seria uma forma de imperialismo justificador da visão e cultura ocidental, sendo muito mais usado como um discurso utilizado como elemento da política, e o universalismo analisa o homem de forma particularizada, por fim se deve levar em conta as desigualdades sociais e econômicas para efetivamente implementar e proteger os direitos humanos (PEIXOTO, 2007).

 

3 O “INFANTICÍDIO INDÍGENA” NO BRASIL SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS

 

O “infanticídio” em comunidades indígenas é uma prática que já dura há anos e que é alvo de inúmeras discussões que envolvem direitos humanos, relativismo cultural e, principalmente, o direito à vida, sendo este constitucionalmente garantido. Por isso, no que tange a tais mortes intencionais praticadas nas aldeias, é primordial que haja um diálogo intercultural, de forma que não haja violação de direitos básicos destas crianças que já estão em uma situação de vulnerabilidade histórica, social, econômica e étnica resultante da opressão dos povos indígenas desde a colonização até os dias atuais (ADINOLFI, p.2).

Tais crianças não podem sequer desfrutar da mesma proteção que as demais, restando apenas um silêncio, ou por vezes um grito abafado. São centenas de crianças indígenas que, indesejadas, se tornam alvos de crenças, verdadeiramente cruéis, para a sociedade que se encontram fora daquele contexto. Dentre as práticas destacam-se envenenamentos, abandono na floresta, sufocamento e o enterro desses menores ainda vivos (SUZUKI, 2007).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 1º, elenca que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Outro dispositivo relevante para o presente trabalho incide exatamente no artigo 3º que dispõe: “toda pessoa tem direito a vida, a liberdade e segurança pessoal”. Ou seja, se torna claro que qualquer tipo de transgressão, discriminação, violação são combatidos por esta Declaração (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).

A ONU considera o direito à diversidade cultural um direito legítimo, no entanto, a vida é algo fundamental e sem ela não há cultura. Nessa perspectiva não se torna justificável a realização de tradições culturais que viole, a vida, por exemplo. “Nenhum Estado poderá evocar de suas tradições culturais para justificar a pratica da escravidão ou tortura. Da mesma forma não poderia o direito a diversidade cultural ser forma de legitimação da violação da vida” (FRIGOTTO, 2014).

Percebe-se que na maioria das vezes a cultura e a crença ocultam determinados acontecimentos, evitando que muitos interfiram em um ato que lhes é comum e ainda perpetuado, temendo a sua cultura e o desaparecimento dela. Quanto ao infanticídio, praticado em algumas tribos indígenas, o problema pode ser maior do que se pensa. No caso das crianças indígenas, “a cultura é colocada acima da vida e suas vozes são abafadas pelo manto da crença em culturas imutáveis e estáticas” (SUZUKI, 2007).

De fato, é um tema bastante polêmico e que exige um debate aprofundado, que envolve o choque entre a universalidade de direitos e o pluralismo cultural, sendo de suma importância a abordagem do o papel dos direitos humanos devido à complexidade dos casos, tendo em vista que estas crianças são simplesmente “descartadas”, seja por terem alguma má formação ou deficiência, serem gêmeas, por serem do sexo feminino ou até mesmo por serem gêmeas (PEIXOTO, p.257).

Sabe-se que quanto a morte das crianças, não são apenas recém-nascidos há registros de crianças mortas com 10, 11 e até 14 anos. Procura-se então diante deste cenário e objetivando a erradicação do “infanticídio” uma análise e levantamento de dados confiáveis em prol da preservação da vida, direito fundamental que independe da etnia da criança (SUZUKI, 2007). Direito este consagrado também na Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu art. 3º, em que “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).

Por fim, torna-se importante destacar duas correntes que discutem acerca do infanticídio indígena: a do relativismo cultural, tendo início com Franz Boas e a qual defende que “o bem e o mal são elementos definidos em cada cultura, inexistindo então as verdades universais, não havendo como se comparar uma sociedade com a outra”. A segunda diz respeito ao universalismo ético e prega que “homem, a sociedade e a cultura pertencem a algo maior a sociedade humana. Esta sociedade humana e detentora de valores universais como a dignidade e a busca pela continuidade da vida”. Direito esse que, por possuir um peso significativo, surge o impasse entre coibir ou interferir por parte do Estado. Franz defende que: “a cultura pesa e julga a si mesma, portanto a pratica do infanticídio não poderia ser considerada certa ou errada, mas sim aceita ou rejeitada socialmente” (FRIGOTTO, 2014).

 

3.1 O papel do Estado brasileiro como defensor dos direitos humanos

 

O Estado, como signatário da declaração dos direitos humanos e demais convenções internacionais que versam acerca desses mesmos direitos, deve agir zelando sempre pela vida, tendo em vista que na ponderação de direitos possui um peso maior e significativo. Por isso, não é justificável a não-interferência do Estado em respeito às culturas, já que nesses caso há uma grave violação, como também não é justificável atentar contra a vida de inocentes que sequer podem se defender frente a uma crença ou tradição que alguns ainda insistem em reproduzir.

Sabe-se que, de fato, há uma consolidação no plano teórico dos direitos humanos. Contudo, em determinadas culturas o que se vê é a violação de inúmeros direitos que deveriam ser salvaguardados, como é o caso do direito à vida em conflito com o “infanticídio” praticado em tribos indígenas, tendo em vista as crenças que estes perpetuam. Tais mortes são justificadas pela manutenção dos traços culturais destes povos, bem como pelo pluralismo cultural. Dessa forma, estas crianças, são mortas, muitas vezes de forma cruel, sendo enterradas vivas envenenadas e abandonadas para morrerem (MOSCOSO, 2010).  

São poucas as mortes por infanticídio registradas, tendo em vista além da ocultação de dados concretos, essas mortes ainda vêm mascaradas de modo que os dados que vem à tona são mortes por desnutrição ou qualquer outra causa misteriosa. Nesse ponto, surge o papel do Estado de modo a agir em prol dos direitos humanos e dessas crianças (SUZUKI, 2007). A Organização das Nações Unidas (ONU) também reafirma os direitos humanos e defende que: “os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS, 1948). Eles não são privilégios de alguns

 

4 O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E A NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DO ESTADO FRENTE AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E AO RELATIVISMO CULTURAL

 

A prática de “infanticídio” por indígenas, ainda hoje, constitui-se um desafio ao respeito da diversidade cultural destes povos, tendo em vista que o Estado deve assegurar os direitos fundamentais, dentre eles à vida. Crianças indígenas, são brutalmente mortas, sem defesa, sem voz, são simplesmente “descartadas” por suas próprias famílias devido a uma tradição cultural (SANTOS, p.1).

O Estado por vezes se mantém inerte de modo que, numa política não intervencionista, preserve a cultura indígena. Tal pensamento subordina os direitos humanos à diversidade cultural, fazendo com que estes se tornem relativos, quando, na verdade, deveriam ser universais independente da crença. Compartilham dessa mesma ideia muitos antropólogos que se utilizam do relativismo jurídico para explicar essa subordinação (SUZUKI, 2007). Busca-se não interferir naquela cultura de modo a não “contaminá-los”.

São centenas de crianças indígenas que, indesejadas, se tornam alvos de crenças, verdadeiramente cruéis, para a sociedade que se encontram fora daquele contexto. Dentre as práticas destacam-se envenenamentos, abandono na floresta, sufocamento e o enterro desses menores ainda vivos (SUZUKI, 2007).

As vítimas mais comuns de infanticídio no meio indígena são aquelas que possuem alguma:

[...] deficiência física ou mental são mortas, bem como gêmeos, crianças nascidas de relações extra-conjugais, ou consideradas portadoras de má-sorte para a comunidade. Em algumas comunidades, a mãe pode matar um recém-nascido, caso ainda esteja amamentando outro, ou se o sexo do bebê não for o esperado (SUZUKI, 2007, p. 4).

 

De fato, no Brasil, os grupos sociais indígenas possuem costumes e práticas que devem ser respeitadas, inclusive leis próprias. Ou seja, eles possuem uma visão diferente do que seja nascimento, morte e vida, bem como o que seria prejudicial para sua comunidade. Como detentores de direitos, como qualquer outro povo, eles devem ser respeitados no que tange as suas tradições. Contudo, partindo de um pressuposto constitucional o direito à vida é fundamental e o pluralismo cultural não deve ser usado como justificativa para atos cruéis que tiram a vida de inocentes (SANTOS, p.1).

Vale pontuar, por fim, o artigo 2º, inciso VI do Estatuto do índio que trata, principalmente, sobre o respeito no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes, demonstrando a incidência do princípio da proporcionalidade.

Procura-se, portanto, “um diálogo respeitoso entre as sociedades”, uma ponderação de valores de modo que não esbarre no direito à vida do outro, assim, Suzuki (2007, p. 20) destaca em sua obra que “qualquer ação que venha a ser tomada no sentido de erradicar o infanticídio deve partir, preferencialmente, do diálogo inter-étnico e das próprias comunidades indígenas”. Deve-se ter cautela ao não tentar impor os nossos costumes, ou seja, agir de forma etnocêntrica (SUZUKI, 2007, p. 20).

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O homem por vezes é um ser etnocêntrico, já que sua cultura quase sempre está acima das demais. É fato que o caso precisa ser analisado com cautelar e observar os limites da interferência, uma vez que a intenção é coibir as práticas até o momento em que incidem em um direito maior e universal, como o direito à vida. É com a relativização que busca-se encontrar uma proporção entre os dois lados e poder ver a nossa cultura não como um modelo, padrão mas desmistificar as ideias vistas como absolutas, relativizando-as. 

Considerando o termo “infanticídio” indígena uma mera denominação cultural e inadequado já que inexiste o estado puerperal tem-se que, na verdade, o crime é de homicídio. Nessa perspectiva, é irrelevante, a sua classificação, quando sendo um crime ou outro há sempre a violação do direito à vida, ainda que prática comum em algumas tribos. São centenas de crianças indígenas que, indesejadas, se tornam alvos de crenças, verdadeiramente cruéis, para a sociedade que se encontram fora daquele contexto. Dentre as práticas destacam-se envenenamentos, abandono na floresta, sufocamento e o enterro desses menores ainda vivos.

O Estado brasileiro, como defensor dos Direitos Humanos e detentor de uma legislação pautada em princípios e garantias fundamentais, deve não só respeitá-los como povos que integram a nossa cultura e história, mas como um grupo que merece uma atenção e, portanto, um diálogo de modo a buscar alternativas de solucionar aquele fato interno que não seja pela imposição da nossa cultura bem como das nossas leis, principalmente de forma abrupta.

Outro princípio amplamente difundido e que abarca um rol dos direitos fundamentais é o princípio da dignidade humana usado também para reiterar o direito à vida. Assim, quando se trata de direitos humanos e o seu relativismo, cada sociedade pode ter uma concepção distinta destes, evidenciando verdadeiros entraves não só pelo combate a tais práticas como também a dificuldade de se dialogar. Daí a necessidade de um estudo interdisciplinar entre antropologia, direito penal e também constitucional, observando ainda o que dispõe, por exemplo, o estatuto do índio.

Franz como percussor da discussão do relativismo elencava que, em determinados casos como a prática de infanticídio não pode ser considerada certa ou errada, mas aceita ou rejeitada socialmente. É preciso levar em consideração que o infanticídio indígena já não é adotado por muitas tribos que ao longo dos anos passaram a mudar suas concepções e aderir a novos valores. Alguns indígenas, relatam na própria Cartilha, aqui utilizada, a rejeição e até a sensibilidade pela vida das crianças, que ao invés de receberam um maior cuidado e atenção, sofrem com a perversidade da suas próprias culturas, retirando-lhes a vida, abafando as vozes.

De fato, sempre há divergências entre os direitos humanos, pela universalidade, e o relativismo cultural, já que o debate exatamente acerca do universalismo desses direitos. É com base nisso que surge a ideia do princípio da proporcionalidade em sopesar um ou outro direito frente a situação de colisão apresentada.

Em suma, se faz perceber que cabe a criança indígena o direito à vida como qualquer outra. Importante seria a atuação do Estado na elaboração de medidas bem como de políticas públicas e sociais que visem amenizar ou acabar com este quadro, e em caso de rejeições, direcionar tais crianças à outras famílias que desejam cuidar e dar o afeto necessário. Cumpre destacar, por fim, que os objetivos do presente trabalho foram devidamente alcançados.  

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REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

 

CHIRIBOGA, Oswaldo Ruiz. O direito à identidade cultural dos povos indígenas
e das minorias nacionais: um olhar a partir do Sistema Interameariano.
Revista
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452006000200
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DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.1948.ONU

 

ESTATUTO DO ÍNDIO. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973.Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2016.

SANTOS FILHO, Roberto Leme dos. Índios e imputabilidade penal. Disponível em: < www.amb.com.br/portal/.../indios%20e%20Imputabilidade%20Penal.doc> Acesso em: 20 mar 2016.

 

FRIGOTTO, Vanessa Daiane. Infanticídio Indígena: controvérsias entre prática cultural, dignidade da pessoa humana e direitos humanos. 2014. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/infanticidio-indigena-controversias-entre-pratica-cultural-dignidade-da-pessoa-humana-e-direitos-humanos/117427/#ixzz48LPf8LuE>. Acesso em: 05 de mai. 2016.

 

SUZUKI, Márcia. 2008. “Quebrando o silêncio: um debate sobre o
infanticídio nas comunidades indígenas do Brasil”
. Márcia Suzuki (org). 2007.

 

MAIOR, Ana Paula Caldeira Souto. Imputabilidade penal. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/temas-recentes/imputabilidade-penal> Acesso em: 21 mar 2016.

 

MOSCOSO, Igor Matos. Direitos humanos e infanticídio na cultura indígena. Campina Grande: Universidade Estadual da Paraíba, 2010. Disponível em: < http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/5980> Acesso em : 21 mar 2016.

 

ROCHA, Everardo Guimarães. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1988, Cap. I, p.07.

 

PEIXOTO, Érica de Souza Pessanha. Universalismo e relativismo cultural. Revista

da Faculdade de Direito.

 

 

[1] Paper final apresentado à disciplina de Processo Penal II, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco-UNDB

[2]Aluna do 7º período do Curso de Direito, da UNDB

[3]Aluna do 7º período do Curso de Direito, da UNDB

4 Professor, Mestre orientador.

 

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