Ruptura x Tradição nas Obras 'Iracema' e 'As Aventuras de Ngunga'

Por Tarcila Muniz | 10/12/2008 | Literatura

Tradição e modernidade são palavras que, semanticamente, não se relacionam. No entanto, apesar de possuírem significados opostos, elas estão interligadas. A tradição se configura como a história de um povo, ou lugar. Ela compõe a identidade deste, é fruto de todo o legado cultural, político e econômico. Em contrapartida, a modernidade é a representação do novo, a ruptura com a tradição. Essa ligação entre palavras com significado totalmente oposto é possível devido a um fator: a modernidade só é percebida, quando há uma tradição a ser rompida.

Em Iracema, escrito no Romantismo,tradição e modernidade aparecem de forma complexa. Supostamente, a obra é inovadora, tendo como personagem uma índia. Analisando superficialmente, é, de fato, uma narrativa moderna, que rompia com os padrões europeus, tendo como personagem uma outra etnia, que não a branca, que atendia aos interesses da sociedade então vigente.

No entanto, um estudo mais atento, percebe que essa "inclusão" do indígena na literatura, nada mais é que uma ilusão. O índio, nessa obra, é idealizado. Ao invés de enaltecer o índio, ele confirma o estereótipo da raça vermelha. Nesse aspecto, a inovação vem para consolidar a deturpada idéia de superioridade da raça branca, e confirma uma não-civilização dos índios. O foco da obra é o romance entre Iracema e Martim, branco e civilizado. Muitos consideram uma alegoria da submissão do índio ao branco, entendida como a traição de Iracema ao violar o a tradição indígena e dar a bebida secreta do pajé à Martim.

Outro ponto intrigante é a ausência do negro. Ele sequer é citado na obra, com se fosse pretensiosamente apagado da história. Nota-se a presença da sua ausência. Fica claro que a obra é uma alegoria da superioridade da raça branca sobre a vermelha, idealizada, e negra, esquecida pelo autor, intencionalmente. Subtende-se, num nível mais avançado de leitura, que o negro sequer é digno de compor uma obra que supostamente retrata a identidade brasileira. Nesse caso, entende-se que a formação cultural brasileira engloba a junção de duas raças apenas: a vermelha e a branca.

Ao contrário de Iracema, em que os costumes indígenas são postos de lado, As aventuras de Ngunga é escrito sobre forma de relato, em que são citadas os costumes e tradições das pequenas aldeias. Se em Iracema o colonizado é visto sob o olhar do colonizador, aqui o colonizado é visto pelo seu olhar. Enquanto no romance de José de Alencar, o colonizado se rende à cultura do colonizado, entendida como civilizada, na obra de Pepetela, o colonizador é visto como inimigo, travando guerras com o povo local.

Em As aventuras de Ngunga, o personagem, que intitula a obra, é uma representação do homem íntegro. Enquanto Iracema trai seu povo em nome do amor à Martim, Ngunga desde pequeno entende a luta de seu povo, e defende tal causa, tomado precocemente pelo desejo de liberdade e de tornar-se guerrilheiro. A ruptura do livro está na manutenção da tradição genuína dos costumes locais.

Em Civilização, conto que integra a obra Contos, de Eça de Queiroz, o tema tradição e ruptura aparece de uma forma mais complexa. Aqui, ao invés do "duelo" de raças, o embate dá-se por meio do confronto do meio urbano com o rural (campo).

Eça começa definindo seu primeiro personagem, Jacinto, como "homem supercivilizado". No entanto, essa característica faz de Jacinto um homem entediado, que vive lastimando-se da vida.

Após a viagem para o campo, percebe-se uma sutil mudança: o ambiente sofisticado, dotado de uma atmosfera tecnológica e intelectual, embasada por grandes filósofos, dá margem à barulhos e imagens de santos.

Subtende-se, durante a leitura do texto, que Jacinto, até então, era a personificação da civilização. E a todo o tempo há um contraste, evidenciados por meio de pequenos contrastes, como a substituição dos filés de veado, ovas da carpa, por moelas; a troca dos mesa sofisticada e diversos talheres, pela mesa de pinho, com colheres de pau. Esse caráter de não civilizado, é conferido também pela linguagem, quando Zé Brás fala "inselência" ao invés de "excelência". Esses pequenos detalhes, juntos, nos revelam o embate existente entre o campo e a cidade.

A partir dessa análise, compreende-se o título da obra. Uma outra análise que deve ser ressaltada, é a presença do narrador. Ele é quem manipula a questão aqui trabalhada na obra. Isso comprova-se em alguns fragmentos do texto, em que ele nos induz a entender que a civilização está ausente no texto. E o ponto mais interessante, nesse sentido, é quando faz-se uma associação da modesta dormida no campo com a dormida de Platão durante a produção de uma obra. Seria uma alegoria da necessidade que Jacinto tem de estar num contexto civilizatório.

No entanto, o que surpreende no livro, é o final pretensioso. Jacinto perde a confiança nos seus filósofos pessimistas e opta por viver no campo. Sendo assim, há uma vitória da natureza sobre a cidade, em que pode-se concluir, como o narrador mesmo sugere, que para reaver a felicidade, era necessário regressa ao Paraíso.

Percebemos, portanto, que tradição e modernidade podem estar contidas no mesmo contexto, sem, no entanto, tornar a obra contraditória. Elas, por meio dessa oposição de significado, se complementam, tomando, por vezes, uma, no sentido de mascarar a outra.


PEPETELA, Artur Pestana. As aventuras de Ngunga. Editora Frente Leste, 1973.

ALENCAR, José de. Iracema. 8ª ed. São Paulo, SP: Ática, 1978.