Rousseau, a Liberdade e o Trabalho.

Por C.G. Freitas | 04/12/2010 | Filosofia

ROUSSEAU, A LIBERDADE E O TRABALHO


"... na minha opinião a sociedade é tão natural à espécie humana como a decrepitude para o indivíduo e de que aos povos são necessárias as artes, as leis e os governos, como as muletas o são para os velhos. A diferença toda está em que o estado de velhice decorre unicamente da natureza do homem e o da sociedade decorre do gênero humano, não imediatamente, como quereis, mas unicamente, como o provei, graças ao auxílio de certas circunstâncias exteriores que podem acontecer ou não, ou, pelo menos, acontecer mais cedo ou mais tarde e, consequentemente, apressar ou retardar o progresso. Inúmeras dessas circunstâncias dependem mesmo da vontade do homem; vi-me obrigado, para estabelecer uma paridade perfeita, a supor no indivíduo o poder de acelerar sua velhice como a espécie tem o de retardar a sua. Tendo, pois, o estado de sociedade um termo extremo, ao qual os homens podem querer chegar mais cedo ou mais tarde, não é inútil mostrar-lhes o perigo de ir tão depressa e as misérias de uma condição que tomam como a perfeição da espécie. "1


LIBERDADE: "UMA FACA DE DOIS GUMES"

No trecho extraído da Carta ao Sr. Philopolis, Rousseau adverte que o progresso acelerado das ciências, das artes, das leis e dos governos afastaria o homem da natureza e o conduziria a uma velhice precoce. Sendo o homem livre para fazer um bom ou mal uso das faculdades que recebera potencialmente, é ele também o responsável pela maioria dos males que o afligem na vida em sociedade. A partir disso, Rousseau alerta quanto aos perigos do rápido aperfeiçoamento humano.

A perfectibilidade e as outras faculdades estão presentes, mas ainda não desenvolvidas no homem selvagem que, vivendo dos frutos que a terra lhe oferece de forma espontânea e preocupado apenas com a auto-conservação, possui poucas necessidades e prescinde da convivência com outros homens. De constituição robusta, o homem no estado de natureza não teme a morte, pois não a conhece. Suas enfermidades são todas naturais e, temendo somente a dor e a fome, está bem porque tem pouquíssimos sofrimentos. Na construção hipotética desse homem selvagem, Rousseau baseou-se em relatos de predecessores como Montaigne, que num de seus ensaios fala de homens que "afirmaram mesmo nunca terem visto um epilético, remeloso, desdentado ou curvado pela idade."2

As circunstâncias exteriores ou fenômenos naturais, como tremores de terra e inundações, forçam o homem a abandonar a sua vida solitária e favorecem o surgimento das primeiras associações, fato que também aparece no Ensaio sobre a origem das línguas:

"As associações de homens são, em grande parte, obra dos acidentes da natureza ? os dilúvios particulares, os mares extravasados, as erupções dos vulcões, os grandes terremotos, os incêndios despertados pelo raio e que destroem as florestas, tudo que atemorizou e dispersou os selvagens de uma região, depois reuniu-os para reparar em conjunto as perdas comuns. " 3

Assim, a emergência de obstáculos naturais possibilita ao homem a rápida ampliação de suas luzes e o exercício de sua imanente liberdade de escolha. Porém, a capacidade de aperfeiçoar-se pode conduzi-lo não somente a uma melhora, mas também a degradação. A liberdade aparece, junto com a perfectibilidade, como a base de inúmeros sofrimentos que atingem o homem no estado de sociedade, que nada mais é senão o fruto da vontade humana. Como salienta Salinas Fortes:

"A liberdade é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que revela nossa superioridade e espiritualidade, é o princípio de nossos desregramentos."4

Quando o homem torna-se sociável, deixa de ser guiado pelo amor de si, que o fazia "velar pela própria conservação", e adquire o hábito de se comparar aos demais, passando a agir de acordo com o amor próprio. Então, graças ao seu novo modo de vida surgem vícios e paixões como a inveja e o ciume, que não existiam anteriormente. Moralmente depravado, o homem apresenta-se nesse estado, como o seu maior algoz, produtor e acelerador dos males que o abatem.

Longe da saúde e juventude do estado de natureza, o homem serve-se das muletas que a sociedade lhe oferece, que não passam de paliativos ou frágeis compensações para as insuficiências de uma maneira de viver que ele próprio escolheu quando afastou-se de suas origens.
Embora Rousseau admita a inevitabilidade de se chegar, mais cedo ou mais tarde, ao estado de sociedade, e ainda que supostas circunstâncias exteriores tenham contribuído para isso acontecer, ele não deixa de atribuir ao homem a responsabilidade pela aceleração ou retardo desse processo. Alertando quanto aos perigos de se ir tão depressa rumo ao progresso, Rousseau parece enfatizar a necessidade de se retardar o aperfeiçoamento humano, ou, pelo menos, a necessidade de que o homem utilize melhor a sua liberdade, com vistas a reverter ou reduzir os malefícios sociais.

"...A FERROS"

A contestação que Rousseau dirige ao Sr. Philopolis, criticando o progresso acelerado, põe em dúvida a afirmação corriqueira de que o trabalho é a condição natural para a existência humana, já que os males como a fadiga e o esgotamento espiritual causados por essa atividade são as consequências do afastamento da vida solitária, como manda a natureza.

Partindo da oposição entre a esfera da natureza e a esfera da sociedade, encontramos o homem selvagem vivendo dos frutos da terra, não sendo necessário forçá-la, nem tampouco empregar demasiado esforço para obter seu sustento. Por outro lado, após inúmeros progressos, aumentados de geração à geração com o advento da agricultura e da metalurgia e a consequente divisão do trabalho, o homem no estado de sociedade passa a viver sob a máxima: "Quem não trabalha não come!".

Com o desenvolvimento das artes e da indústria, o homem, entregue a trabalhos excessivos, degenera e perde o vigor do corpo ao mesmo tempo em que se torna moralmente depravado. Enquanto no estado de natureza "o homem selvagem, depois de ter comido, fica em paz com toda a natureza e é amigo de todos os seus semelhantes", o homem da sociedade, satisfeitas as suas necessidades primárias, lança-se numa busca desesperada pelo supérfluo e pelas riquezas. "Não há um momento de descanso."5

Orgulhosos de seus conhecimentos científicos e artísticos, os homens exaltam a sociedade do trabalho, sem atentar para as misérias que essa maneira de viver acarreta. Os mais fortes escravizam os mais fracos, surge a concorrência e a perfídia, a ambição e a rivalidade. Assim, desde a sociedade agrícola até a sociedade industrial e chegando finalmente a um passado bem recente, o trabalho aparece não só como a principal reivindicação de lutas emancipatórias, mas também como uma terrível forma de opressão e exploração. Essa contradição é exemplificada pela frase que podia ser lida no alto dos portões de Auschwitz: "o trabalho liberta".

Se lançarmos um olhar ao nosso redor, veremos que o trabalho, tal qual o concebemos, é uma atividade exclusivamente humana, não existindo na natureza nenhum outro animal que o pratique. E, mesmo entre os homens, o trabalho representa para muitos um martírio ou um auto-flagelo que humilha, brutaliza e acelera a velhice. Sem falar das modificações e danos que o homo faber causa ao meio ambiente, arrasando montanhas, arrebentando rochas, arroteando as terras e erguendo sobre o solo as suas enormes construções.6

"O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros."7 Esta frase ilustra a idéia de que o trabalho, como o vemos na sociedade, não é uma necessidade imposta pela natureza e que o próprio homem, livre e perfectível, é quem engendra as correntes que o prendem. Hoje, o progresso tecnológico permitiu delegar às máquinas as atividades que demandam um excessivo esforço físico, proporcionando ao homem um maior tempo livre, que ele gasta preso à desgastantes preocupações intelectuais. E mesmo o aumento da longevidade, numa vida repleta de horários, regras, portões e todo tipo de entraves aos quais o indivíduo se submete cotidianamente, não parece significar um melhoramento, mas sim uma espécie de escravidão ou suicídio prolongado.

NOTAS:
1 Carta ao Sr. Philopolis, p. 159
2 Dos Canibais, p. 102
3 Ensaio sobre a origem das línguas, , p. 294
4 O bom selvagem, p. 63
5 Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, Notas, p.128
6 Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, Notas, p.126
7 Do Contrato social, p.53

Referências bibliográficas
MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. In: Ensaios v. 1, coleção "Os Pensadores", São Paulo: Nova Cultural, 1987.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, coleção "Os Pensadores", São Paulo: Nova Cultural, 1999.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, coleção "Os Pensadores", São Paulo: Nova Cultural, 1999.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio Sobre a Origem das Línguas, coleção "Os Pensadores", São Paulo: Nova Cultural, 1999.
SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Rousseau: O Bom Selvagem, São Paulo: Humanitas, 2007.