Romance Familiar e Identidade Imunológica
Por Claudio de Almeida Rio | 22/07/2009 | PsicologiaO presente artigo não visa absolutamente à discussão da fisiopatologia de quaisquer doenças aqui mencionadas, o que compete à Reumatologia, no entanto, cabe-nos fazer uma breve explanação ao leitor leigo acerca do funcionamento do Sistema Imunológico humano, assim como das disfunções que desencadeiam as chamadas doenças auto-imunes. O objeto de discussão, neste trabalho, será a possível relação entre transtornos do "romance familiar"¹ e as referidas disfunções imunológicas que deflagram esse quadro patológico, que é atualmente importante causa de incapacidade temporária ou permanente em todo o mundo.
Desde a década de 70, quando o psicólogo Robert Ader e o imunologista Nicholas Conhem realizaram experimentos com imunossupressores em ratos, tornou-se praticamente incontestável a direta relação entre estímulos psíquicos e o Sistema Imunológico. Nessa experiência, os cientistas ministravam via oral sacarina juntamente com uma droga imunossupressora, o que, evidentemente, deprimia a imunidade dos animais, levando-os a desenvolver infecções. Tratadas tais infecções, era ministrada apenas a sacarina e, condicionados ao paladar, seus Sistemas Imunológicos eram novamente deprimidos e eles voltavam a contrair infecções que os levavam à morte. A humanidade estava diante de uma importante comprovação científica da influência psíquica na resposta imunológica.
A ligação entre emoção e imunidade se dá na medida em que o Sistema Límbico, responsável pela interação entre os Sistemas Nervoso, Endócrino e Imunológico, tem como um de seus componentes o hipotálamo, que, num sujeito psiquicamente equilibrado, exerce certa regulação da quantidade e da qualidade dos estímulos que devem chegar ao SNC, além de ser o responsável pela noção de recompensa e punição, o que promove a atividade afetiva no indivíduo.
Sem nos aprofundarmos na fisiologia do estresse, já é possível observar a estreita relação entre emoção e Sistema Imunológico, o que nos permite abordar o tema proposto sob a ótica da Psiconeuroimunologia.
Doenças auto-imunes são aquelas em que o Sistema Imunológico passa a reconhecer tecidos do próprio corpo como agentes hostis, combatendo-os e promovendo sua destruição. Há grande diversidade de doenças dessa natureza, sendo as mais conhecidas a Artrite Reumatóide, a Espondilite Anquilosante, a Doença De Crohn, a Síndrome De Reiter, a Hepatite Auto-Imune, a Esclerose Múltipla, o Lúpus, a Psoríase e o Vitiligo.
Num indivíduo saudável, o organismo, sempre que se depara com um elemento potencialmente estranho à sua estrutura celular, produz citocinas, que são elementos extra-celulares capazes de identificar a potencial ameaça, denominada antígeno, e recrutar os leucócitos necessários à produção de anticorpos específicos para eliminá-la. Essa perfeita harmonia no funcionamento imunológico é fundamental para a preservação da espécie.
As doenças auto-imunes têm etiologia ainda bastante controversa. É consenso que para seu aparecimento é necessário que haja predisposição genética, mas isso ocorre com inúmeras doenças endógenas e não necessariamente o indivíduo que traz o gene de determinada patologia irá desenvolvê-la. O que está em questão é o que chamamos de "gatilho", ou seja, o fator externo que deflagra a doença.
Como mencionamos, existe comprovação científica de que o psiquismo interfere na resposta imunitária do indivíduo, mas deve-se ter especial cuidado ao se estabelecer esse vínculo, uma vez que nem todos os pacientes que trazem história de sofrimento psíquico desenvolvem as mesmas patologias.
No caso específico das doenças auto-imunes, a experiência tem mostrado que elas são recorrentes em grupos de indivíduos com perfis muito parecidos. A interseção entre as histórias desses pacientes leva-nos a identificar o olhar que eles têm sobre si próprios, via de regra instaurado na infância e com expressiva influência do enlaçamento com seus pais.
Assim como o Sistema Imunológico busca identificar e combater os antígenos non-self, distinguindo-os do que é self, nosso psique faz o mesmo, tentando discernir o que nos é próprio do que não é. A clínica tem mostrado que filhos criados sob clima de terror têm extrema dificuldade de se firmarem na condição de sujeito, ou seja, são bastante propensos a terem déficit de identidade. Eles se questionam, muitas vezes, sobre o que são e o que gostariam de ser, conduzindo-se freqüentemente em uma terceira direção, que abandona o estado atual, mas não aponta para o estado almejado. Esses indivíduos vivem uma eterna e insuportável insatisfação com seu próprio ser, reconhecendo-se como alheios a si mesmos, numa condição similar ao antígeno non-self, que deve ser destruído.
Outra questão a ser observada é o quanto desejado o indivíduo era por ocasião de seu nascimento. É freqüente pacientes com as patologias aqui abordadas relatarem que são nascidos de gravidezes não planejadas, sendo que alguns relatam, ainda, que houve tentativa de aborto por parte de suas mães. Fazemos novamente um paralelo entre o self e o non-self, no que diz respeito ao enlaçamento familiar. Um filho não desejado no seio de uma família é como um antígeno a ser combatido e, se o indivíduo tem esse olhar em relação a si próprio, urge que ele faça sua fagocitose particular, destruindo, assim, seus próprios tecidos.
Uma outra questão que convém ressaltar é o significado biológico da procriação introjetado pelo indivíduo, em que nascer significa dar continuidade celular a quem o gerou. No caso desses pacientes, quem o gerou representa potencial ameaça à sua própria vida e, no campo do inconsciente, dar continuidade a essa linhagem é algo bastante indesejável, fazendo-se mister novamente o combate aos tecidos que representam tal estirpe.
De um modo ou de outro, observa-se que a confusão mental decorrente de um enlaçamento familiar conturbado, em que a condição psíquica do indivíduo é de quem não tem lugar definido no ninho, pode levá-lo ao auto-reconhecimento como dejeto, que deve ser combatido, o que, segundo nossa linha de raciocínio, pode levá-lo a um processo de auto-destruição.
1. "romance familiar" é a expressão criada por Freud para designar fantasmas pelos quais o indivíduo modifica imaginariamente os seus laços com os pais.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Elisabete. Doenças reumáticas- avaliação e diagnóstico. Disponível em: http://www.drashirleydecampos.com.br/noticias/17277. Acessado em 15/07/2009.
FREUD, Sigmund. Romances Familiares (1909), In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume IX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980.
GUYTON, Artur C. & Hall, John E. Tratado de Fisiologia Médica. 10º Edição. Rio de Janeiro: Elsevier Medicina, 2002
Kelner, Gilda. Doenças Auto-imunes, Identidade e Certeza de si. Círculo Brasileiro de Psicanálise. Disponível em: http://www.cbp.org.br/artigo16.htm. Acessado em 15/07/2009.