Ritinha ainda consegue repousar
Por Osorio de Vasconcellos | 07/08/2013 | CrônicasResumo: Nas férias, como nos quartos de dormir, o código draconiano da dominação consumista.
Ritinha ainda consegue repousar
Fim de férias. De volta às aulas, a clássica interpelação: conte para nós o que você fez nestas férias.
- Ah! Fomos conhecer a Disneylândia.
- Ah! Fizemos um tour pela Europa.
- Ah! Estivemos filmando baleias em alto mar.
Morrerá de vergonha diante da classe a criatura que não tiver uma boa história para contar.
- E você, Ritinha, o que fez nestas férias?
Ritinha, uma gentil adolescente de doze anos, responde:
- Nestas férias? Bem, nós, quero dizer, a gente acabou ficando em casa...
O constrangimento decorre do remorso de haver incorrido em falta grave, capitulada no código draconiano dos preceitos consumistas.
Tempo houve em que estar de férias significava simplesmente subtrair ao período letivo o cerceamento da disciplina escolar. Feito isto, a vida prosseguia ao sabor das diretrizes naturais. Comia-se na hora de comer, dormia-se na hora de dormir, amava-se na hora de amar. O que a meninada fazia durante o interregno não interessava a ninguém.
Há cinquenta anos, Ritinha não teria amargado nenhum desconforto por ter permanecido em casa durante as férias.
O remorso começou a aparecer quando o lapso vacante - aquela porção romântica da liberdade individual - sofreu o mapeamento consumista e foi incorporada aos domínios da virtualidade, sob o rigoroso controle da mídia.
Hoje, cabe perguntar, Ritinha é livre para fazer o que bem entende durante as férias? De jeito nenhum.
Pode até fazer, mas pagará caro pela insubordinação.
Hoje a imagem das férias está visceralmente ligada a um deslocamento.
A virtualidade considera inabitável durante as férias o lugar onde a pessoa mora.
Em casa, não importa quão aprazível seja, o consumo cai a níveis perigosos. Sem vacilar, o sistema expulsa o morador dali, introduzindo fumaça pela chaminé da lareira. Dito de outro modo, o sistema convence o morador de que naqueles dias só fica em casa quem já morreu, ou prefere agonizar miseravelmente em profunda depressão.
Quando a família já não é família, mas um acidente de percurso, um apanhado típico da mentalidade pós-moderna, cujo lema reza “cada um por si e salve-me quem puder”, o sistema deita e rola. Numa correria desenfreada, num clima de contagiante euforia, a debandada é geral. Ninguém fica em casa, cada um toma o seu rumo. O último a sair, quando lembra, apaga a luz.
No extremo oposto, isto é, nos escassos redutos onde famílias improváveis praticam a meditação, ou rezam juntas, o sistema, por motivos óbvios, fracassa. Nem chega perto.
Dramática, no entanto, dá mostras de ser a situação nos ambientes onde a sociedade de consumo ainda não concluiu sua obra aliciadora, a qual culmina com o esfacelamento da personalidade, se Luc Ferry me empresta este modo de dizer.
A luta da família contra o feroz assédio do invasor pode ser acompanhada através de índices banais como, por exemplo:
- número de TVs instaladas / número de moradores;
- tempo que as TVs permanecem ligadas / dia;
E o índice assustador da esquizofrenia televisiva, a qual se manifesta nos quartos de dormir, onde uma cama convida ao sono e ao repouso, e um aparelho de TV reivindica o oposto, ou seja, a vigília e a agitação.
Durma-se com um barulho desses...
No quarto de Ritinha, a nossa gentil adolescente, já puseram um aparelho de TV, que ela liga quando se cansa do tablet, do smartphone, e outras maravilhas da tecnologia moderna. Nada obstante, porque ainda não foi totalmente corrompida, ela consegue dormir e repousar sem grandes conflitos.
Mas, até quando?