Ricardo Kotscho, O Buldogue De Lula

Por Félix Maier | 07/03/2007 | Política

O livro de Ricardo Kotscho, Do golpe ao Planalto (), é uma autobiografia do jornalista que na maior parte de sua vida teve como missão grudar em Lula um trabalho imposto por Mino Carta. Kotscho participou de todas as campanhas presidenciais de Lula, exceto a de 1998, e foi o secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República nos dois primeiros anos de governo do petista (2003 e 2004), e esperava-se que o livro traria algumas novidades sobre Lula. Nesse sentido, foi uma decepção. Parece até que todos fizeram um pacto de silêncio, de Waldomiro Diniz a Carlinhos Cachoeira, de Delúbio Soares aos mensaleiros, dos sanguessugas a Ricardo Kotscho.

Kotscho, ao longo de sua obra, mostra ser um bom sujeito, muito bem-humorado e equilibrado nas análises que faz da política brasileira. Não se utiliza de palavras de ordem tão comuns entre autores de esquerda, os quais, ao invés de discorrer com objetividade sobre a recente história brasileira, preferem dar seus pitacos, repetindo mentiras e meias-verdades por meio de jargões já rotos na Europa do Leste, porém ainda muito atuais nessa terra que reverencia múmias ideológicas como Fidel Castro e Hugo Chávez. Kotscho nunca se filiou a nenhum partido, por isso guarda uma boa distância das tendências políticas em voga nesta Terra dos Papagaios. Porém, quando se trata de defender os amigos, o faz com vigor, mesmo tendo pertencido a movimentos clandestinos e terroristas, como Frei Betto e o jornalista Flávio Tavares.

Por estar tanto tempo grudado em Lula, era de se esperar um pouco mais de Kotscho, o buldogue de Lula.

Abaixo, alguns dos trechos mais importantes do livro.

Kotscho no Estadão: a nomenklatura tupiniquim

Com seu jeito manso de falar, Fernando Pedreira, o diretor de redação, assim como quem não quer nada, me passou um recorte de jornal. Era uma extensa reportagem do correspondente do New York Times em Moscou sobre a boa vida e os privilégios dos superfuncionários do governo comunista na hoje extinta União Soviética. Aqui no Brasil está acontecendo a mesma coisa, os mesmos abusos, talvez até pior. Levanta isso pra mim, não tem pressa.

(...) A tese de Fernando Predeira era que se criara no Brasil, a exemplo do que ocorria na União Soviética, uma casta formada por tecnocratas e militares que, graças à censura imposta aos meios de comunicação, montaram um esquema de poder paralelo fora de todo controle. Em suas viagens ao Rio e a Brasília, o diretor de redação ouvira de alguns amigos histórias de gastos absurdos, as quais podiam servir de ponto de partida para o levantamento da matéria. O problema era que as fontes como são chamadas no jargão jornalístico as pessoas que se dispõem a dar informações aos repórteres só admitiam falar em off absoluto ou seja, seus nomes não podiam jamais aparecer.

(...) Nessas conversas, eu não podia nem falar sobre os verdadeiros objetivos da matéria. Estou preparando uma reportagem de comportamento sobre a vida em Brasília, os hábitos das pessoas..., era o argumento que usava. Foi um senador da oposição, Roberto Saturnino Braga, do MDB, quem me deu a primeira pista: Você tem que começar a ler o Diário Oficial. Está tudo lá. É só procurar o que sai publicado sob a rubrica mordomias.

De fato, a certeza da impunidade chegara a tal ponto que as longas listas de comes e bebes para residências oficiais, compras de flores e de peças de decoração, aluguel de carros e de jatinhos executivos, reformas em mansões e requisição de passagens aéreas, uso indiscriminado de cartões de crédito, distribuição de dividendos em empresas estatais deficitárias, salários astronômicos tudo era publicado na imprensa oficial. Uma ou outra informação já vazara para a imprensa. Mas, como os jornalistas não tinham o hábito de ler o Diário Oficial e ainda estavam condicionados pelos anos de censura a não ir atrás de denúncias contra o governo militar, as mordomias continuavam sendo um assunto do conhecimento de poucos.
(...) Lá para o fim de junho de 1976, entreguei a encomenda ao diretor de redação, certo de que ele se entusiasmaria com o que fora apurado e daria a ordem para iniciar a publicação no dia seguinte. Pedreira, porém, nem chegou a ler todas as matérias. Após uma rápida olhada naquela maçaroca de laudas, pensou um pouco, coçou os cabelos brancos e decidiu consultar Julio de Mesquita Neto, o dono do jornal responsável pela parte editorial. Acho melhor a gente tratar este assunto com muito cuidado. O Congresso Nacional vai entrar em recesso de julho, talvez seja melhor esperar a reabertura em agosto. Vai dar mais repercussão. (...) Só me lembro do susto que levei ao voltar de Martim de Sá, em Caraguatatuba, no domingo 1º de agosto e, na banca, dar de cara com a manchete do Estadão: Assim vivem os superfuncionários. Claro que fiquei contente, até orgulhoso, mas ao mesmo tempo me deu um frio na barriga. Tratava-se, afinal, da primeira reportagem de denúncia sobre abusos e desmandos cometidos por integrantes do governo dos generais implantado doze anos antes.

A pressão dos militares sobre a direção do jornal foi dura e imediata. Julio de Mesquita Neto seria convocado pelo presidente Ernesto Geisel para se explicar em Brasília. (...) A oposição encontrou farta munição para partir para o ataque. Se houvesse responsabilidade, o mínimo que se pode dizer é que o escândalo das mordomias já teria posto abaixo o governo, disparou o senador gaúcho Paulo Brossard, um dos líderes do MDB. Em nenhum país do mundo civilizado tal fato teria acontecido sem a imediata substituição do governo. Apesar do barulho provocado pelas matérias, a conseqüência prática das denúncias foi nula. Ninguém foi punido, ninguém perdeu seus privilégios, e as mordomias passaram a fazer parte do nosso vocabulário político, atravessando décadas, indo alegremente dos governos militares para os civis e sobrevivendo a qualquer tentativa de acabar com a impunidade dos donos do poder (Ricardo Kotscho, in Do Golpe ao Planalto, pg. 9, 10, 11, 12 e 13).

Obs.: Ou seja, tudo continua como dantes no terreiro dos xavantes (F.M.).

Kotscho na Alemanha

Quando comecei a pensar no que fazer da vida, o acaso resolveu as coisas por mim. Selma Santa Cruz, ex-colega da Escola de Comunicações da USP e depois colega de trabalho, me avisou que uma amiga dela, Dorrit, a quem eu não conhecia, queria falar comigo: Ela vai te fazer um convite, e você tem que aceitar!

Chefe dos correspondentes internacionais do Jornal do Brasil, Dorrit Harazim, nascida na Iugoslávia e importada de Paris por Mino Carta para ajuda-lo a implantar a revista Veja, estava procurando um repórter que falasse alemão para ser correspondente na antiga Alemanha Ocidental. Profissional das mais respeitadas pela sua dedicação e acuidade no trabalho, tinha fama de ser uma chefe severa, apesar da aparência frágil. Mas não foi essa a impressão que tive na nossa primeira conversa, no café do hotel Eldorado, na avenida São Luís, pertinho do Estadão. Para ajudar a me convencer de que aquela era uma boa oportunidade, como se fosse preciso, Dorrit levou com ela um amigo, o jornalista José Roberto Guzzo, diretor da Veja, que também já havia trabalhado como correspondente no exterior.

Nem pensei duas vezes, Era ao mesmo tempo a chance de voltar à Europa dos meus antepassados e de escapar do clima pesado que ainda dominava o Brasil no longo período de agonia da ditadura militar. Vários amigos tinham sido demitidos, pediram para se afastar ou foram afastados dos cargos de chefia no jornal, no auge de um grave conflito entre a redação e a nova ordem instalada no Estadão, após a saída da Censura e a crise financeira provocada pelos gastos com a mudança da sede da empresa para a Marginal do Tietê. Entre esses amigos estava Clóvis Rossi, meu primeiro chefe no jornal, um profissional fora dos padrões convencionais, a começar pela altura. (...)

Chegamos a Bonn bem no meio do tiroteio do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, bombardeado pelos Estados Unidos, e no auge dos atos terroristas do grupo Baader-Meinhof, que tinha acabado de seqüestrar uma avião da Lufthansa. Mal deu tempo de deixar as malas no hotel, e já havia uma pauta da Dorrit me esperando (idem, pg. 13 e 14).

A construção de Lula

Do outro lado da linha estava Mino Carta, diretor da grande novidade da imprensa na época, a Istoé, onde já trabalhavam Clóvis Rossi e Raul Bastos, além de outros ex-colegas do Estadão: Meu caro, as coisas estão acontecendo por aqui, não na Europa... Você não viu a revista que te mandamos? Pois então, volta logo para o Brasil e venha trabalhar com a gente.

Não era propriamente um argumento ou um convite gentil. Italiano de nascença e de temperamento, Mino, que veio bem jovem para o Brasil, nunca foi de admitir muita contestação ao que pensa. Nem era o caso. Na verdade, eu estava louco de vontade de voltar, de trabalhar novamente numa redação cercado de amigos. Na viagem de volta, depois de ainda ter de ir a Roma para cobrir a morte de outro Papa demorou uma eternidade para sair a fumaça branca indicando a eleição de João Paulo II, sucessor de João Paulo I, que 51 dias antes assumira o trono de Paulo VI -, mais uma vez eu não tinha a menor idéia do que me esperava. Nem podia imaginar que a missão a mim reservada por Mino Carta na revista iria determinar meus caminhos pelo resto da vida. A ordem que ele me deu foi simples e direta: Você vai para o ABC e gruda no Lula. Quero matéria toda semana (idem, pg. 15).

Um certo Zé Dirceu

O bom de jornal é que não dá nem tempo de sentir tristeza quando algo não dá certo. Logo o pau começou a quebrar nos confrontos entre a polícia e os estudantes, cada vez mais mobilizados contra a ditadura. Na rua Maria Antônia, entre a Consolação e a avenida Higienópolis, ficavam frente a frente a Faculdade de Filosofia da USP, reduto da esquerda liderado por um certo Zé Dirceu (José Dirceu de Oliveira e Silva, presidente da UEE), e a Universidade Mackenzie, quartel-general do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas. Estabeleceu-se ali um permanente campo de guerra, com a polícia no meio (idem, pg. 44).

Mataram o Vlado!

A notícia correu como rastilho de pólvora naquele começo de tarde de 25 de outubro de 1975, um sábado. Eu tinha acabado de chegar da chácara de Cotia. Vlado era Vladimir Herzog, jornalista da minha idade, fisicamente muito parecido comigo e com uma origem familiar semelhante, diretor de jornalismo da TV Cultura, uma emissora estatal de São Paulo. Poucas semanas antes, Vlado me convidara para trabalhar com ele, mas tive que viajar a serviço do jornal, e ficamos de nos falar depois. Não deu tempo. Ele vinha sendo atacado havia semanas por um certo Cláudio Marques em sua coluna no Shopping News, semanário que circulava gratuitamente aos domingos. Marques o denunciava como o chefe de uma célula comunista implantada na emissora.

Vários outros jornalistas estavam sendo presos naqueles dias, todos acusados de pertencer ao Partidão (como era chamado o Partido Comunista Brasileiro). Tratava-se de um desafio da linha dura do regime militar à proposta de abertura lenta, gradual e segura do presidente Ernesto Geisel. Em São Paulo, o governador Paulo Egydio apoiava a política de Geisel, mas o comandante do então II Exército, general Ednardo dÁvila Mello, a boicotava, e dava toda a força ao DOI-CODI, a sinistra sigla da repressão fora de controle (idem, pg. 52).

Obs.: Sabe-se que o Caso Riocentro foi um acidente de trabalho, em que um sargento morreu ao manusear um explosivo, ocasionando ferimentos graves em um capitão que o acompanhava no Puma. Apesar de todas as evidências fotográficas mostradas pelo Jornal do Brasil na época, o governo Figueiredo permitiu que um coronel apresentasse uma farsa sob o nome de IPM (Cfr. http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=7969&cat=Artigos). Com referência ao Caso Herzog, tenho algumas dúvidas até hoje, não sei se dá para acreditar nestas esquerdas que escreveram tantas mentiras nas últimas décadas. Afinal, segundo Lênin, dizer a verdade é um conceito pequeno-burguês. No site do Ternuma (http://www.ternuma.com.br/herzog.htm), lê-se:

Senhor Daniel Freixeiro Sampaio

A respeito do caso Herzog, transcrevemos abaixo o publicado por Raymundo Negrão Torres, em livro de sua autoria, intitulado "1964 uma revolução perdida":

Outro caso emblemático é o da morte no DOI de São Paulo do jornalista Vladimir Herzog, largamente explorado pela esquerda e focalizado pelo ex-presidente Geisel em seu depoimento histórico há pouco publicado. Profundamente irritado com a ocorrência e levado pela grita levantada, o ex-presidente foi à São Paulo e, não só determinou a abertura de um IPM, como escolheu o seu encarregado, um general de sua absoluta confiança - Fernando Cerqueira Lima -, já falecido. O inquérito feito com o maior rigor, com laudos e perícias de toda a ordem concluiu que por negligência da vigilância, o preso conseguira suicidar-se. O IPM foi dissecado em todos os seus detalhes na Justiça Militar e sua conclusão referendada, exceto na exploração ideológica do cadáver que o próprio Geisel sintetizou, ao dizer: agora a esquerda tem um herói! Um apagado e desimportante membro de uma célula do PCB na Revista Visão que de próprio punho, delatara seus companheiros e ia ser posto em liberdade; ao sabe-lo entrou em crise de consciência e matou-se. Esse o fato, comprovado em um IPM feito por um homem íntegro, mas cujas conclusões irretorquíveis foram obscurecidas pelas versões dos interessados em explorar o novo e inesperado herói. E se as versões contrariam os fatos, pior para os fatos, ja sentenciava Nelson Rodrigues...

atenciosamente,
Ternuma Regional Brasília

Morte do operário Fiel Filho

Ricardinho, vê o que voce consegue levantar sobre isso... Rossi só me deu o nome do operário e o endereço da fábrica onde ele trabalhava. Na fábrica, ninguém queria falar. Com muito custo, consegui o endereço de Fiel filho: rua Coronel Rodrigues, 155, Sapopemba. (...) Rossi, consegui a história completa. Mataram o operário do mesmo jeito que fizeram com o Vlado e tentaram esconder a morte dele (...) Apesar de todo o meu medo, eu não tinha alternativa. A matéria foi publicada na íntegra, sob o título Manoel, da fábrica da Mooca à morte, no alto da página 16 do primeiro caderno, na edição de 21 de janeiro de 1976. No dia seguinte, caía Ednardo dÁvila Mello, o comandante do então II Exército. Geisel cumpriu o que prometera: se houvesse um novo caso Herzog nos porões da repressão, demitiria o comandante. Fiel Filho, cuja única atividade subversiva era distribuir o jornal Voz Operária, do então clandestino Partido Comunista Brasileiro, decerto foi morto por engano um acidente de trabalho, como se dizia cinicamente naqueles anos mais tardes chamados de chumbo (idem, pg. 57)

Terrorismo no ar

O chanceler Helmut Schmidt ainda recebia cumprimentos pelo êxito da operação na Somália, em que o comando GSG-9 (Grupo Especial de Polícia de Fronteira, corpo de voluntários criado em 1972, quando teve início o movimento terrorista na Alemanha) libertou os 86 passageiros de um avião da Lufthansa, seqüestrado há seis dias, quando foi chamado a um canto para receber a informação de que três terroristas haviam sido encontrados mortos na prisão de Stuttgart e um quarto estava gravemente ferido.

Eram 9h30 e começava mais um dia de medo e tensão em Bonn. O júbilo dos jornais e das rádios pela libertação dos reféns, logo foi substituído pelo temor de que essa ação provocasse o assassinato do empresário Hanns-Martin Schleyer, presidente da Federação das Indústrias Alemãs, seqüestrado há mais de um mês .... A comida, o vinho, a cerveja e a champanha postos à disposição dos passageiros e tripulantes do Boeing seqüestrado para a festa de reencontro com seus familiares ontem em Frankfurt não foram tocados. No rosto da maioria dos ex-reféns ainda dominava a expressão de apatia e esgotamento.

Uma enorme multidão os saudou quando começaram a descer do avião que foi busca-los em Mogadíscio e só não trouxe os seis passageiros que ficaram feridos na operação-resgate. Além de quatro ministros do governo, mais de mil jornalistas os aguardavam num desembarque transmitido ao vivo para toda a Alemanha pela televisão (idem, pg. 67).

Geisel na Alemanha

Houve alguns pequenos protestos contra sua visita, organizados por agrupamentos de esquerda que denunciavam a ditadura militar, mas a lembrança que ficou foi a alegria de Mariana, que por acaso passeava com a mãe numa rua próxima à prefeitura quando a comitiva de Geisel passou por lá: Olha, mãe, o presidente do Braisl me reconheceu, acenou para mim... (Pg. 76). Obs.: Mariana é filha de Ricardo Kotscho e Mara (F.M.).

Paulo Francis x William Waack

Durante um jantar em casa, saiu a maior discussão entre William Waack e Paulo Francis, que trabalhava para a Folha de S. Paulo, em Nova York, por causa de um livro de Karl Marx. O fecho do diálogo entre eles foi engraçado:

- Qual tradução você leu, Francis?

- O problema é este: eu li no original... (pg. 76)

Vovós contrabandistas

Ah, a televisão. As mulheres lembram da época em que a polícia da Alemanha Oriental quebrava todas as antenas que estavam voltadas para o lado ocidental. Depois, para impedir que se sintonizasse a televisão colorida da Alemanha Ocidental, implantaram o sistema francês, que exigia um transformador, cuja importação era proibida. Proliferaram então as vovós contrabandistas. Elas contam:

- As vovós (do lado oriental) nunca viajaram tanto como agora. É que com elas o controle da alfândega é menos rigoroso. Minha sogra era uma artista. Ficava tremendo o tempo todo, tinha ataques, a polícia só faltava carregar as malas para ela, não revistavam nada... (idem, pg. 77).

Flávio Tavares: um guerrilheiro genial!

Seu Flávio, o senhor é um gênio!, comemorou o operador de telex improvisado no centro de imprensa junto ao gabinete do primeiro-ministro. O titular estava de férias, e Flávio era meu velho amigo, Flávio Tavares, correspondente do Estadão e exilado político, que fora obrigado a procurar o próprio Mário Soares em meio à crise para que se providenciasse um teletipista. O problema era que este colocava a fita amarela do telex ao contrário, e foi só depois da sugestão de Flávio para que ele a invertesse que as coisas começaram a funcionar (idem, pg. 78).

Obs.: Faltou Kotscho dizer mais sobre o guerrilheiro genial. 1. O Movimento de Ação Revolucionária (MAR) tinha ligações com o jornalista Flávio Tavares, da Última Hora, que respondia em liberdade ao processo sobre a frustrada guerrilha do Triângulo Mineiro, de inspiração brizolista. O objetivo do MAR era a fuga dos militantes da prisão e a busca de um local para implantar um foco guerrilheiro; para isso, o grupo externo promoveu assaltos para obter recursos necessários para aliciar guardas, adquirir armamentos e introduzi-los no presídio. Durante a ação de fuga, foram feridos 3 pessoas: os guardas Aílton de Oliveira (que morreu dias depois) e Jorge Félix Barbosa, e João Dias Pereira, funcionário da Light, que ficou paraplégico. Após a fuga, o grupo dirigiu-se a Angra dos Reis, RJ, e instalaram na mata um barraco, a Cabana do jacu, onde iniciaram treinamentos de guerrilha. Com as declarações de um prisioneiro à Polícia, a Marinha cercou a área com tropas de Fuzileiros Navais. Um dos guerrilheiros, ferido na perna, foi preso e os demais fugiram, incorporando-se uns ao PCBR, outros fugindo para Cuba ou pedindo asilo político no Uruguai. Veja Foquismo e OLAS. 2. Movimento Armado Revolucionário (MAR): o professor de História da USP, Wilson Nascimento Barbosa, militante do MAR (e também da POLOP e da VPR), era assaltante de bancos e foi um dos banidos para Santiago, Chile, em troca da vida do Embaixador da Suíça, que havia sido seqüestrado em 07 Dez 1970 (Verbete extraído de Arquivos I, de Félix Maier, publicado em www.usinadeletras.com.br).

Lula e os intelectuais babaquaras

Não poderia haver nada melhor do que voltar ao Brasil com emprego garantido, ainda mais numa redação comandada por Mino Carta, na qual trabalhavam meus amigos. Raul Bastos, que retornara de seu exílio na Bahia depois de uma sofrida negociação para sair do Estadão, onde tinha estabilidade mas era infeliz, numa das suas cartas já havia me alertado sobre o novo personagem que despontava no renascido movimento sindical do ABC paulista: O Lula, esse do sindicado dos metalúrgicos, o primeiro sujeito que está falando as coisas como devem ser faladas, disse que o MDB é a mesma porcaria e que são porcarias também os políticos e esses babaquaras intelectuais que ficam falando coisas esotéricas.

(...) Quando me dei conta, já tinha voltado à rotina de repórter, e minha missão, já mencionada na introdução deste livro, era grudar no Lula para contar tudo o que estava acontecendo na chamada República do ABC, o grande centro de resistência à ditadura militar. A partir dali, profetizava Mino Carta, o Brasil começaria a mudar (idem, pg. 82-83).

Sociedade civil

Naquele final de 1978 estava brotando o que mais tarde viria a se chamar de sociedade civil o conjunto de pessoas e entidades que se organizaram em diferentes movimentos com o objetivo comum de lutar pela redemocratização do país, no momento em que a ditadura militar dava os primeiros sinais de fadiga. A região do ABC, conflagrada pelas greves dos metalúrgicos comandados por Lula, quando ele ainda não havia incorporado o apelido ao nome, era o epicentro dessa luta. Os movimentos contra a carestia, pela volta dos exilados, pela Constituinte, pelo estado de direito, reuniam desde a Igreja Católica, em especial sua ala progressista, até setores da esquerda que tinham abandonado a luta armada, além de entidades como a OAB e a ABI (idem, pg. 86).

Obs.: Faltou Kotscho discorrer sobre o famigerado Governo Paralelo do PT e a Interpol do PT, na verdade um golpe branco que ajudou a derrubar o presidente Fernando Collor de Mello: PTpol - Trocadilho de Interpol e polícia do PT, criado pelo Senador Esperidião Amin durante a CPI dos Anões do Congresso, em 1993. Amin estranhava a desenvoltura com que José Dirceu, deputado petista, apresentava documentos que só um espião poderia fazer. Aliás, José Dirceu, antigo presidente do PT, é especialista em Informações, Contra-informação, Estratégia e Segurança Militar, com treinamento em Cuba, e fez parte do MOLIPO, grupo terrorista criado pelo Serviço Secreto cubano do famigerado Manuel Piñero, vulgo Barbarossa (in Arquivos I, de Félix Maier, publicado em www.usinadeletras.com.br).

Garrincha x Bunda Baixa

PIRAPOZINHO, 26 URGENTE - Apareceu aqui hoje, nas barrancas do Paranpanema, um cidadão de nome Manoel Francisco dos Santos, dizendo-se Mané Garrincha. A notícia de sua presença colocou em polvorosa esta pequena cidade de 30 mil habitantes. Mas ele não está doente no Rio?, perguntavam as pessoas. Hospedou-se na pensão do Morais, junto com a equipe do Milionários FC. Ganhou buquês de flores, placa de prata e beijos de moças bonitas, no Estádio Municipal. O juiz apita, Garrincha com a bola. O lateral esquerdo Antonio Carlos, 25 anos, o Bunda Baixa, vai em cima dele. Garrincha faz que vai, mas não vai, a torcida dá risada. Era ele mesmo, Mane Garrincha em pessoa, não havia mais dúvidas. Viajou 1100 quilômetros, oito horas de meia de ônibus, para jogar 45 minutos e ganhar 6 mil cruzeiros de cachê. Saiu de campo suado, sujo e feliz (idem, pg. 90).

Brizola novamente com o pé no estribo

Os cabelos ficaram ralos e encanecidos, abertos em leque na nuca. Ele lembra um maestro em férias. O Brizola que entra correndo na suíte e vai direto atender o telefone, falando com todo mundo ao mesmo tempo, parece muito mais moço do que aquele homem amargurado que encontrei em março do ano passado em Hamburgo, durante uma reunião da Internacional Socialista. A certeza da volta iminente remoçou Brizola, que anda lépido de um lado para outro, dá ordens aos assessores, atende telefonemas, tudo como nos bons tempos do poder. ...

Na confortável suíte 729 do Hotel Roosevelt, o dia começou bem cedo. Brizola tinha ido dormir às três da manhã, depois de trabalhar seis horas seguidas nos discursos que pronunciará em São Borja, Porto Alegre e por onde passar na sua volta ao Brasil. E, às seis e meia, já tocava o telefone: era um jornalista de Porto Alegre, querendo saber como estavam os preparativos para a viagem: Já estou com o pé no estribo, respondeu Brizola, frase que repetiria durante o resto do dia (idem, pg. 91).

Um certo Boris Casoy

Comuniquei as novidades à mulher, pensei que estava tudo resolvido, mas não foi bem assim. Ao me apresentar a Boris Casoy, então editor-chefe do jornal um jornalista algo conservador, digamos, mas muito bem-humorado -, notei logo que as indicações feitas por Abramo à Folha, entre elas a de Clóvis Rossi, não o haviam agradado muito. Boris sabia da minha ligação com Lula e com outros líderes da oposição e, sem disfarces, explicou-me as razões do convite: Nós temos pensamentos bem diferentes sobre as coisas. Vou te contratar só porque precisamos de gente no jornal que saiba escrever, e você sabe (idem, pg. 95).

O Bispo dos Pobres ou Bispo Vermelho?

De Foz do Iguaçu, passando por São Paulo só para escrever a reportagem, fomos para o Nordeste. O objetivo era mostrar os preparativos para a visita que o papa João Paulo II faria a treze cidades brasileiras em onze dias. No Recife, muito atarefado em deixar tudo em ordem para a chegada do papa, d. Helder Câmara não dava conta de atender aos jornalistas do mundo todo que o procuravam. O Bispo dos Pobres, como era conhecido, pediu-me, então, que deixasse algumas perguntas, às quais ele responderia por escrito quando pudesse. Guardei o manuscrito em que d. Helder resumia numa frase o que pensava e o que o movia em seu trabalho: Eu disse aos franceses que, infelizmente, favela existe, hoje, na periferia de todas as grandes cidades. E lembrei a razão: estamos em um sistema que fabrica a miséria, na hora mesma em que fabrica riqueza (idem, pg. 97).

Obs.: Nelson Rodrigues também tinha uma interessante opinião sobre o Bispo dos Pobres: D. Helder só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva.

D. Helder já esqueceu tanto a letra do Hino Nacional quanto a da Ave-Maria. Prega a luta armada, a aliança do marxismo e do cristianismo. Se ele pegasse uma carabina e fosse para o mato, ou para o terreno baldio, dando tiros em todas as direções, como um Tom Mix, estaria arriscando a pele, assumindo uma responsabilidade trágica e eu não diria nada. Mas não faz isso e se protege com a batina. Sabe que um D. Helder sem batina, um D. Helder almofadinha, de paletó ou de terno da Ducal, não resistiria um segundo. Nem um cachorro vira-lata o seguiria. Estou imaginando se, um dia, Jesus baixasse à Terra. Vejo Cristo caminhando pela rua do Ouvidor. De passagem, põe uma moeda no pires de um ceguinho. Finalmente, na esquina a Avenida, Jesus vê D. Helder. Corre para ele; estende-lhe a mão. D. Helder responde: "Não tenho trocado!". E passa adiante (Frases retiradas da coletânea de Ruy Castro "As 1.000 melhores frases de Nelson Rodrigues" Companhia das Letras, 1997).

Lua preta

Poucas semanas antes da eleição, a direção do jornal me autorizou a escrever um artigo na primeira pessoa, que começava na primeira página, sob o título Meus caros leitores, em que descrevia as dificuldades do trabalho:

- Quer dizer, então, que você agora passou para o PMDB. Só escreve sobre o Montoro?

- Como é que a Folha manda um petista para cobrir o Montoro?

Essas duas perguntas me foram feitas na semana passada por dois luas pretas, um lulista e outro montorista, e dão bem uma idéia das desventuras de um repórter na cobertura da campanha eleitoral paulista.

Lua preta, como se sabe, é uma expressão que surgiu no Rio de Janeiro para qualificar os assessores do candidato peemedebista Miro Teixeira. Tão sábios eles seriam e, por isso, tão respeitados e ouvidos que, se disserem que a lua é preta, ele acredita.

A pressão sobre os repórteres vai das pequenas ironias à sonegação de informações, da mera mentira da notícia plantada até telefonemas raivosos aos seus superiores, na tentativa de cortar o mal pela raiz, quer dizer, tirá-lo de circulação pela perda do emprego (idem, pg. 108).

Operação Camanducaia

Edmilson Lucas da Silva, um dos menores abandonados na estrada durante a célebre Operação Camanducaia, apaixonou-se pela psicóloga Tova Cohn, na Febem, onde ela trabalhava e ele estava internado. Foram viver juntos e tiveram um filha, Paula. Na tarde de quinta-feira, Edmilson, agora com 25 anos, matou Tova, a tiros, na frente da filha de oito meses, no interior de uma clínica de repouso na Vila Mariana. Em seguida, se matou (idem, pg. 109). Cfr. http://www.bocc.ubi.pt/pag/caleiro-mauricio- folha-sao-paulo-infancia-marginalizada.pdf.

Os Três Mosqueteiros: Ulysses, Lula e Brizola

Os Três Mosqueteiros das Diretas, como eles se tornariam conhecidos, não perdiam um único comício. Tal qual cantores sertanejos, repetiam sempre os mesmos números, quer dizer, faziam sempre os mesmos discursos. Com Lula, Ulysses tinha uma relação de pai para filho, sem nenhum sinal de ciumeira partidária. No vôo de Teresina para São Luís, o presidente do PMDB chegou a brincar com o do PT: Lula, você acha que está certo isso? O PMDB monta o palanque, paga tudo, e você é o mais aplaudido? (idem, pg. 119).

Ainda me recuperava da ressaca das Diretas, quando uma noite dr. Ulysses telefonou para minha casa, também ele inconformado com o que acontecera: Sabe o que eu descobri, Kotscho? Enquanto nós estávamos viajando pelo Brasil defendendo as eleições diretas para presidente, o Tancredo já estava se acertando com os dissidentes do PDS e mesmo com companheiros meus do PMDB para montar sua campanha no Colégio Eleitoral. Gastei meu verbo à toa. Assim é a vida, meu filho (idem, pg. 129).

Brasil: nunca mais

Apesar de o processo de abertura política continuar avançando, ainda havia receio de um retrocesso. Para evitar a possibilidade de que a história se repetisse, d. Paulo Evaristo Arns me convidou antes do final do ano a participar de uma reunião, em sua casa, no Sumaré, que deveria ser mantida em absoluto sigilo. Nela apresentou a um restrito grupo de amigos o projeto Brasil: nunca mais, livro que decidiu produzir juntamente com o pastor Jaime Wright para contar a história completa da repressão política no Brasil durante o regime militar. Tratava-se de uma iniciativa arriscada para o momento que o país vivia, mas era o tipo do convite irrecusável, meus medos à parte.

D. Paulo queria que Frei Betto, Paulo Vanucchi e eu cuidássemos da redação do texto do livro-denúncia com base nas cópias dos documentos encontrados na Justiça Militar, em Brasília, por dois advogados muito ligados ao cardeal (Luiz Eduardo Greenhalgh, de São Paulo, e Eny Moreira, do Rio); receberíamos um pró-labore pelo trabalho. Nosso maior desafio não foi resumir toneladas de documentos oficiais, mas fazer isso durante vários meses sem ninguém saber, nem a própria família, por razões de segurança.

Essa foi minha primeira e única experiência com a clandestinidade. Começamos a trabalhar numa saleta da própria Cúria Metropolitana, saleta à qual só d. Paulo tinha acesso; depois, mudaram-nos para os fundos de um seminário no Ipiranga, e assim sucessivamente, para diferentes locais, até que o livro ficasse pronto e fosse publicado, em 1985, pela editora Vozes. Entre o encontro na casa de d. Paulo e o lançamento de Brasil: nunca mais, o cenário nacional sofreria uma mudança radical. É que o povo resolveu sair às ruas, e eu fui atrás (idem, pg. 113).

General Nini

Lá fora, o clima era ao mesmo tempo de festa e de guerra, tendo de um lado Ulysses Guimarães, o Senhor Diretas, e de outro o general-de-divisão Newton Guimarães de Oliveira e Cruz, comandante militar do Planalto e executor plenipotenciário das medidas de emergência determinadas pelo governo. O confronto de desenhava:

Montado num imponente cavalo branco, que ganhou do presidente João Figueiredo, o general Newton Cruz, também chamado de Nini, adentrou o gramado do Setor Militar Urbano, conhecido como Forte Apache, às nove da manhã, dando início ao mais portentoso desfile de tropas de que se tem notícia em Brasília (idem, pg. 126).

Diretas já: Fafá de Belém, com pombinha saindo dos seios famosos

Chegou,enfim, o grande dia. Nas horas que antecederam o início da sessão no gabinete de Ulysses, fiquei recordando passagens dos 40 mil quilômetros percorridos pelo país, de ponta a ponta. Em Maceió ou Aracaju, ninguém lembrava ao certo, a pomba que a cantora Fafá de Belém soltava do meio dos seios famosos estava, como dizer?, com problemas intestinais. Ao perceber o drama, Fafá jogou a bichina em cima do dr. Ulysses (idem, pg. 127).

Obs.: Na época, o slogam Diretas já era chamado também de Dieta já pelos mais bem-humorados, tendo em vista as dimensões avantajadas de Fafá de Belém, a Musa das Diretas (F.M.).

Ainda me recuperava da ressaca das Diretas, quando uma noite dr. Ulysses telefonou para minha casa, também ele inconformado com o que acontecera. Sabe o que eu descobri, Kotscho? Enquanto nós estávamos viajando pelo Brasil defendendo as eleições diretas para presidente, o Tancredo já estava se acertando com os dissidentes do PDS e mesmo com companheiros meus do PMDB para montar sua campanha no Colégio Eleitoral. Gastei meu verbo à toa. Assim é a vida, meu filho (idem, pg. 129).

Boris, vou ser obrigado a virar corrupto!

Você está parecendo o Stroessner, disse-me Boris Casoy após uma dessas eleições, referindo-se ao ditador paraguaio, que costumava vencer com votações quase unânimes. Como representante eleito, juntamente com três ou quatro colegas, eu levava os problemas da redação a Boris e, quando não conseguia resolvê-los com ele, ia direto ao proprietário do jornal. O editor-chefe, obviamente, ficava contrariado e, em conseqüência, não me dava aumento. Durante um almoço, ameacei-o brincando, é claro: Boris, se você não melhorar meu salário, vou ser obrigado a virar corrupto. Ele deu risada.

- Corrupto? Não vai dar certo...

- Por quê?

- Porque os corruptos não confiam em você... Vão achar que é só uma armadilha para denunciá-los depois... Você fez fama de honesto... (idem, pg. 134).

A morte de Tancredo Neves

No Incor, em São Paulo, para onde Tancredo foi transportado, cobri seus prmeiros dias de agonia, que se prolongaram, cirurgia após cirurgia. Certa noite, seu Frias, que não gostava de ser chamado de jornalista mas adorava farejar notícias exclusivas, me deu ordens para viajar a São João Del Rey, em Minas Gerais, onde Tancredo nascera e onde vivia sua família. O quadro dele é irreversível, garantiu e lá fui eu, na certeza de que o desenlace se daria em poucas horas. Ainda quando o presidente eleito estava sendo tratado em Brasília, seu Frias conseguiu a informação de que não se tratava de diverticulite, e sim de um tumor maligno. Fomos todos nós, repórteres, furados pelo dono do jornal.

(...) Quando o porta-voz Antônio Britto leu a nota oficial no início do Fantástico, da TV Globo, e Fafá de Belém cantou o Hino Nacional, os sinos começaram a repicar em São João del Rey. Jorge Araújo e eu, mal acabamos de transmitir o material do domingo, nos pusemos a planejar a cobertura do enterro, que atrairia milhares de pessoas para a histórica e acanhada cidade mineira.

(...) O esquife foi levado por irmãos da Ordem Terceira em seus hábitos negros até a entrada do cemitério e entregue à família. Na frente, trazendo o caixão até a sepultura, vinham o presidente José Sarney e o filho Tancredo Augusto, enquanto a banda do Regimento Tiradentes tocava a marcha fúnebre de Chopin. Os sinos da igreja de São Francisco de Assis, onde o corpo estava sendo velado desde as 11h30, dobraram mais forte (idem, pg. 136 a 138).

O sexo, segundo Frei Betto

Deus, Marx e Libertação foi o título que o editor Zuenir Ventura deu à entrevista na contracapa do Caderno B, espaço onde todo jornalista queria escrever. Marxista e cristão, tudo bem, todo mundo já sabia desse casamento do frade, mas, valendo-me de uma ousadia que nossa amizade permitia, resolvi tocar também num tema considerado tabu quando se fala com um religioso: sexo.

- Você sempre diz que é casado com Deus. Mas tem muita gente que não acredita e jura que Frei Betto é um Casanova cercado de belas mulheres. Você nunca pensou em largar a Igreja para casar? É possível alguém viver sem sexo?

- E bem... Em primeiro lugar, o religioso não vive sem sexo. A sexualidade é não só imanente mas eu diria que é também transparente na vida de cada ser humano. O que é incompatível é pertencer a uma comunidade religiosa e o vínculo matrimonial. Eu escolhi esta pertença e isso de modo algum me torna imune a possibilidades afetivas, como ocorre na vida de qualquer ser humano. Viver sem amor eu não posso e o fato de ser celibatário paradoxalmente me permite muito amar e me sentir amado por muitos (idem, pg. 146).

Obs.: Dissimulado como sempre, o teólogo da libertação mais esconde do que mostra na entrevista. Esperto como sempre, não se sabe se Frei Betto fatura algumas de suas fãs ou não (F.M.).

Socialismo bananeiro

De Cuba, seguimos para a Nicarágua, então dirigida por uma junta dominada pelos sandinistas, após a revolução que derrubara Anastácio Somoza. Um dos integrantes do governo, o jornalista Bayardo Arce, convidou nossa comitiva para uma conversa reservada, a portas bem fechadas, quando nos faria um relato franco da difícil situação enfrentada pelo país às vésperas de uma eleição presidencial que poria em risco a sobrevivência do regime: Somos obrigados a reconhecer que, com o embargo comercial e todas as dificuldades que nos foram impostas pelos Estados Unidos, nosso povo vive hoje ainda pior do que nos tempos de Somoza.

Obs.: Ironicamente, o socialista bananeiro estava reconhecendo que seu país não pode viver bem sem a ajuda americana que tanto desdenham pelo menos da boca para fora (F.M.).

Bastava dar uma volta por Manágua para verificar que ele não estava exagerando. Escombros e lixo espalhados por todo canto; prateleiras vazias nas lojas; o povo, com uma fisionomia triste, andando sem rumo e sem trabalho pelas ruas. Até na casa de hóspedes do governo havia racionamento de água e luz, e a comida era escassa e ruim. No segundo dia, ao caminhar com Lula pela cidade, José Genoino, que na época integrava a ala mais radical do PT, chegou a uma dolorosa constatação: Chefe, precisamos repensar essa coisa de socialismo. Pelo jeito, antes de chegarmos ao socialismo, será preciso criar o capitalismo, para termos o que dividir. Meses depois, Violeta Chamorro, representante da velha oligarquia nicaragüense, derrotava os sandinistas nas urnas.

Nos demais países que visitamos, o quadro também não era muito animador para a esquerda. O jovem presidente do Peru, Alan Garcia, durante um encontro com Lula em seu gabinete, revelou que temia sofrer um atentado e precisava desconfiar até do garçom que lhe servia cafezinho, para não ser vítima de envenenamento. No Chile, Laís, filha do nosso amigo Perseu Abramo, fundador do PT e jornalista de respeito, residia havia alguns anos na capital e se via obrigada a admitir: Com todas as suas atrocidades, a verdade é que a ditadura do Pinochet modernizou a economia do país, e a vida das pessoas melhorou (idem, pg. 157).

MAG, um intelectual de bosta?

À noite, durante um jantar com a direção de uma central sindical num restaurante bem chique cuja especialidade eram frutos do mar, quase que bandejas voaram numa discussão entre Aloizio Mercadante e Osvaldo Bargas, secretário de Relações Internacionais da CUT. Os dois começaram a falar mais alto, chamando a atenção das personalidades que estavam no centro da grande mesa os assessores sentavam-se nas pontas. Bargas, muito bravo, atacava Mercadante: Vocês, intelectuais de merda, não podem falar nada, só sabem se aproveitar do nosso trabalho. Se não fôssemos nós, nem existiria o PT, vocês não seriam nada. Pedi ajuda a Marco Aurélio Garcia para acalmar os contendores, mas foi pior. E você também, Marco Aurélio. Também é outro intelectual de bosta..., disse o sindicalista (idem, pg. 161).

Lula, o rei do esporro

Mas ninguém reparou na nossa aparência de foragidos do deserto quando entramos no auditório lotado para mais um Encontro dos Povos da Floresta, onde Lula foi aclamado como se já tivesse sido eleito.

Quando o candidato discursava, um dirigente do PT veio me solicitar que o avisasse do assassinato de dois trabalhadores rurais. Queria que ele denunciasse o fato, ocorrido naquele dia, no microfone. Sem prática no ofício de assessor, o instinto de repórter foi mais forte: subi no palco e interrompi o discurso de Lula para lhe dar a notícia, anotada num papelucho. Ele não entendeu direito o que se passava, ficou olhando para os nomes dos mortos e perdeu o fio da meada. Depois, com a tradicional delicadeza de peão, me deu um esporro e me pediu que nunca mais agisse daquela meneira (idem, pg. 163).

O monstro Brizula contra o Caçador de Marajás

À primeira vista, poderia parecer fácil combater esse candidato fabricado pela mídia com os mais requintados recursos técnicos e financeiros do marketing político. Bastava mostrar sua verdadeira história, revelar sua face real. Para isso, porém, seria necessário utilizar os mesmos meios de comunicação que estavam completamente embevecidos com o Fenômeno Collor. Os donos do poder tinham por fim encontrado seu candidato para combater os dois até então favoritos o ex-governador Leonel Brizola e Lula, o monstro Brizula, que tanto atemorizava as elites (idem, pg. 164).

O peão continua dando esporro

O candidato acordava a mil por hora: Assim nós não vamos ganhar a eleição. Vocês só querem dormir. Vamos trabalhar, porra!. A agenda começava geralmente com um café-da-manhã já de trabalho, e, em seguida, íamos a alguma porta de fábrica ou ao estúdio da TV Globo local para participar do programa Bom Dia. Eu dava uma rápida olhada nos jornais, que traziam más notícias cada vez que eram divulgados os resultados de uma nova pesquisa. Certa manhã, Lula ficou inconsolável: Não é possível. Quanto mais a gente trabalha, mais viaja, mais gente aparece nos comícios, mais a gente cai nas pesquisas. Para desanuviar o ambiente, brinquei: Desse jeito, vamos terminar com índice negativo no Ibope, vamos ficar devendo (idem, pg. 165).

Fora FMI!

A Perez de Cuéllar, o candidato diria que a questão da dívida externa está intimamente ligada ao futuro da democracia na América Latina.

Logo no primeiro dia de cobertura, o Estadão resumiu o que seria o noticiário sobre a viagem: Em Nova York, Lula ameaça com moratória Lula irrita credores e faz campanha em Nova York:

O candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, trouxe a campanha do partido para os salões de Nova York. Em discurso na Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, prometeu, se eleito, suspender imediatamente o pagamento dos juros da dívida externa. O discurso no luxuoso Waldorf Astoria, no centro de Manhattan, provocou reações acaloradas, como a do banqueiro John Landers, do Manufacturers Hanover, que, ao final do almoço, convidou Lula para uma conversinha na sede do banco. Alguns banqueiros e empresários americanos e brasileiros deixaram a reunião. Mas o salão foi pequeno, faltando cadeiras para grande número de interessados (idem, pg. 166).

O nascimento do messetê, no RS

Partimos cedo de Porto Alegre e cumprimos a programação abaixo, que é uma boa amostra do pique da campanha:

11:30 Saída para Encruzilhada Natalino

12:30 Chegada ao aeroporto de Sarandi

13:00 Chegada na Encruzilhada e ato Inauguração do monumento de dez anos do acampamento que resultou na conquista da terra e no nascimento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)

14:00 Almoço

17:00 Ato público

Volta a São Paulo ao final da tarde

Obs. Limite de saída: 18:30 de Sarandi.

(...) Lá pelas tantas, um homem quase escondido pelo tamanho do chapéu se aproximou do candidato e lascou: Ó Lula, escuta eu aqui. Nós não queremos pedir nada pra você. Não vamos pedir nada para o teu governo também. Nós só queremos que você não atrapalhe, que o governo deixe de atrapalhar o trabalhador (idem, pg. 171)

Chico Buarque pede penico

Quando apareceu o jatinho da Transamérica na campanha, faltando um mês e pouco para o primeiro turno, foi uma festa para nós e para a imprensa. A cada escala, os repórteres perguntavam quanto havia custado a hora de vôo, quem estava pagando e tal. O jatinho não tinha nem banheiro, e parecia de brinquedo perto do Challenger que servia a Collor, com aeromoças e tudo. Num vôo de Maceió para São Paulo que trazia também artistas, Chico Buarque disse que precisava urgentemente que o avião desse uma parada em algum lugar. Como estávamos atrasados, não teve jeito. Isto aqui não é táxi, que é só pedir para parar..., brincou Lula. A saída foi improvisar um penico com uma garrafa de plástico. Ainda bem que a imprensa não está vendo a gente, conformou-se o secretário Espinosa (idem, pg. 172).

Brizola ministro da Fazenda?

Em nome de Brizola, Roberto dÁvila veio me pedir que transmitisse a Lula a única reivindicação do PDT: o Ministério da Fazenda. Perguntei ao amigo quem era o indicado pelo ex-governador. Você não vai acreditar, mas ele mesmo gostaria de ser o ministro. O petista mais cotado para o posto era Aloizio Mercadante, que estava no avião quando contei a Lula sobre o pedido de Brizola. Eu não saberia dizer qual dos dois ficou mais atônito (pg. 176).

Gonzagão: povo sem bolsa-esmola, te esfola

Já em fim de carreira, com problemas financeiros, Gonzagão morava num sítio próximo à cidade, onde tinha um posto de gasolina que estava fecha