RESUMO CRÍTICO DE UM LIVRO DE ZIGMUNT BAUMAN

Por Antônio Márcio Melo | 22/07/2010 | Arte

RESUMO CRÍTICO DO 1º CAPÍTULO DO LIVRO "CONFIANÇA E MEDO NA CIDADE", DE ZIGMUNT BAUMAN
OU: PRECISAMOS MESMO PENSAR O URBANO, NESSA "MODERNIDADE LÍQUIDA"

"O tempo passaria, antigos impérios cairiam e novos ocupariam seus lugares. As relações de classe tinham de mudar antes que eu descobrisse que não é a qualidade e a utilidade dos bens que importam, mas o movimento, não o que você é ou o que tem, mas de onde você vem, para onde vai e em que ritmo está chegando lá."
(C.L.R. James, in Beyond a boundary, 1984)

1. TRANSITORIEDADE E INDIVIDUALISMO

O autor começa esse primeiro capítulo do livro falando sobre a tendência que os cidadãos europeus vêm tendo em sentir medo, mesmo com todos os aparatos que têm à sua disposição em termos de segurança, nessa pós-modernidade líquida em que vivemos. E vou além. Esse medo é generalizado, está presente em todas as grandes cidades, de todos os continentes do planeta. Um exemplo claro desse medo é facilmente observado numa cidade como São Paulo. Mas por que essa tendência estranha que os cidadãos do mundo desenvolvido vêm tendo em sentir medo? O autor traz algumas suposições: "se nossas relações ainda não são aquelas que gostaríamos de desenvolver; se as regras não são exatamente como deveriam e, a nosso ver, poderiam ser; tendemos a imaginar maquinações hostis, complôs, conspirações de um inimigo que se encontra em nossa porta ou embaixo de nossa cama. Em suma, deve haver um culpado, um crime ou uma intenção criminosa".

Onde vivem os monstros? Os nossos monstros? O autor cita Castel, que "chega a conclusão análoga quando supõe que a insegurança moderna não deriva da perda da segurança, mas da ?nebulosidade (ombre portée) de seu objetivo?, num mundo social que ?foi organizado em função da contínua e laboriosa busca de proteção e segurança?".

É inútil obter uma segurança completa! Além das explicações socioeconômicas desse fenômeno, estão as imagens que assinalam uma robusta realização humana, uma nova forma de civilização. O que a humanidade precisa pensar e interpretar nesse momento, é o urbano e a cidade globalizada que se expande e se esconde entre os sinais que a representam: os valores, as crenças, o uso, o cotidiano, as expectativas públicas e privadas, as relações humanas e inumanas que fazem do homem urbano, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do espaço.

Por sobre as causas e conseqüências desse fenômeno urbano, estão as imagens, os signos e sinais que o cidadão precisa extrair para usar como alicerces da sua ação, de uma interpretação capaz de lhe dar poder de decisão, poder de cidadania, e não de medo.

No entanto, vivemos hoje o oposto da cidadania, que é o individualismo exacerbado. Ninguém faz mais nada em grupo, daí a insegurança individual da qual fala o autor: "Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade humana". E cita Castel novamente, quando este "atribui a culpa por esse estado de coisas ao individualismo moderno. Bauman continua citando Castel quando este diz que "a sociedade moderna ? substituindo as comunidades solidamente unidas e as corporações (que outrora definiam as regras de proteção e controlavam a aplicação dessas regras) pelo dever individual de cuidar de si próprio e de fazer por si mesmo ? foi construída sobre a areia movediça da contingência: a insegurança e a ideia de que o perigo está em toda parte são inerentes a essa sociedade". Tomemos aqui o exemplo do uso do automóvel nas grandes cidades. As pessoas estão optando cada vez mais pelo transporte individual, em detrimento do público. É uma questão complicada de se resolver nos dias de hoje, pois as grandes cidades estão virando um caos, com muito barulho, poluição e mortes. "Imagine se fosse criado um meio de transporte não-poluidor, um capacete teletransportador, por exemplo. Com certeza todos ficariam felizes e premiariam o inventor. Mas, vamos supor ainda que, quando fosse receber a distinção, ele revelasse que a máquina é movida a carne humana, que consome dez pessoas por dia. Ele certamente seria preso. Mas o mesmo não ocorre com os carros, todo mundo aceita". Essa é uma definição de Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em entrevista à Agência Fapesp, sobre a utilização do automóvel e sua aceitação pela sociedade. O que percebemos é que as cidades também passaram a ser consideradas de acordo com a necessidade dos carros e de seus motoristas. Em entrevista concedida à revista Fórum nº 82, a professora da USP Raquel Rolnik lembra que, "em Bogotá, capital colombiana que é tida como exemplo em termos de modelo urbano, as intervenções feitas pelo poder público dão prioridade para o transporte coletivo e para o pedestre, ao contrário do que ocorre em São Paulo e em outras cidades brasileiras". Nessa entrevista, ela conta uma experiência que teve, ao visitar Bogotá: "Vi que a urbanização da periferia começava fazendo a calçada com árvore, arborizada, iluminada, linda, ciclovia na calçada, equipamentos públicos, escola, biblioteca, etc. e só depois pavimentava a via. Pavimentação é 50% do custo total de uma urbanização. As coisas que realmente a gente precisa, calçada, escola, praça, árvore, custam menos que a pavimentação. Quem precisa de pavimentação é o carro, a maior parte do povo não precisa".

2. O ESTADO E O DESENRAIZAMENTO: PAZ OU PRISÃO?

Qual o papel do Estado hoje, em relação às questões urbanas e à proteção dos indivíduos? Bauman afirma que "desde o início, o Estado moderno teve de enfrentar a tarefa desencorajadora de administrar o medo. Foi obrigado a tecer de novo a rede de proteção que a revolução moderna havia destruído, e repará-la repetidas vezes, à medida que a modernização, promovida por ele mesmo, só a deformava e desgastava. Ao contrário do que se é levado a pensar, no coração do ?Estado social? ? êxito inevitável da evolução do Estado moderno ? havia mais proteção (garantia coletiva contra as desventuras individuais) que redistribuição da riqueza. Para as pessoas desprovidas de recursos econômicos, culturais ou sociais (de todos os recursos, exceto da capacidade de realizar trabalhos manuais), ?a proteção só pode ser coletiva?". Há uma música da banda de rock O Rappa que nos questiona: "As grades do condomínio são pra trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você quem está nessa prisão". Essa letra do compositor Marcelo Yuka serve como uma bela ilustração do que estamos tratando aqui. O medo na sociedade atual não está mais determinado a horários e locais específicos. A violência está em toda parte, não há como se sentir seguro em lugar algum. Por outro lado, há centenas de aparatos, como câmeras, grades e alarmes, que reafirmam e estimulam a necessidade da ?indústria do medo?, e criam falsas sensações de segurança, mas que, na verdade, limitam a nossa liberdade. Quem está preso, afinal? O que o filósofo Thomas Hobbes diria sobre essa situação que a humanidade vive hoje? Para que serve, então, este Estado moderno, ao qual apenas entregamos muitos de nossos privilégios e as contrapartidas já não são mais eficientes? Segundo Bauman, "os medos modernos tiveram início com a redução do controle estatal (a chamada desregulamentação) e suas conseqüências individualistas, no momento em que o parentesco entre homem e homem ? parentesco eterno, ou pelo menos presente desde tempos imemoriais -, assim como os vínculos amigáveis estabelecidos dentro de uma comunidade ou de uma corporação, foi fragilizado ou até rompido. O modo como a modernidade sólida administrava o medo tendia a substituir os laços ?naturais? ? irreparavelmente danificados ? por outros, artificiais, que assumiam a forma de associações, sindicatos e coletivos part-time (quase permanentes, no entanto, pois consolidados pela rotina diariamente partilhada). A solidariedade sucedeu a irmandade como melhor defesa para um destino cada vez mais incerto". Mas, no entanto, "a dissolução da solidariedade representa o fim do universo no qual a modernidade sólida administrava o medo". E conclui dizendo que "quando a solidariedade é substituída pela competição, os indivíduos se sentem abandonados a si mesmos, entregues a seus próprios recursos ? escassos e claramente inadequados".

3. XENOFOBIA, EXÍLIO, IDEOLOGIA

Há um momento interessante do livro, quando Bauman discorre acerca das "válvulas de escape xenófobas" dos Estados desenvolvidos da Europa (sobretudo escandinavos), "que relutam em abandonar as proteções institucionais transmitidas pela modernidade sólida". Esses Estados "consideram os resquícios do Estado social um privilégio que é preciso defender com unhas e dentes de invasores que pretendem saqueá-los". Daí o ressurgimento da xenofobia e da "suspeita crescente de um complô estrangeiro e o sentimento de ranços pelos ?estranhos? ? em especial os imigrantes, que, de modo vívido e claro, recordam que os muros podem ser derrubados, e as fronteiras canceladas; os imigrantes por meio dos quais se queimam em efígie as misteriosas e incontroláveis forças globalizantes". E que isso "pode ser entendido como um reflexo perverso da tentativa desesperada de salvar o que resta da solidariedade local". Em nome da manutenção da nossa conservadora estabilidade social, é mais pertinente que toda a coletividade de indivíduos viva massificada sob o imperativo do anonimato, ainda que isso resulte em prejuízo para a inovação da cultura. Segundo o próprio Bauman, em Medo líquido, p. 93, "em nossa sociedade líquida, manter-se à distância parece a única forma razoável de proceder".

Aqui cabe trazer também as palavras do teórico marxista Henry Lefebvre, no seu livro O direito à cidade: "Quanto ao urbanismo como ideologia, recebeu ele formulações cada vez mais precisas. Estudar os problemas de circulação, de transmissão das ordens e das informações na grande cidade moderna leva a conhecimentos reais e a técnicas de aplicação. Declarar que a cidade se define como rede de circulação e de consumo, como centro de informações e de decisões é uma ideologia absoluta; esta ideologia, que procede de uma redução-extrapolação particularmente arbitrária e perigosa, se oferece como verdade total e dogma, utilizando meios terroristas. Leva ao urbanismo dos canos, da limpeza pública, dos medidores, que se pretende impor em nome da ciência e do rigor científico. Ou a coisa pior ainda!" É o que temos visto em nossas cidades: um urbanismo inoperante! O que se precisa fazer? Como superar e vencer essa cultura do medo nesses tempos pós-modernos? Novamente as palavras de Lefebvre nos ajudam a buscar uma resposta condizente: "É indispensável a crítica radical tanto das filosofias da cidade quanto do urbanismo ideológico, e isto tanto no plano teórico como no plano prático. Essa crítica pode ser tomada por uma operação de salubridade pública. Entretanto, não pode ser realizada sem longas pesquisas, sem análises rigorosas, sem um estudo paciente dos textos e contextos".

4. INAUTENTICIDADE: É POSSÍVEL ASSIM LUTAR PELO DIREITO À CIDADE?

Segundo Bauman, "a gente da cidade não se identifica com a terra que a alimenta, com a fonte de sua riqueza ou com uma área sob sua guarda, atenção e responsabilidade, como acontecia com os industriais e comerciantes de ideias e bens de consumo do passado. Eles não estão interessados, portanto, nos negócios de ?sua? cidade: ela não passa de um lugar como outros e como todos, pequeno e insignificante, quando visto da posição privilegiada do ciberespaço, sua verdadeira ? embora virtual ? morada". Mas Bauman, em outro livro, Comunidade ? A busca por segurança no mundo atual, traz à tona os contundentes sintomas de empobrecimento e dissolução das relações pessoais , e nos faz a seguinte pergunta retórica: "Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela. Você quer poder confiar? Não confie em ninguém de fora da comunidade. Você quer entendimento mútuo? Não fale com estranhos, nem fale línguas estrangeiras. Você quer essa sensação aconchegante do lar? Ponha alarmes em sua porta e câmeras de TV no acesso. Você quer proteção? Não acolha estranhos e abstenha-se de agir de modo esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer aconchego? Não chegue perto da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se você seguir esse conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente logo ficará abafado e, no limite, opressivo". E voltando ao texto desse fichamento, Bauman afirma que "os elegantes modelos de vida urbana, construídos com a ajuda de contraposições nítidas, podem proporcionar muitas satisfações aos construtores de teorias, mas na prática não servem de muita coisa para os planejadores urbanos, e menos ainda para os habitantes que enfrentam os desafios da vida na cidade". Como lutar pelo direito à cidade, nesse mundo globalizado? Bauman diz que "nesse mundo que se globaliza, a política tende a ser ? cada vez mais apaixonada e conscientemente ? local. O nosso agir ou não-agir só pode ?fazer a diferença? quando se trata de questões locais, enquanto para as outras questões, declaradamente ?supralocais?, não existem ?alternativas? ? como continuam a afirmar nossos líderes políticos, assim como os especialistas de plantão". Os cidadãos se sentem cada vez mais impotentes em relação a muitas questões importantes, e os políticos também. Bauman: "Também as situações cuja origem e cujas causas são indubitavelmente globais, remotas e obscuras, só entram no âmbito das questões políticas quando têm repercussões locais. A poluição do ar ? notoriamente global ? ou dos recursos hídricos só diz respeito à política quando um terreno, vendido abaixo do custo ? em razão da presença de resíduos tóxicos ou de alojamentos para refugiados políticos -, está localizado aqui ao lado, praticamente em ?nosso quintal?, aterradoramente próximo, mas também (o que é encorajador) ?ao alcance da mão?".

5. À GUISA DE CONCLUSÃO: PERSPECTIVA OU PROSPECTIVA?

"Todos sabem que viver numa cidade é uma experiência ambivalente. Ela atrai e afasta(...) Trata-se claramente de uma coexistência incômoda, cheia de som e fúria, mas, mesmo assim, muito significativa para as pessoas que sofrem a ambivalência da modernidade líquida". (Zigmunt Bauman)

Bauman: "Em poucas palavras: as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização. Os cidadãos e aqueles que foram eleitos como seus representantes estão diante de uma tarefa que não podem nem sonhar em resolver: a tarefa de encontrar soluções locais para contradições globais". A tarefa é difícil. Dificílima! Porque vivemos tempos de escapismo, onde as pessoas e autoridades políticas vivem a "empurrar" os problemas com a barriga, ou para debaixo do tapete, ou para o futuro. Segundo Bauman, "essa possibilidade de escapar dos problemas locais permite que tenham uma independência com que os outros habitantes urbanos só podem sonhar; e que exibam o luxo ? que os outros não se podem permitir ? de uma nobre indiferença. Sua contribuição para ?resolver as questões da cidade? tende a ser menos completa e mais desprovida de restrições que a participação dos que têm menores possibilidades de romper unilateralmente os vínculos locais". Diz ainda que "é esse conforto geral, e não algum fator particular, que aciona e orienta a dinâmica da cidade na modernidade líquida ? de todas as cidades, sem sombra de dúvida, embora não de todas elas no mesmo grau".

Ficam, à guisa de conclusão, alguns questionamentos e inquietações: desintegra-se a cidade ou constatamos a sua velhice? Desaparece o cidadão ou surge o usuário ausente da sua condição urbana? Pasteuriza-se a imagem urbana e nos impede de ver e, sobretudo, de pensar?

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. Comunidade ? A busca por segurança no mundo atual. Trad. de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003

________. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. Trad. de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.

Revista Fórum nº 82, fevereiro de 2010.