RESPONSIBILIDADE PENAL E APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Por george cabral cardoso | 13/12/2016 | Direito

1 DESCRIÇÃO DO CASO

No dia 12 de Dezembro de 2013, o Sr. Antônio da Silva ingeriu bebidas alcoólicas na festa de conclusão de curso de sua filha Juliana da Silva. No decorrer da festa, Antônio ingeriu 10 (dez) doses de bebida alcoólica, o que fez com que sua filha pedisse que ele não dirigisse na volta para casa, mas sim entregasse, a ela, a chave do veículo, pedido este que não foi atendido por seu pai.

Sempre muito firme em seus posicionamentos, o pai não titubeou e, mesmo contrariando a vontade da filha, após a ingestão da bebida alcoólica, dirigiu o veículo. Ocorre que, no trajeto, o senhor Antônio da Silva, ainda que dirigindo o veículo a 65 km/h, não suportou a sonolência e perdeu o controle do veículo, atropelando e matando um entregador de jornais que trafegava pela via, o que ensejou a prisão em flagrante de Antônio.

Diante das peculiaridades do ocorrido, o advogado contratado por Antônio asserta em sua tese de defesa a culpa consciente, enquanto o Ministério Público na figura do Promotor propôs a peça inicial acusatória fundamentando-a na existência de dolo eventual, isso pelo fato do acusado ter ingerido bebida alcoólica e imediatamente ter se colocado na direção do presente automóvel.

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

2.1 Descrição das Decisões Possíveis: 

  • Deve prevalecer a tese de defesa baseada na culpa consciente; 
  • Dever acatar-se a tese da acusação, que sustenta a existência de dolo eventual; 

2.2 Argumentos Capazes de Fundamentar cada Decisão: 

  • Há princípio, tem que se considerar a existência de culpa consciente da conduta atribuída ao agente. Nesse bojo, Damásio de Jesus (213, p.343) profere que:

na culpa consciente o resultado é previsto pelo sujeito, que espera levianamente que não ocorra ou possa evitá-lo. Vimos que a previsão é elemento do dolo, mas que, excepcionalmente, pode integrar a culpa. A exceção está na culpa consciente. Ex.: numa caçada o sujeito percebe que um animal se encontra nas proximidades de seu companheiro. Confia, porém, em sua pontaria, acreditando que não virá a matá-lo. Atira e mata o companheiro. Não responde por homicídio doloso, mas sim por homicídio culposo (CP 121, §3°).

Como é notório, semelhante foi o caso ocorrido com Antônio, uma vez que, mesmo tendo ingerido bebida alcoólica, confiou nas suas habilidades frente à direção de um veículo automotor, de tal forma que acreditou veementemente que não ocorreriam resultados típicos, tal como o atropelamento e posterior morte do entregar de jornais. Desta feita, é coerente tão somente a tipificação de homicídio na forma culposa, porém, aplicando-se o Código de Trânsito Brasileiro, não o Código Penal.

Pois bem. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) prevê no artigo 302 que “Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor. Penas- detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”. É imprescindível, portanto, a aplicação desta legislação específica, que prevê o crime de trânsito, sobretudo pelo fato de o agente encontrar-se no comando de velocidade e controle do veículo automotor, afastando-se, por conseguinte, o homicídio genérico e lesões corporais, ambos tipificados pelo hodierno Código Penal. (CAPEZ, 2013).

Neste itinerário segue o Supremo Tribunal Federal (STF) no Habeas Corpus 107801(HC 107801)[4], que teve como relator- para acordão- o Ministro Luiz Fux:

PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do dueprocessoflaw, é reformável pela via do habeas corpus. 2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte. 5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243) 6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lexmitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB). 8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.

Ademais, segue o Superior Tribunal de Justiça, no HC – Habeas Corpus – 58826[5], que:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. 1. HOMICÍDIO. CRIME DE TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. DOLO EVENTUAL. AFERIÇÃO AUTOMÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. 2. ORDEM CONCEDIDA. 1. Em delitos de trânsito, não é possível a conclusão automática de ocorrência de dolo eventual apenas com base em embriaguez do agente.Sendo os crimesde trânsito em regra culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado. 2. Ordem concedida para, reformando o acórdão impugnado, manter a decisão do magistrado de origem, que desclassificou o delito para homicídio culposo e determinou a remessa dos autos para o juízo comum.

Hodiernamente há uma generalização do dolo eventual, bem como uma notória tendência de responsabilização penal objetiva quando o condutor do veículo está embriagado. Todavia, para a existência de dolo eventual é imprescindível a postura de indiferença frente ao resultado possível da conduta (SIGAUD, 2012), indiferença está não perceptível da ação de Antônio.

 Conclui-se, pois, que no caso de Antônio há uma evidente configuração de culpa consciente, sendo imprescindível a tipificação do homicídio a título de culpa, em consonância com a legislação específica prevista no Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 303, que dispõe acerca do homicídio culposo praticado sob direção de veículo automotor, não sendo competente para julgamento o Tribunal do Júri (Art. 74, §1°, CPP).

  • É coerente, entretanto, a partir de outro viés, considerar, no presente caso, a tipicidade do homicídio com existência de dolo eventual. Acerca do dolo eventual, profere Rogério Greco (2013, p 190) que “fala-se em dolo eventual quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto. Nas palavras de Jescheck, ‘dolo eventual significa que o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e se conforma com ela’”.

Diante das proposições fáticas do caso em análise, o Sr. Antônio da Silva, em sua esfera psíquica, detinha a probabilidade de ocorrência de resultados típicos, tanto que Juliana da Silva, sua filha o alertara sobre os riscos de dirigir veículo automotor após ter ingerido bebida alcoólica, sobretudo em grandes quantidades como assim o fez. Torna-se, portanto, previsível um resultado que posteriormente pode ensejar uma punição a título de dolo, vez que Antônio mostrou-se indiferente aos possíveis resultados.

A competência, entretanto, para apuração da existência do dolo eventual, segundo o ministro Jorge Mussi, em fundamentação ao HC nº 199.100 - SP (2011/0046083-0)[6], é do Tribunal do Júri. Veja-se:

até porque, afirmar se o recorrente agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia, com o auxílio do conjunto fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, pela Corte Popular, juiz natural da causa, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício. E repita-se, não há como se valorar os elementos probatórios até então colacionados, como pretende a defesa, para perquirir acerca da conduta do recorrente no evento denunciado, porquanto o debate dessa natureza é atribuição exclusiva do Tribunal do Júri, constitucionalmente competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, e não nesta oportunidade e instância. Portanto, qualquer conclusão diversa, consoante vem decidindo esta Superior Tribunal de Justiça, inevitavelmente levaria ao vedado revolvimento aprofundado do conjunto probatório, importando em usurpação da competência constitucional da Corte Popular. Dessa forma, tendo a decisão impugnada asseverado que, in casu , há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao agente e tendo a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder a qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidencia qualquer ilegalidade suportada em decorrência da pronúncia a título de dolo eventual, já que conclusão em sentido contrário demandaria profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do procedimento próprio, dotado de cognição exauriente.

[...]

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