Responsabilização civil do Estado perante os portadores da hanseníase e seus filhos internados em preventórios.

Por Luiz Augusto Curado Júnior | 17/12/2010 | Direito




Centro Universitário de Brasília
Instituto CEUB de Pesquisa e Desenvolvimento - ICPD






LUIZ AUGUSTO CURADO JÚNIOR


RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO ESTADO PERANTE OS PORTADORES DA HANSENÍASE E SEUS FILHOS INTERNADOS EM PREVENTÓRIOS






Brasília
2010
LUIZ AUGUSTO CURADO JÚNIOR




RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO ESTADO PERANTE OS PORTADORES DA HANSENÍASE E SEUS FILHOS INTERNADOS EM PREVENTÓRIOS



Trabalho apresentado ao Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/ICPD) como pré-requisito para obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Direito Administrativo Contemporâneo aplicado à Gestão Pública
Orientador: Professor Rui Magalhães Piscitelli.





Brasília
2010

LUIZ AUGUSTO CURADO JÚNIOR

RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO ESTADO PERANTE OS PORTADORES DA HANSENÍASE E SEUS FILHOS INTERNADOS EM PREVENTÓRIOS

Trabalho apresentado ao Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/ICPD) como pré-requisito para obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Direito Administrativo Contemporâneo aplicado à Gestão Pública
Orientador: Professor Rui Magalhães Piscitelli.


Brasília, ______ de _____________________ de 2010.

Banca Examinadora

___________________________
Professor Gilson Ciarallo

___________________________
Professor Henrique Vitali


















Dedico este trabalho a 5 pessoas:

Hebi e Luiz Augusto: mãe e pai, muito obrigado pela vida e pelas condições
que me deram para eu me
tornar quem sou.

Erudith, Eru e Nezinha: a mulher da minha vida, minha namorada e
minha amiga, muito obrigado
pela compreensão,
dedicação e amor.

AGRADECIMENTOS

Ao Professor e Mestre Rui Magalhães Piscitelli, meu orientador, iluminador de ideias e ideais e motivador particular. Graças a sua dedicação e aos caminhos de pesquisa que me apontou, consegui superar os desafios deste trabalho.
Ao Professor Gilson Ciarallo que, com sua paciência inquestionável e técnica apurada, proporcionou a boa condução deste trabalho.
À Dra. Cleide Mendes Rocha, minha sogra, que, num cenário totalmente por mim desconhecido, elucidou questões relativas à Medicina












RESUMO

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa que acomete, não só a pele do enfermo, como seu sistema nervoso periférico. Em muitos casos determina a deformidade do rosto e dos membros dos infectados. Por muito tempo, essa enfermidade causou terror e pânico no mundo inteiro à conta de ser considerada incurável. Entretanto, em meados de 1960, descobriu-se a cura. O foco principal do presente trabalho é analisar o papel desempenhado pelo Estado Brasileiro no combate à hanseníase, de forma a apurar sua responsabilidade pelo tratamento dispensado aos hansenianos, isolados compulsoriamente, e aos seus filhos internados em preventórios; verificar a necessidade da Lei n.11.520/2007, que concede pensões vitalícias àqueles que foram isolados, e a plausibilidade da ampliação desse normativo para abarcar as crianças que foram separadas dos pais infectados. Para atingir esse objetivo, é feito um estudo dos princípios do Direito; do histórico, formas de propagação e tratamento da doença, e dos pressupostos de responsabilização civil do Estado por condutas comissivas. Depois de toda essa análise, entende-se ser possível responsabilizar o Poder Público, não pela política de isolamento dos enfermos, que parecia ser aceitável à época, mas pela maneira com que ela foi conduzida, o tempo que durou, a qualidade dos ambientes a que os doentes eram submetidos, a inexistência de ações de readaptação dos egressos, entre outros.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Responsabilidade Civil do Estado. Hanseníase.










ABSTRACT

Leprosy is an infectious disease that affects not only the skin of the patient, as your peripheral nervous system. In many cases determine the deformity of the face and limbs of those infected. For too long, this disease has caused terror and panic throughout the world on account of being considered incurable. However, in mid-1960, it was discovered the cure. The main focus of this paper is to analyze the role played by Brazil in the fight against leprosy in order to establish their responsibility for the treatment of leprosy, isolated compulsorily, and their children admitted to preventoriums; verify the need of Law n.11.520 / 2007, which grants lifetime pensions to those who were isolated, and the plausibility of the proposed expansion of legal cover for the children who were separated from their infected parents. To achieve this goal, we study the principles of law, history, modes of spread and treatment of disease, and assumptions of the state civil liability for conduct by omission. After all this analysis means can blame the government, not by the political isolation of the sick, who seemed to be acceptable at the time, but the way it was conducted, how long it lasted, the quality of the environment that patients were submitted, the absence of legal rehabilitation of graduates, among others.



Keyword: Administrative law. Liability of the State. Leprosy.








LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF/46 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946
CF/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
DNSP Departamento Nacional de Saúde Pública
INPS Instituto Nacional de Previdência Social
MORHAN Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase
MS Ministério da Saúde
SNL Serviço Nacional da Lepra
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
SUS Sistema Único de Saúde
MP Medida Provisória








SUMÁRIO



INTRODUÇÃO_______________________________________________ 09
1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS À PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE DOS DIREITOS COLETIVOS___ 15
1.1 Princípios, Princípios jurídicos e princípios constitucionais______ 16
1.2 Os direitos fundamentais___________________________________ 20
1.3 As Constituições Federais de 1946 e 1988_____________________ 24
2 A SAÚDE PÚBLICA E A HANSENÍASE__________________________ 27
2.1 Saúde pública no Brasil e sua previsão constitucional____________ 27
2.2 Hanseníase, aspectos gerais__________________________________ 31
2.2.1 Hanseníase, história e formas de tratamento adotadas no Brasil até a descoberta da cura _____________________________________________ 33
2.2.2 Hanseníase, medidas legislativas brasileiras _____________________ 35
3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E SUA APLICAÇÃO NO CASO CONCRETO_____________________________________________ 38
3.1 Dano e indenização _________________________________________ 38
3.2 Evolução da responsabilidade civil do Estado ___________________ 39
3.3 A responsabilidade do Estado no Direito Brasileiro ______________ 41
3.4 Marco inicial da responsabilidade do Estado Brasileiro na saúde pública _______________________________________________________ 50
3.4.1 Descaso do Estado no trato da saúde pública__________________ 52
3.4.2 Das normas nacionais de combate à hanseníase________________ 54
3.4.2.1 Saúde Pública versus Liberdade Individual_____________________ 55
3.4.2.1.1 Adequação_____________________________________________ 58
3.4.2.1.2 Necessidade___________________________________________ 62
3.4.2.1.3 Proporcionalidade em sentido estrito_________________________ 63
3.4.2.2 Alto grau de autonomia dado às autoridades sanitárias____________ 64
3.4.2.3 Condições de vida nos leprosários ou hospitais-colônias e de assistência social e readaptação aos egressos à sociedade______________ 65
3.4.2.4 Descompasso e desordem legislativa__________________________ 70
3.4.2.5 A vida nos preventórios ou educandários_______________________ 74
CONCLUSÃO__________________________________________________ 80
REFERÊNCIAS_________________________________________________ 83

INTRODUÇÃO

A hanseníase, também conhecida como lepra, morféia ou mal de Lázaro, é uma doença infecciosa crônica causada pelo Mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen, nome dado em homenagem ao médico norueguês descobridor do microorganismo causador dessa doença ? Gerhard Hansen. (BRASIL, 2002, p. 12-16).
Essa doença é transmitida por intermédio de gotículas de saliva, nas quais o bacilo Mycobacterium leprae é eliminado pelo aparelho respiratório do infectado na forma de aerossol durante o ato de falar, espirrar ou tossir. Em boa parte das vezes, o contágio se dá por intermédio de contatos domiciliares.
A incubação desse bacilo é de longa duração, de dois a vinte anos, o que explica o motivo dessa doença se manifestar mais comumente em adultos do que em crianças.
Cerca de 90% da população mundial tem resistência ao bacilo de Hansen e consegue controlar a infecção. Além disso, nem toda pessoa exposta a esse bacilo desenvolve a doença. Isso ocorre em apenas 5% delas.
Um dos primeiros sintomas da hanseníase é a perda da sensação térmica em determinada parte do corpo do infectado, que se mostra numa coloração mais clara que a pele e com tons avermelhados. A doença acomete, além da pele, o sistema nervoso periférico levando à deformidade do rosto e membros, além de propiciar o surgimento de grandes feridas, podendo ocasionar, inclusive, a mutilação de membros. (BRASIL, 2002, p. 12-16).
Todo o conhecimento até aqui exposto é fruto de muitos anos de estudo sobre a doença. Desde os primeiros casos registrados da hanseníase no mundo, século 7 a. C., vários religiosos, biólogos, químicos e médicos se dedicaram à descoberta da cura, o que aconteceu no final dos anos 1960. Até então, milhões de portadores dessa enfermidade e seus familiares sofreram com o aspecto deprimente e deplorável que o infectado muitas vezes apresenta, o desconhecimento das formas de contágio, a desesperança quanto à cura e o preconceito da sociedade. (BRASIL, 2002, p. 12-16).
Um marco para o combate à doença foi 1897. Nesse ano, aconteceu em Berlim um grande evento de repercussão mundial chamado Conferência sobre a Lepra e tinha como objetivo divulgar os avanços e as descobertas sobre a doença. Nessa ocasião, ficou assentada que a única forma de contágio se dava pelo convívio com os infectados e as recomendações sobre as condutas para com os doentes eram:
1) O isolamento dos doentes em sua própria casa contribuirá para um combate mais eficaz à doença.
2) Onde existem muitos pobres hansenianos, o isolamento feito apenas em casa não será suficiente. Nestes casos, o governo terá de tomar providências e isolá-los, assim como responsabilizar-se pelo cuidado e tratamento destes.
3) Cada caso deve ser examinado individualmente e então se decidir pelo isolamento facultativo ou obrigatório. (HANSEN, 1897 apud CUNHA, 2002, p. 235-242).

Muitos países, depois da Conferência sobre a Lepra, adotaram a política do isolamento de seus enfermos. O Brasil não agiu de forma diferente. Em 1922, por exemplo, o Rio de Janeiro organizou a Primeira Conferência Americana de Lepra que publicou dentre as suas conclusões técnicas a de número 3:
TERCEIRA ? O combate ao contágio constitui o elemento decisivo na campanha contra a lepra e deverá ser realizado principalmente em colônias de leprosos, nos quais sejam tomadas todas as providências de ordem técnica, que atendam às diversas doutrinas em litígio relativas à transmissão da doença. (HANSEN, 1897 apud CUNHA, 2002, p. 235-242).

Em 1920, o governo federal começou a reforçar suas iniciativas na área da saúde pública com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). A presença do Estado tornou-se mais efetiva no combate à lepra na década de 40, em pleno Estado Novo, quando foi criado o Serviço Nacional da Lepra (SNL), a quem caberia a coordenação do plano de combate à doença em todo o país. A política de atuação do SNL se sustentava sob o tripé: leprosários (asilo dos doentes), dispensários (estabelecimentos que examinavam os contatos e pessoas suspeitas) e preventórios (espécie de creche que acolhia, criava e educava os filhos dos internados).
Em 13 de janeiro de 1949, o Presidente da República, General Eurico Gaspar Dutra, preocupado com a espantosa velocidade com que a doença se espalhava, promulgou a Lei Federal n. 610, que fixava normas para a profilaxia da lepra. O referido normativo legal determinou não só a internação compulsória de todos os hansenianos, como decretou o afastamento obrigatório de todos os filhos de doentes de lepra, recém-nascidos ou não, de seus respectivos pais à conta do alto risco de contágio.
Como já registrado, a década de 60 apresentou os primeiros avanços rumo à cura da doença. Com isso, em 7 de maio de 1962, o Decreto 968 extinguiu o tratamento da doença pelo isolamento compulsório e permitiu a circulação nas cidades dos hansenianos.
Embora, no Brasil, formalmente a internação compulsória tenha sido abolida em 1962, pelo Decreto 968, ainda sim existiram casos de isolamento dessa espécie nos anos 80.
Em maio de 2007 foi editada a Medida Provisória 373, convertida na Lei 11.520, em 18 de setembro de 2007, que dispõe sobre a concessão de pensão especial às pessoas atingidas pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e internação compulsória até 31 de dezembro de 1986. O valor da mencionada pensão, que é vitalícia, mensal e intransferível, concedida a título de indenização especial, foi fixado em R$750,00.
O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), entidade sem fins lucrativos fundada em 1981, que luta pela causa das vítimas da hanseníase, desempenhou papel de destaque no cenário nacional ao fornecer subsídios ao Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de ex-colônias de Hanseníase quando do advento da Lei 11.520/07.
Com a publicação da mencionada lei, a próxima luta do MORHAN é pela ampliação da abrangência dos beneficiados pela pensão prevista naquela lei ou edição de nova lei que conceda, também, aos filhos dos hansenianos isolados, aqueles que habitavam nos preventórios, indenização especial semelhante àquela concedida pela Lei 11.520/07.
O ponto central desta monografia é analisar o papel do Estado Brasileiro no combate à hanseníase e responder se ele pode vir a ser responsabilizado pelo tratamento dispensado aos hansenianos, pelo isolamento compulsório destes, e pelo impedimento do convívio de pais infectados e filhos, que eram internados em preventórios.
Para explorar melhor o tema, o presente estudo é composto por três capítulos.
O primeiro deles, sob o título de Princípios constitucionais aplicáveis à proteção dos direitos fundamentais em face dos direitos coletivos, se destina a introduzir a discussão sobre essa temática. Ele é responsável por trazer uma visão geral dos princípios do Direito e dos princípios constitucionais para que, a partir dali, se analise as principais características das constituições federais brasileiras de 1946 e 1988. A primeira, a CF/46, é estudada, pois foi durante a sua vigência que se publicou a Lei Federal 610/49 que, conforme já registrado, determinou o isolamento compulsório dos portadores da hanseníase e a separação destes de seus filhos, internados em preventórios. A segunda, a CF/88, é, também, estudada à conta de ser a Carta Magna vigente no momento em que o Estado Brasileiro reconheceu aos doentes isolados o direito à indenização. Ao final dessa parte, ainda são abordados os direitos fundamentais (dentre eles: a vida, a liberdade e a dignidade humana), trazendo a evolução de seu estudo, os direitos fundamentais sociais (direito à saúde) e os direitos fundamentais coletivos.
O segundo capítulo vai discorrer acerca do histórico da hanseníase e as iniciativas do Brasil e de outros Estados visando o tratamento dos doentes e controle de sua proliferação. Serão estudadas, ainda, as medidas legislativas brasileiras no tocante a essa enfermidade: Lei Federal 610/1949, que determinou o isolamento compulsório dos doentes; Decreto Federal 968/62, que extinguiu essa forma de tratamento; e a Lei Federal 11.520/07, que concede a pensão especial aos hansenianos obrigatoriamente isolados.
O terceiro e último capítulo cuida da jurisprudência e da doutrina especializada em Responsabilidade Civil do Estado: histórico, requisitos e hipóteses de incidência. É nesta etapa que se pretende estudar de forma crítica o posicionamento do Estado Brasileiro no caso concreto. A idéia é aplicar a teoria da responsabilização civil do Estado aos hansenianos, isolados da sociedade de forma compulsória, e aos seus filhos sãos, internados em preventórios. O estudo visa identificar a plausibilidade de se responsabilizar o Poder Público pelo tratamento dispensado ao mencionado público-alvo.















1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS À PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE DOS DIREITOS COLETIVOS.


Com fito a introduzir a discussão acerca da responsabilização do Estado Brasileiro à conta do tratamento dispensado aos portadores de hanseníase e seus familiares com a publicação da Lei Federal 610/49, que tornou obrigatório o isolamento dos enfermos e a separação de seus filhos, e com a extinção, ao menos oficial, dessa espécie de tratamento pelo Decreto Federal 968/1962, tendo em vista que tal tratamento continuou sendo efetuado, de forma isolada, no início da década de 1980, mostra-se necessário analisar essa problemática pela visão dos princípios aplicáveis ao caso concreto. Dessa forma, o primeiro capítulo foi subdividido em três tópicos, nos quais esse assunto será abordado.
No primeiro tópico buscar-se-á trazer a conceituação de princípios de forma a possibilitar uma abordagem mais prática do tema e a distinção destes dos princípios constitucionais.
A segunda parte do capítulo cuida dos direitos fundamentais. Ali serão trazidos conceitos dos mencionados direitos e abordada sua evolução (dimensões). Merece destaque o tópico que trata de fatores que limitam e restringem seu exercício. Nessa ocasião, o conceito da dignidade da pessoa humana será apresentado com o objetivo de introduzir o leitor, de forma mais didática, na discussão do caso concreto.
O terceiro e último tópico se destina ao estudo e à contextualização do momento histórico vivido pelo país quando da edição e publicação dos textos constitucionais de 1946 e 1988. O estudo da primeira é relevante, pois era a constituição que vigia à época da publicação da Lei 610/1949, e o da segunda, também, pois foi durante sua vigência que foi publicada a Lei 11.750/2007, que concedeu pensões vitalícias aos hansenianos isolados de forma compulsória pelo Estado.

1.1 Princípios, princípios jurídicos e princípios constitucionais.

O termo princípio é usado de forma variada pelos mais diversos campos de conhecimento. Ruy Samuel Espíndola (2002, p. 52) registra que o referido termo é utilizado para estruturar um sistema ou conjunto articulado de conhecimentos a respeito de objetos cognoscíveis exploráveis na própria esfera de investigação e de especulação de cada uma das seguintes áreas do saber: filosofia, religião, sociologia, política, direito, entre outros.
No tocante ao estudo dos princípios jurídicos, os comentários de Thiago Bomfim (2008, p. 61) mostram-se importantes para uma melhor compreensão desse tema que se mostra tão abstrato. Segundo esse autor, os princípios que povoam o imaginário jurídico representam valores supremos para a realização humana, com fundamento ético, moral ou religioso. Sendo assim, as normas jurídicas nasceriam da observação social, ou seja, o Direito não cria suas normas num sistema fechado e isolado, alheio à instabilidade da evolução social. O valor protegido pela norma não surge no momento em que ela entra em vigor. Seguindo, ainda, essa linha de pensamento, a evolução do sistema jurídico representaria a evolução da proteção dos valores necessários ao melhor controle da vida em sociedade. Valores que, conforme texto do autor, se originam, muita vezes, em outro campo do saber e posteriormente são transformados em normas jurídicas.
Espíndola (2002, p. 55) afirma que o termo princípio, no sistema jurídico, ora é usado para designar a formulação dogmática de conceitos estruturados por sobre o direito positivo, ora para designar determinados tipos de normas jurídicas e ora para estabelecer os postulados teóricos, as proposições jurídicas construídas independentemente de uma ordem jurídica concreta ou de institutos de direito ou normas legais vigentes.
Para Josef Esser, princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado. A diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa e o critério distintivo daqueles em relação a estas seria a função de fundamento normativo para a tomada de decisão. (ESSER, 1990 apud ÁVILA, 2009, p. 35).
Karl Larenz perfilha o entendimento de Esser e define os princípios como normas de grande relevância para o ordenamento jurídico na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento (LARENZ, 1991 apud ÁVILA, 2009, p. 35-36). É possível perceber certa correspondência entre o pensamento de Larenz e o de Bomfim, há pouco registrado. Em ambos, o ordenamento jurídico é desenhado como um sistema aberto que sofre influência e influencia outros campos de conhecimento.
Claus-Wilhelm Canaris destaca a complementaridade entre princípios e regras. Aqueles possuiriam um conteúdo axiológico explícito, diferentemente do que ocorre com essas e por conta disso careceriam das regras para sua concretização. Esse autor sugere, ainda, que os princípios, ao contrário das regras, receberiam seu conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação. (CANARIS, 1983 apud ÁVILA, 2009, p. 36).
Ronald Dworkin, em seus registros, aponta que os princípios contêm seus próprios fundamentos e que estes devem ser conjugados com os fundamentos provenientes de outros princípios. Entretanto, existe a possibilidade de dois princípios colidirem. Nesse caso, o princípio com peso relativamente maior se sobrepõe a outro com menor peso, sem perder sua validade. Isso ocorre de forma diversa ao que acontece com as regras que, em caso de colisão, uma é invalidada pela outra (DWORKIN, 1977 apud ÁVILA, 2009, p. 36). Com base nessa teoria, Robert Alexy propôs o seguinte conceito: princípios são como deveres de otimização aplicáveis em vários graus segundo as possibilidades normativas e fáticas. Normativas porque a aplicação dos princípios depende dos princípios e regras que a eles se contrapõem e, fáticas porque o conteúdo dos princípios como normas de conduta só pode ser determinado quando diante dos fatos. (ALEXY, 2008 apud ÁVILA, 2009, p. 37).
Ávila, diante de tantos conceitos de princípios, realiza um compêndio dos pensamentos de Esser, Larenz, Canaris, Dworkin e Alexy e define seu próprio entendimento acerca do tema que, por se mostrar mais completo e amplo, será o adotado na elaboração deste trabalho:

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. (ÁVILA, 2009, p. 78-79).

Delineado o conceito de princípios, partimos para outra etapa que são os princípios constitucionais.
André Ramos Tavares (2003, p. 24-25) afirma que a constitucionalização de princípios não lhes altera a estrutura, pois continuam a pertencer a essa categoria geral denominada princípios, muito embora sua inserção na constituição amplie sua eficácia. O mencionado autor traz a definição de princípios constitucionais desenvolvida por Sampaio Dória à luz da Constituição de 1891, em seu Princípios Constitucionaes, de 1926:

As bases orgânicas do Estado, aquellas generalidades do direito público, que, com naus da civilização, devem sobrenadar às tempestades políticas, e às paixões dos homens. Os princípios constitucionaes da União Brasileira são aquelles cânones sem os quaes não existiria a União tal qual é nas suas características essenciales. (DÓRIA, 1926 apud TAVARES, 2003, p. 24).


Vê-se que tais princípios não só se consagram como norma jurídicas, como também adquirem superioridade própria, o que se denomina de status constitucional.
Paulo Bonavides reforça essa idéia de que os princípios constitucionais têm certo destaque:

Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, normas das normas. (BONAVIDES, 2003 apud TAVARES, 2003, p.26).

Bomfim (2008, p. 70) afirma que os princípios constitucionais dão unidade de harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. Servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie.
Esse fenômeno, o da colisão de princípios, existe. É natural que, em face de determinado caso concreto, mais de um princípio possa ser invocado e que os princípios implicados sejam contrários. Tal situação deve ser resolvida pela aplicação do princípio da proporcionalidade, onde o princípio menos valoroso em determinada situação cede espaço ao que é mais relevante.
Tavares (2003, p. 28) registra não haver hierarquia normativa entre os princípios constitucionais. O que existe são distinções axiológicas e valorativas a serem apuradas caso a caso.
Após essas considerações acerca dos princípios, mostra-se relevante discorrer um pouco sobre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade humana, visto que sua compreensão facilita o estudo do caso concreto.

1.2 Os direitos fundamentais.

O termo direitos fundamentais, segundo Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2006, p. 52), não é o único existente no direito constitucional e nas constituições a designar tais direitos. Existe uma série de outras denominações para isso, entre elas: liberdades individuais, liberdades públicas, liberdades fundamentais, direitos humanos, direitos da pessoa humana, direitos naturais ou direitos subjetivos.
Dimoulis e Martins (2006, p. 54), devido à amplitude semântica do termo direitos fundamentais, delimitam um conceito de forma bem completa, adequada ao estudo aqui proposto:
Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.

A completude da conceituação supratranscrita se dá na medida em que indica: os sujeitos da relação criada pelos direitos fundamentais (pessoa vs. Estado), a finalidade desses direitos (limitação do poder estatal para preservar a liberdade individual) e sua posição no sistema jurídico, definida pela supremacia constitucional.
David Araújo e Serrano Nunes Júnior (1999, p. 67-71) citam cinco características dos direitos fundamentais:

? Historicidade: possuem caráter histórico, nascendo com o Cristianismo, passando pelas diversas revoluções e chegando aos dias atuais;
? Universalidade: destinam-se, de modo indiscriminado, a todos os seres humanos.
? Limitabilidade: os direitos fundamentais não são absolutos (relatividade), havendo, muitas vezes, no caso concreto, confronto, conflito de interesses. A solução ou vem discriminada na própria Constituição ou caberá ao intérprete, ou magistrado, no caso concreto, decidir qual direito deverá prevalecer.
? Concorrência: podem ser exercidos cumulativamente.
? Irrenunciabilidade: o que pode ocorrer é o seu não-exercício, mas nunca a sua renunciabilidade.


José Afonso da Silva (1992, p. 185) aponta mais duas características:

? Inalienabilidade: como são conferidos a todos, são indisponíveis, não se pode aliená-los por não terem conteúdo econômico-patrimonial;
? Imprescritibilidade: prescrição é um instituto jurídico que somente atinge, coarctando, a exigibilidade dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso. Se são sempre exercíveis e exercidos, não há intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição.

Dimoulis e Martins (2006, p.60) destacam, também, outras três particularidades dos direitos fundamentais que traduzem a dificuldade de seu estudo na interpretação jurídica:

? Abstração e generalidade. Em primeiro lugar, as formulações da Constituição são muito abstratas e genéricas. Trata-se do fenômeno da baixa densidade normativa, que torna difícil decidir qual das partes envolvidas em um conflito está com a razão constitucional, já que interpretações conflitantes entre elas são autorizadas por um texto constitucional extremamente genérico.
? Relações entre direito constitucional e infraconstitucional. Muito freqüentemente os direitos fundamentais não podem ser implementados sem a intervenção do legislador infraconstitucional que os concretize.
? Tensão entre direito, economia e política. A aplicação dos direitos fundamentais envolve grandes interesses econômicos e políticos. Por isto, gera controvérsias que são dificilmente controláveis pelo direito. (grifo nosso).


Tais dificuldades tornam-se mais evidentes nos conflitos relacionados aos direitos fundamentais, onde os indivíduos e os grupos com interesses contrários tentam fundamentar esses interesses na Constituição. Esse tipo de discussão será explorado em tópico próprio, onde serão contrapostos o direito à proteção da saúde ao da dignidade da pessoa humana.
A doutrina clássica costuma classificar os direitos fundamentais em três gerações.
O Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), no Mandado de Segurança n. 22.164/SP (Diário da Justiça, Seção I, 17 de novembro de 1995, p. 39.206), essa classificação dos direitos fundamentais:

[...] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) ? que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais ? realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) ? que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas ? acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. (grifo nosso).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1995, p.57) resume o cerne dessas três gerações afirmando que "a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade".
Segundo Ana Paula de Barcellos (2008, p.129), as três gerações de direitos se complementam e contribuem para a realização da dignidade humana, que é traduzida pelo princípio da dignidade da pessoa humana. O mencionado princípio será estudado em tópico próprio.
Ainda no tocante às gerações dos direitos fundamentais, Pedro Lenza (2008, p. 526) traz à tona a existência de uma quarta geração, endossada por Norberto Bobbio (1992, p. 6):
? Direitos Humanos de quarta geração: referida geração de direitos decorreria dos avanços no campo da engenharia genética, ao colocarem em risco a própria existência humana, através da manipulação do patrimônio genético. (grifo nosso).

Cumpre registrar que o debate trazido nesta monografia se atém aos direitos das três primeiras dimensões de direitos fundamentais.

1.3 As Constituições Federais de 1946 e de 1988.

A compreensão das cartas magnas de 1946 e de 1988 e do contexto histórico pelo qual o país passava é de suma importância para o desenvolvimento deste trabalho. Isso porque foi durante o período de vigência da primeira, a CF/46, que a Lei Federal 610/49, que determinou o isolamento obrigatório dos enfermos de forma a separá-los do convívio familiar, foi publicada e revogada, e foi sob a tutela da segunda, a CF/88, que a Lei 11.750/07, que concede pensões vitalícias aos hansenianos isolados de forma compulsória pelo Estado.
Diante disso, pode-se perceber que as mencionadas cartas magnas, a de 1946 e a de 1988, guardam semelhanças entre si. Paulo Bonavides e Paes de Andrade (2004, p. 355-429) alertam que, tanto num caso como no outro, o país vinha de regimes ditatoriais ? o primeiro fora antecedido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas e o segundo pelos governos militares ? e a elaboração dessas constituições traduzia a esperança renovada de mudanças na forma de condução do Estado.
A Carta de 1946, em suma, foi marcada pela confirmação dos direitos de primeira dimensão e a afirmação de alguns da segunda, como a educação básica oferecida de forma gratuita e alguns direitos trabalhistas. Pode-se dizer que o ideal de liberdade (liberdade de culto e de pensamento), tão apregoado naquele texto constitucional, não era vivenciado pelo povo no dia-a-dia, ou seja, a teoria não correspondia à prática, seja pela falta de vontade política que não criou ferramentais necessários à concretização de normas abstratas ou pelas crises que permearam a mencionada constituição que não propiciaram um cenário adequado à aplicação do aludido ideal.
A Carta de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, confirmou e ampliou os direitos de primeira e segunda dimensões, além de trazer também os de terceira. Sua marca é a preocupação com a dignidade da pessoa humana e é repleta de normas programáticas de caráter princípiológico. Tal preocupação já pode ser percebida por sua forma estrutural, que traz, logo nos Títulos I e II, os princípios fundamentais constitucionais e os direitos e garantias fundamentais, diferentemente das constituições anteriores em que a estrutura privilegiava a organização do Estado e, em seguida, traziam a forma de organização e as competências dos três Poderes.
Flávia Piovesan (2003, p. 190) chama atenção para esse novo valor, em voga pela Carta de 1988, a dignidade da pessoa humana:

Neste sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional.
Considerando que toda a Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe doa unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular.
[...]
À luz desta concepção, infere-se que o valor da cidadania e dignidade dea pessoa humana bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. A partir dessa nova racionalidade, passou-se a tomar o direito constitucional não só como tradicional ramo político do sistema jurídico de cada Nação, mas sim, notadamente, como seu principal referencial de justiça. (grifo nosso).
Essa é a Constituição que estabelece definitivamente a obrigação do Estado para com o indivíduo no campo social. A saúde e a educação despontam como direitos públicos subjetivos e deveres estatais para com a coletividade, isto é, o Estado é sujeito passivo, aquele que se obriga a prestar, a atender e executar os direitos sociais, e a coletividade é o sujeito ativo, que se obriga a receber o produto da ação estatal.
















2 A SAÚDE PÚBLICA E A HANSENÍASE.

Este capítulo é divido em duas partes que são responsáveis por uma breve apresentação da história da saúde pública no Brasil, da hanseníase e dos tratamentos e medidas legislativas tomadas pelo Estado Brasileiro no seu controle e combate.

2.1 Saúde pública no Brasil e sua previsão constitucional.

A discussão deste trabalho monográfico gira em torno de como o Estado Brasileiro lidou com a saúde pública, mais especificamente no tocante aos portadores da hanseníase e seus familiares. Com base nisso, vale trazer à tona a análise de Cíntia Lucena (2004, p. 245-269) em seu artigo O direito à Saúde do Constitucionalismo Contemporâneo.
Lucena explica que, de forma geral, a intervenção estatal por meio de políticas públicas de saúde ocorreu entre o fim do século XIX e o início do século XX à conta das mudanças no modo de produção, quando a burguesia percebeu a produtividade dos trabalhadores estava diretamente relacionada à sua saúde.
A aludida articulista sustenta que, após a Primeira Grande Guerra (1914/1918), ganha força pelo mundo o Estado Social e com ele a consagração dos direitos sociais ? saúde, educação, previdência, transporte e habitação ? e econômicos, ambos considerados categorias de direitos fundamentais da pessoa humana, ao lado dos direitos individuais e políticos.
O Brasil acabou sofrendo influências dessa ideologia pós-guerra, de forma que a Constituição de 1934 institui as bases para o desenvolvimento do Estado Social, com repercussões importantes no direito à saúde. A mencionada constituição foi a primeira a trazer a saúde em seu texto e dispõe que se trata de uma matéria de competência concorrente entre a União e os Estados.
A outorga da Constituição de 1937, em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas, gerou um retrocesso na implementação de políticas públicas de saúde. O Brasil foi governado, quase que exclusivamente, por decretos-leis e não foi dada continuidade ao processo de descentralização dos serviços de saúde, passando essa matéria a ser de competência legislativa privativa da União. As pastas da saúde e da educação foram reunidas num novo ministério pelo Decreto n.19.402, de 14 de novembro de 1930, que criou uma Secretaria de Estado com a denominação de Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública. Tal órgão determinou uma remodelação dos serviços sanitários do país, com a intenção de garantir à burocracia federal o controle dos serviços de saúde, numa estratégia coerente com o centralismo político-administrativo proposto por Getúlio Vargas.
Essa nova organização do setor de saúde, explica Lucena (2004, p. 245-269), pode ser considerada como a anunciação do compromisso do Estado em zelar pelo bem-estar sanitário da população.
Um viés negativo da criação do novo ministério foi a exclusão quase que completa dos médicos das decisões sanitárias, que passaram a ser tomadas por políticos e burocratas, que não tinham muita intimidade com os problemas da saúde.
Com a deposição de Vargas, veio a Carta de 1946. Esse interregno ficou conhecido como o período de redemocratização, marcado pelas eleições diretas para os principais cargos políticos, pelo pluripartidarismo e pela liberdade da imprensa, dos partidos e dos sindicatos. Na área de saúde ela não trouxe avanços.
No segundo governo de Getúlio Vargas (1951/1954) foi criado o Ministério da Saúde pela Lei n. 1.920, de 25 de julho de 1953. O novo órgão, no entanto, contou com verbas irrisórias na década de 50, traduzindo o descaso das autoridades com a saúde do povo. Além do pouco apoio financeiro, a falta de funcionários especializados, de equipamentos apropriados, de postos de atendimento e de ânimo dos servidores marcou a ineficácia da atuação estatal nessa área. (LUCENA, 2004).
O golpe de estado de 1964, liderado pelas Forças Armadas, decretou o fim da democracia populista sob o pretexto de conter o avanço comunista, da corrupção e a garantia da segurança nacional. O Ministério da Saúde teve seu poder de atuação mais limitado ainda, ficando restrito à elaboração de projetos e programas. As tarefas sanitárias foram delegadas a outras pastas, em virtude de sua mínima participação no orçamento da União.
A Constituição de 1967 outorgava poderes à União para gerir a educação e a saúde. O Ministério da Saúde passou a privilegiar a saúde individual e não a saúde como um fenômeno coletivo. Os raros recursos destinados ao setor eram usados para o pagamento de serviços prestados por hospitais particulares à população desamparada. Isso determinou surtos de dengue, meningite e malária. Quando essas doenças tornavam-se epidêmicas, os governos militares recorriam à censura impedindo que os meios de comunicação alertassem a população sobre os riscos.
O governo, pelo Decreto-lei n. 72, de 21 de novembro de 1966, criou o Instituto de Previdência Social (INPS), unificando caixas e institutos de aposentadorias e pensões que estavam em dificuldades. (LUCENA, 2004)
Pela Carta de 1967, o Estado deveria apoiar as atividades privadas. Assim, a atuação estatal seria apenas suplementar aos serviços prestados pela medicina privada. O INPS firmou convênios com uma série de hospitais particulares do país inteiro para atender a massa trabalhadora. Os baixos valores pagos pelos serviços médicos, a demora na transferência dessas verbas do INSS para os hospitais conveniados determinou a fragilidade do sistema, completada com a insatisfação de médicos, funcionários e uma enormidade de notícias de fraude (cirurgias desnecessárias, internações falsificadas, etc.).
Apesar dos mencionados problemas e deficiências, os índices gerais de mortalidade diminuíram consideravelmente, o que não foi suficiente para tirar o país da lista de países mais enfermos da América Latina em 1979. O Brasil era superado em deficiências apenas pelo Haiti, Bolívia e Peru.
A constitucionalização do direito sanitário ocorre, efetivamente, com a Constituição de 1988. A saúde é reconhecida como um dos direitos fundamentais sociais. Isso possibilitou que todos os cidadãos brasileiros pudessem dela usufruir, tendo em vista que ela passou a constituir um direito público subjetivo, garantido pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
O artigo 194 da atual Carta Magna inclui a saúde no conjunto de ações compreendidas pela Seguridade Social e assegura a universalidade de cobertura e atendimento. O de número 196 traz a saúde como "direito de todos e dever do Estado" e o 198, define a saúde no sentido mais amplo de bem-estar e incorpora diretrizes de organização e funcionamento dos mais avançados sistemas de saúde, como: acesso universal e igualitário às ações e serviços, regionalização, hierarquização, unificação, descentralização, integração de técnicas e participação da comunidade. (LUCENA, 2004).
Os orçamentos da União, dos Estados e dos Municípios, pelo parágrafo primeiro do artigo 198 da CF/88, são as fontes de financiamento do SUS.
Ante o exposto, pode-se concluir que, no que tange a saúde pública, a Constituição de 1988 foi a primeira a considerá-la, de forma expressa, como obrigação do Estado de garanti-la de forma gratuita. Entretanto, como analisado por Lucena (2004), o Estado Brasileiro já assumira tal incumbência ao criar, em 1937, o Ministério da Educação e da Saúde, reconhecendo a importância e necessidade dessa matéria para o desenvolvimento do país. Logo, esse é o marco a partir do qual este trabalho vai considerar que o Poder Público passou a se responsabilizar pela saúde pública brasileira.
Desenhado o cenário da saúde pública brasileira, avança-se para a apresentação do histórico da hanseníase e das formas de tratamento adotadas no mundo e, mais especificamente, no Brasil.

2.2 Hanseníase, o caminho até a descoberta da cura.

Em 1897 aconteceu, em Berlim, a Conferência sobre a Lepra, um evento de repercussão mundial sobre os avanços e descobertas de cientistas e médicos sobre a lepra. Nessa ocasião, Gerhard Hansen, descobridor do bacilo de Hansen, apregoou que: 1) O isolamento dos doentes em sua própria casa contribuiria para um combate mais eficaz da doença; 2) Onde existem muitos pobres hansenianos, o isolamento feito apenas em casa não seria suficiente; 3) Cada caso deveria ser examinado individualmente e então decidir-se-ia pelo isolamento facultativo ou obrigatório. Percebe-se, em suma, que a política de isolamento era a mais indicada para o tratamento e controle da enfermidade (CUNHA, 2002).
Depois do mencionado evento sucederam-se uma série de outros, sempre congregando estudiosos do mundo inteiro, dedicados à descoberta da cura dessa moléstia, que trocavam experiências realizadas em seus respectivos países.
Até o final da década de 1930, a profilaxia da doença no mundo processou-se no seguinte tripé institucional: leprosários, dispensários e preventórios (educandários). Os leprosários eram destinados a resguardar enfermos; os dispensários eram responsáveis pelo atendimento dos contatos, pessoas suspeitas de terem contraído a doença; e os preventórios ou educandários eram incumbidos de criar e educar os filhos dos doentes internados. (ANDRADE, 1996).
Os primeiros grandes passos dados em direção à cura da doença foram dados no início da década de 1940, graças ao advento da sulfona. Isso permitiu que, aos poucos, o isolamento fosse sendo substituído pelo tratamento em regime ambulatorial. (GONÇALVES; MARZLIAK; NOGUEIRA, 1995).
O fim da década de 60 e início da de 70 também foram importantes. Descobriu-se novas drogas, a Clofazimina e a Rifampicina, que possibilitavam a cura num período de 2 a 5 anos de uso contínuo.
No início da década de 80 o tratamento da doença tornou-se mais eficaz e rápido (de 6 meses a 2 anos) pela combinação de três drogas: Dapsona, Clofazimina e Rifampicina. A esse esquema terapêutico dá-se o nome de Poliquimioterapia (PQT). O uso da PQT passou a ser recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com o objetivo de curar o indivíduo da infecção e interromper a transmissão do bacilo M.Leprae. (CAVALIERE; NASCIMENTO, 2007).
A PQT mata o bacilo tornando-o inviável e evita a evolução da doença e previne as incapacidades e deformidades causadas por ela. O bacilo morto é incapaz de infectar outras pessoas, rompendo a cadeia epidemiológica da doença. Dessa forma, logo no início do tratamento, a transmissão da doença é interrompida e, sendo, utilizado de forma correta e completa, garante a cura da doença. (BRASIL, 2002).

2.2.1 Hanseníase, história e formas de tratamento adotadas no Brasil até a descoberta da cura.

A hanseníase inexistia nas Américas antes do descobrimento desse continente. Os primeiros casos dessa doença no Novo Mundo foram registrados na Colômbia e eram de origem espanhola (BRASIL, 1950).
Souza-Araújo (1954) explica que esse flagelo foi importado para o Brasil com os colonizadores europeus (portugueses, espanhóis, holandeses e franceses) e com os escravos africanos.
A terapêutica mais empregada no Brasil para todos os tipos de doença existentes, inclusive a hanseníase, era baseada em plantas medicinais, com forte influência da medicina indígena. Com o tempo, foram acrescentadas as influências da medicina usada pelos jesuítas e africanos, que também se utilizavam de plantas nativas em larga escala. Até o início do século 19, essas eram as influências da medicina praticada no Brasil e no trato da hanseníase, em específico, foram tentadas várias formas de tratamento: banhos termais, banhos de lama, sangrias, choques elétricos, alimentação específica, aplicação da resina do caju nas feridas e até picadas de cobra.
No Rio de Janeiro, em 1916, aconteceu o I Congresso Americano de Lepra. Esse evento constatou a necessidade de: recensear os hansenianos de todos os estados; recolher as legislações anti-hansenianos em vigor à época; abrir colônias para combater o contágio; instituir plano uniforme, aplicado simultaneamente em todo território nacional; permitir, em certas condições, o isolamento domiciliar; fazer com que os doentes sejam tratados pelos médicos mais recomendáveis. (ANDRADE, 1996).
Em 1920 foi criado, pelo Decreto n. 3.987, de 2 de janeiro de 1920, o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), instituição que, pela primeira vez, organizou a atividade sanitária para a hanseníase, tentando por em prática as conclusões do congresso ocorrido quatro anos antes. (ANDRADE, 1996).
Nos anos 40, os processos de centralização política e administrativa se aceleraram sob o comando-maior de Vargas, entre 1934 e 1945. O Estado, visando tornar-se mais efetivo no combate à hanseníase, reorganizou o DNSP, criando o Serviço Nacional da Lepra (SNL), a quem caberia a coordenação do plano de combate à doença em todo o país. A política de atuação do SNL se sustentava sob o tripé: leprosários, dispensários e preventórios. (FARIA; MENEZES; SANTOS, 2008).
Em 1946, por orientação do DNSP e do Ministério da Educação e da Saúde (MES), o SNL realizou um censo de hansenianos em todo o país e o resultado desse censo mostrou um aumento constante do número de casos novos da doença. (ANDRADE, 1996).

2.2.2 Hanseníase, medidas legislativas brasileiras.

No tocante às medidas legislativas tomadas pelo Estado têm-se as seguintes enumeradas no Manual de Leprologia do Ministério da Saúde (1960):

Graças a CARLOS CHAGAS, em 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública do qual fazia parte a Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas (Decreto n.° 14354 de 15-9-20) foi expedida uma regulamentação adequada com o fim de se combater a endemia, que até então não merecera dos poderes públicos a devida atenção, o que determinou a progressão do mal cujas conseqüências ainda hoje estamos sentindo. Até a decretação da Lei 610 de 13 de janeiro de 1949 a legislação federal sôbre profilaxia da lepra foi a constante do Regulamento baixado com o Decreto n.° 16.300 de 31 de dezembro de 1923, no qual as normas técnicas foram calcadas em conhecimentos científicos, sendo inspiradas pelo professor EDUARDO RABELO.
Outra medida legislativa complementar foi a Lei 1045 de 2-1-1950 sôbre concessão de altas a doentes de lepra.
Convém ressaltar que o Regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública (decreto n.° 16.300 de 31-12-23) somente tinha sua aplicação na Capital Federal, nos territórios e, por meio de acôrdos, nos Estados de conformidade com a Constituição em vigor. Assim, os Estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, etc. expediram seus regulamentos próprios bem formulados e outros, como Pernambuco, adotaram a legislação federal.
Aliás Minas por acôrdo com a União passou a adotar o Regulamento Federal. (grifo nosso).

Com base no texto supramencionado, é importante repisar a Lei n. 610/49 e destacar outras legislações que precisam ser lembradas:
? Lei n. 610, de 13/1/1949 ? preocupado com a espantosa velocidade com que a doença se alastrava pelo país, o Presidente da República, General Eurico Gaspar Dutra, publicou o mencionado normativo que fixava normas para a profilaxia da lepra. A referida norma determinou não só a internação compulsória de todos os hansenianos, como decretou o afastamento obrigatório de todos os filhos de doentes de lepra, recém-nascidos ou não, de seus respectivos pais à conta do alto risco de contágio.
? Decreto do Conselho de Ministros n. 968, de 7/5/1962 ? baixa normas técnicas especiais para o combate à lepra no país e dá outras providências e põe fim ao isolamento compulsório dos hansenianos, permitindo sua circulação pelas cidades. Previa, entretanto, situações em que tais enfermos poderiam sofrer restrições em sua liberdade.
? Lei n. 5.511, de 15/10/1968 ? submete a Campanha Nacional Contra a Lepra ao regime previsto na Lei nº 5.026, de 14 de junho de 1966, e revoga expressamente a Lei 610/49.
? Decreto n. 165, de 14/5/1976 ? determina a alteração da denominação da doença de lepra para hanseníase, na tentativa de minorar o sofrimento decorrente do preconceito e o estigma dos enfermos da hanseníase.
? Lei n. 9.010, de 29/3/1995 ? determina a não-utilização do termo lepra e seus derivados em documentos oficiais da Administração Pública. Em seu lugar, devem ser utilizados o vocábulo hanseníase e seus derivados.
? Lei 11.520, de 18/9/2007 ? foi convertida na aludida lei a Medida Provisória n. 373. A mencionada norma dispõe sobre a concessão de pensão especial às pessoas atingidas pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e internação compulsória até 31 de dezembro de 1986. O valor da referida pensão, que é vitalícia, mensal e intransferível, concedida a título de indenização especial, foi fixado em R$750,00.
No capítulo seguinte, além de apresentar um arremedo doutrinário e jurisprudencial acerca da responsabilização civil do Estado, algumas das supracitadas legislações (Lei n. 610/49, o Decreto do Conselho de Ministros n. 968/62 e a Lei n. 5.551/68) serão analisadas sob o prisma da possibilidade de responsabilização estatal na saúde pública, especialmente, no tocante ao tratamento dispensado aos hansenianos e seus familiares. Será estudada, também, a validade da Lei n. 11.520/2007, que adveio com a proposta de reparar uma possível falha estatal, e da luta do MORHAN que visa à ampliação dos efeitos do mencionado normativo de forma a abarcar os antigos habitantes dos preventórios ou educandários.




3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E SUA APLICAÇÃO NO CASO CONCRETO.

Odete Medauar (2009) ensina que a responsabilidade civil do Estado diz respeito à obrigação a este imposta de reparar danos causados a terceiros em decorrência de suas ações ou omissões.

3.1 Dano e indenização.

Para se falar em responsabilidade civil há de se falar também de dano ou prejuízo, ou seja, que um sujeito só pode ser civilmente responsável se sua conduta, ou outro fato, acometer dano a terceiro. Não havendo dano, não há que se falar em responsabilidade civil.
José dos Santos Carvalho Filho (2010) afirma a existência de duas espécies de dano: o dano material (ou patrimonial) e o moral. O primeiro é aquele em que o fato causa efetiva lesão ao patrimônio do indivíduo atingido. Já o segundo, é o que atinge as esferas interna, moral e subjetiva do lesado, provocando-lhe sofrimento.
Pode-se dizer que todo dano gera responsabilidade e que toda responsabilidade, por sua vez, enseja determinada sanção, cuja natureza varia em função do tipo de responsabilidade. A responsabilidade penal implica na aplicação de uma sanção penal; a civil, numa penalização de caráter privado e a administrativa importa punição administrativa. Se determinado fato acarreta responsabilidade de mais de uma natureza, as respectivas sanções são aplicáveis de forma cumulativa. A sanção aplicável na responsabilização civil é a indenização que se configura como o montante pecuniário que representa a reparação dos prejuízos causados pelo responsável.
Cumpre registrar que nos casos de responsabilidade civil envolvendo o Estado, existem três sujeitos: o Estado, o lesado e o agente do Estado. Vale dizer que o Estado, como pessoa jurídica, é um ser intangível e somente se faz presente no mundo jurídico por intermédio de seus agentes, pessoas físicas cuja conduta é a ele imputada, ou seja, o Estado, por si só, não pode causar danos a ninguém. Nas palavras de Cavalieri Filho (2008, p. 249):

Cedo constatou-se, todavia, que o Estado não é representado por seus agentes, mas age através deles e dos órgãos em que atuam. Como pessoa jurídica que é, o Estado não tem vontade nem ação, no sentido de manifestação psicológica e vida anímica própria. Estas, só os seres físicos as possuem. Não podendo agir diretamente, por não ser dotado de individualidade fisiopsíquica, a vontade e a ação do Estado são manifestadas desta qualidade atuem em seus órgãos.

3.2 Evolução da responsabilidade civil do Estado.

Conforme os ensinamentos de Sérgio Cavalieri Filho (2008, p. 248), por muitos séculos prevaleceu a teoria da irresponsabilidade do Estado, que era justificada pela crença de que o monarca ou o Estado não erravam; pela idéia de que o Estado agia para atender ao interesse de todos e não poderia ser responsabilizado por isso; pelo fundamento de que o Estado era soberano e, por esse motivo, um indivíduo não poderia confrontá-lo. Expressões como o rei não erra, o Estado sou eu e o que agrada ao príncipe tem força de lei, são marcas desse período.
Medauar (2009, p. 375) explica que, com o passar dos tempos, o reconhecimento dos direitos pelo Estado e com a difusão da idéia de submissão do Estado ao direito, essa teoria perdeu espaço na maioria das nações.
Num segundo momento na linha evolutiva da responsabilização civil do Estado, ganhou corpo uma teoria inspirada no direito civil que diferenciava os atos estatais em dois tipos: os atos de gestão e os atos de império. Carvalho Filho (2010, p. 595) esclarece que, ao praticar os referidos atos de gestão, o Estado teria atuação equiparada à dos particulares em relação aos seus empregados ou prepostos e poderia ser responsabilizado, desde que houvesse culpa do agente. Já no que se refere aos atos de império, intimamente vinculados à soberania, o ente estatal estaria isento de responsabilidade.
No próximo estágio, cogitou-se responsabilizar o Estado somente se fosse comprovado o dolo ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia) do agente público causador do dano, o que representava ônus injusto para a vítima e dificultava a responsabilização estatal.
A etapa seguinte foi marcada pela transferência do sentido da culpa para a esfera administrativa, surgindo a idéia de que o Estado repararia o dano se fosse comprovado o mau funcionamento, o não-funcionamento do serviço ou a falha da Administração (culpa publicista ou culpa anônima). Essa teoria trazia para a vítima o encargo da prova do mau funcionamento ou da falha, o que era muito difícil de realizar.
A teoria que prevalece nos dias de hoje é a teoria do risco administrativo. Essa teoria admite que, embora a Administração realize atividades para atender ao interesse de toda a população, é possível que alguns integrantes dessa população sofram danos por condutas ativas ou omissivas dos agentes estatais. Dessa forma, se todos se beneficiam das atividades administrativas, todos devem compartilhar do ressarcimento dos danos causados a alguns. É a partir daí que se atribui ao Estado o encargo de ressarcir os danos que seus agentes, nessa qualidade, por ação ou omissão, causarem a terceiros.

3.3 A responsabilidade do Estado no Direito Brasileiro

Cavalieri Filho (2008, p. 254) afirma que o Brasil não passou pela fase da irresponsabilidade estatal e que, mesmo sem uma disposição legal específica, a tese de responsabilização do Poder Público sempre foi aceita como princípio geral e fundamental de Direito.
O mencionado autor destaca o artigo 178 da Constituição do Império (1824) que estabelecia que "os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis aos seus subalternos". Traz à tona, ainda, que a Constituição Republicana (1891), em seu artigo 79, trouxe disposição idêntica, responsabilizando os funcionários públicos pelos abusos e omissões em que incorressem no exercício dos seus cargos.
Tais dispositivos, segundo o autor, nunca foram considerados como excludentes da responsabilidade do Estado, objetivando, única e exclusivamente, o funcionário. O entendimento que sempre prevaleceu foi o de haver solidariedade do Estado em relação aos atos de seus agentes. Essa responsabilidade, entretanto, era fundada na culpa civil, se fazia necessária a prova da culpa do funcionário. O Estado só respondia pelos danos decorrentes de atos praticados por seu funcionário se ficasse provado este tivesse agido com negligência, imprudência ou imperícia.
O Código Civil de 1916 foi o primeiro dispositivo legal a reduzir a termo a responsabilidade civil do Estado em seu artigo 15:

Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

Di Pietro (2008, p. 600) alinha-se a Cavalieri Filho ao registrar que o entendimento doutrinário majoritário é no sentido de que o Código Civil de 1916 teria adotado a teoria civilista da responsabilidade subjetiva.
A Constituição de 1934 acolheu o princípio da responsabilidade solidária entre o Estado e funcionário, ao dispor no artigo 171 que os funcionários seriam responsáveis solidariamente com a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos. Esse dispositivo foi repetido na Carta de 1937.
Cavalieri Filho (2008, p. 255) afirma que sob a influência dos pensamentos de ilustres juristas, entre eles Rui Barbosa, e dos votos dos Ministros Orozimbo Nonato e Filadelfo Azevedo proferidos no Supremo Tribunal Federal (STF), a responsabilidade objetiva do Estado chegou primeiro à jurisprudência, para depois ser inserida no texto constitucional. E foi a Carta de 1946, que já tem merecido destaque neste trabalho, a responsável por essa inovação. A mencionada constituição assim dispôs sobre essa modalidade de responsabilidade:

Art 194 - As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.
Parágrafo único - Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes. (grifo nosso).

Cavalieri Filho e Di Pietro, mais uma vez, concordam ao anotarem que a menção à culpa surgia apenas no seu parágrafo único, para determinar a ação regressiva do ente público contra seu funcionário, o que indica que, se somente para a ação regressiva do Estado contra o servidor é exigida a prova de culpa e dolo, é porque para a ação da vítima contra o Estado esses elementos subjetivos são prescindíveis, ou seja, desnecessários.
As Constituições de 1967 e 1969 repetem a referida norma em seus artigos 105 e 107, respectivamente, ressaltando expressamente que a ação regressiva cabe em caso de dolo ou culpa.
Com base nisso, os mencionados autores reforçam que a responsabilidade civil do Estado Brasileiro passou a ser objetiva, com base no risco administrativo, onde não se cogita a culpa, bastando, apenas, ser evidente a relação de causalidade. Isto é, evidenciando que o dano sofrido pelo particular é conseqüência da atividade administrativa, torna-se desnecessário pesquisar a ocorrência da culpa do funcionário ou, mesmo, da falta anônima do serviço.
Em seguida, foi a vez da Carta de 1988 afirmar a responsabilidade objetiva do Estado no artigo 37, §6º:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (grifo nosso).


Carvalho Filho (2010, p. 605) é bem esclarecedor ao explicar o dispositivo constitucional supratranscrito. Segundo esse doutrinador, a característica marcante da responsabilidade objetiva do Estado é a desnecessidade de o lesado pela conduta estatal ter de provar a existência da culpa do agente ou do serviço. Conforme seus ensinamentos, para que se configure esse tipo de responsabilidade, basta a existência de três pressupostos: (a) a ocorrência do fato administrativo, ou seja, qualquer conduta omissiva ou comissiva, legitima ou ilegítima, singular ou coletiva atribuída ao Poder Público ? mesmo que o fato decorra da má escolha do agente (culpa in elegendo) ou pela má fiscalização de sua conduta (culpa in vigilando); (b) a existência do dano, e (c) o nexo causal (relação de causalidade) entre o fato administrativo e o dano.
A jurisprudência do STF segue a mesma linha de entendimento da doutrina no tocante à responsabilidade objetiva estatal:

AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO n. 495.740-0 / DF.
E M E N T A: RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - ELEMENTOS ESTRUTURAIS - PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA INCIDÊNCIA DO ART. 37, §6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ? TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO - INFECÇÃO POR CITOMEGALOVÍRUS - FATO DANOSO PARA O OFENDIDO (MENOR IMPÚBERE) RESULTANTE DA EXPOSIÇÃO DE SUA MÃE, QUANDO GESTANTE, A AGENTES INFECCIOSOS, POR EFEITO DO DESEMPENHO, POR ELA, DE ATIVIDADES DESENVOLVIDAS EM HOSPITAL PÚBLICO, A SERVIÇO DA ADMINISTRAÇÃO ESTATAL - PRESTAÇÃO DEFICIENTE, PELO DISTRITO FEDERAL, DE ACOMPANHAMENTO PRÉ-NATAL - PARTO TARDIO - SIMDROME DE WEST - DANOS MORAIS E MATERIAIS - RESSARCIBILIDADE - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
- Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o "eventus damni" e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente publico, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Publico que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Precedentes.
- A omissão do Poder Público, quando lesiva aos direitos de qualquer pessoa, induz a responsabilidade civil objetiva do Estado, desde que presentes os pressupostos primários que lhe determinam a obrigação de indenizar os prejuízos que os seus agentes, nessa condição, hajam causado a terceiros. Doutrina. Precedentes.
- A jurisprudência dos Tribunais em geral tem reconhecido a responsabilidade civil objetiva do Poder Publico nas hipóteses em que o "eventus damni" ocorra em hospitais públicos (ou mantidos pelo Estado), ou derive de tratamento médico inadequado, ministrado por funcionário público, ou, então, resulte de conduta positiva (ação) ou negativa (omissão) imputável a servidor público com atuação na área médica.
[...]
- Configuração de todos os pressupostos primários determinadores do reconhecimento da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, o que faz emergir o dever de indenização pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido. (grifo nosso).

RECURSO EXTRAORDINÁRIO n. 109.615 / RJ.
E M E N T A: INDENIZAÇÃO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO - PRESSUPOSTOS PRIMÁRIOS DE DETERMINAÇÃO DESSA RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO CAUSADO A ALUNO POR OUTRO ALUNO IGUALMENTE MATRICULADO NA REDE PÚBLICA DE ENSINO - PERDA DO GLOBO OCULAR DIREITO - FATO OCORRIDO NO RECINTO DE ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL - CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO MUNICÍPIO - INDENIZAÇÃO PATRIMONIAL DEVIDA - RE NÃO CONHECIDO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. - A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. - Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 1 31/417). - O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50). RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO POR DANOS CAUSADOS A ALUNOS NO RECINTO DE ESTABELECIMENTO OFICIAL DE ENSINO. (grifo nosso).

RECURSO EXTRAORDINÁRIO n. 215.981 / RJ.
EMENTA: - Recurso extraordinário. Responsabilidade civil do Estado. 2. Acórdão que proveu parcialmente a apelação e condenou o Estado do Rio de Janeiro ao pagamento de indenização correspondente às despesas de funeral comprovadas. 3. Pretensão de procedência da demanda indenizatória. 4. O consagrado princípio da responsabilidade objetiva do Estado resulta da causalidade do ato comissivo ou omissivo e não só da culpa do agente. 5. Recurso conhecido e provido para condenar o Estado do Rio de Janeiro a pagar pensão mensal à mãe da vítima, a ser fixada em execução de sentença. (grifo nosso).

Os julgados do STJ perfilham-se ao da Suprema Corte:

EDcl no REsp n. 922.951 / RS.

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO DOS AUTORES. DANOS MATERIAIS CUMULAÇÃO COM PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. 2/3 RENDIMENTOS DA VÍTIMA. FILHOS MENORES ATÉ 25 ANOS DE IDADE. PRECEDENTES DESTA CORTE. RECURSO DA UNIÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ARTIGO 37, § 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NEXO DE
CAUSALIDADE. DANOS MORAIS. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. INEXISTÊNCIA DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACERCA DA MATÉRIA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC.
[...]
10. In casu, restou assentado no acórdão proferido pelo Tribunal a quo, verbis: A responsabilidade da União pelo ressarcimento dos danos causados encontra amparo nas disposições do art. 37, § 6º, da CF, não sendo excluída por ter havido falha humana do condutor da aeronave. Até porque, esse executava o pouso de aeronave com pane hidráulica, pela primeira vez e na condição de aprendiz, sendo esperado que houvesse um mínimo de segurança para esse tipo de treinamento, viabilizando atuação no sentido de evitar o acidente, que ocasionou a morte do esposo e pais dos Autores. Sobre a responsabilidade civil do Estado em casos como esse, Alexandre de Morais leciona que: A Constituição Federal prevê que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Assim, a responsabilidade civil das
pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva. Essa responsabilidade objetiva exige a ocorrência dos seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal.'
Caracterizando o nexo causal entre a atuação do agente público e o acidente seguido de morte do esposo e pai dos Autores, surge a obrigação da União em reparar o dano. (fls. 256v e 257).
[...]
14. Recurso Especial da União não conhecido. Recurso Especial dos autores parcialmente provido para fixar a pensão mensal à título de danos materiais em 2/3 (dois terços) do soldo da vítima, devida aos filhos menores até o limite de 25 (vinte e cinco) anos de idade. (grifo nosso).

REsp 1.109.303 / RS.
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MILITAR. VÍTIMA DE HOMICÍDIO EM QUARTEL. SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA PROFERIDA PELA JUSTIÇA MILITAR FEDERAL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ARTIGO 37, § 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. NEXO DE CAUSALIDADE. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. EXORBITÂNCIA. INEXISTÊNCIA. JUROS MORATÓRIOS. CABIMENTO. TEMPUS REGIT ACTUM.
[...]
11. In casu, restou assentado no acórdão proferido pelo Tribunal a quo: "A responsabilidade objetiva do Estado está inserida no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, nos seguintes termos: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa." Da análise dos autos, resta incontestável o fato de que a presente ação versa sobre a responsabilidade objetiva. Fundada na teoria do risco administrativo, a responsabilidade objetiva independe da apuração de culpa ou dolo, ou seja, basta estar configurada a existência do dano, da ação ou omissão e do nexo de causalidade entre ambos. Assim, demonstrado o nexo causal entre o fato lesivo imputável à administração e o dano, exsurge para o ente público o dever de indenizar o particular, mediante o restabelecimento do patrimônio lesado por meio de uma compensação pecuniária compatível com o prejuízo. Não se perquire acerca da existência ou não de culpa da pessoa jurídica de direito público porque a responsabilidade, neste caso, é objetiva, importando apenas o prejuízo causado a dado bem tutelado pela ordem jurídica.(...)"
[...]
15. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido. (grifo nosso).

A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais da 2ª e 3ª regiões em ações concernentes à saúde também está alinhada aos entendimentos das mencionadas Cortes Superiores:
TRF2ª ? AO 2007.51.01.000108-0
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO ? CIVIL ? RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO ? ACIDENTE SOFRIDO NO INTERIOR DE HOSPITAL PÚBLICO - DANOS MATERIAIS E MORAIS ? AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO NEXO DE CAUSALIDADE - INDENIZAÇÃO INDEVIDA. 1- A responsabilidade objetiva independe da comprovação de culpa ou dolo, ou seja, basta estar configurada a existência do dano, da ação ou omissão e do nexo de causalidade entre ambos (art. 37, §6º, da CF/88). 2 ? Ante o conjunto probatório trazido aos autos, ausente, na hipótese, nexo de causalidade entre o acidente que provocou o ferimento na Autora e qualquer ato omissivo ou comissivo por parte da Administração. 3 ? Não restando nos autos qualquer despesa ou ônus de origem material, deve ser afastada a indenização por dano material, pois, para ser indenizável, o dano deve ser certo, não sendo passíveis de indenização os danos hipotéticos. 4 ? Ante a ausência do nexo de causalidade, incabível também a indenização por danos morais. 5 ? Apelação improvida. Sentença confirmada.
TRF2ª ? AO 1995.51.02.050442-1
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 37, § 6º. CIRURGIA OFTALMOLÓGICA (LESÃO CORNEANA DE OLHO DIREITO COM PERDA DE VÍTREO). PARADA CARDÍACA. MORTE. NEXO DE CAUSALIDADE. CARACTERIZAÇÃO. DANOS MATERIAL E MORAL DEVIDOS. [...]. 4-) Os vários incidentes ocorridos durante o período em que o filho dos autores esteve hospitalizado permitem concluir que a morte dele teve relação com as más condições do hospital, o que basta para que se tenha por caracterizada a responsabilidade objetiva do Estado. Apesar de não haver como se atribuir a responsabilidade pelo óbito do paciente aos profissionais da saúde que o assistiram, não se tem dúvida quanto à responsabilidade do Estado, à vista da inquestionável precariedade do hospital, que justifica a referência do magistrado ao "deficiente atendimento hospitalar", à "falta de recursos materiais e humanos", ao "defeito do aparelho respiratório", bem assim ao fato de que "não havia plantonista" naquele nosocômio em situações de extrema urgência. Quanto à eventual negligência, imprudência ou imperícia da equipe médica ou de enfermagem, nada obsta que seja investigada pela Universidade em ação própria.
TRF2ª ? AO 2005.51.01.004322-2
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PROCESSUAL CIVIL. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. CONTAMINAÇÃO DE HEMOFÍLICOS COM O VÍRUS HIV (AIDS) E HCV (HEPATITE C). OMISSÃO ESTATAL NO CONTROLE DO SANGUE. DANO MORAL CONFIGURADO. 1. No caso de contaminação por doenças letais, o dano se estende pelo decurso do tempo, tendo, a toda evidência, um caráter permanente. Portanto, não se vislumbra a incidência da prescrição quinquenal. 2. O art. 196, da Lei Maior, assevera que a saúde é direito de todos e dever do Estado, competindo, na forma do art. 197, primordialmente ao Poder Público a execução de ações e serviços que garantam ao cidadão, em última análise, o direito à vida. No específico caso dos portadores do vírus HIV, a questão toma colorido ainda mais intenso, diante da malignidade da doença que lhes acomete e da permanente situação de risco a que se acha submetida a vida dos mesmos. Igualmente, os portadores do vírus HCV (Hepatite C) têm sua qualidade de vida comprometida ao extremo. 3. [...]. 4. Informada pela teoria do risco, a responsabilidade estatal se apresenta sob a forma de responsabilidade objetiva. Há que se comprovar o nexo de causalidade entre a falha administrativa e o dano sofrido pela vítima. Isso porque aquele que avoca para si a responsabilidade sobre uma determinada atividade deve assumir os riscos e reparar os danos dela decorrente. Obviamente a atividade a que nos referimos é o fornecimento da saúde, insculpido na Constituição. Comprovado nos autos à saciedade o nexo de causalidade entre a omissão do Poder Público na fiscalização do sangue quando da contaminação dos apelantes e o efetivo diagnóstico de que eles contraíram as doenças, fazem jus à compensação do dano moral experimentado. 5. Recurso a que se dá parcial provimento.
TRF 3ª ? AO 2000.03.99.033600-0
DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL E OBJETIVA DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR ERRO E DANO CIRÚRGICO IRREVERSÍVEL. MÉDICO E HOSPITAL CONVENIADOS AO ANTIGO INPS ANTES DA LEI Nº 6.439/77. PROPOSITURA DA AÇÃO NA VIGÊNCIA DA NOVA LEGISLAÇÃO. APELAÇÃO DO INSS APENAS COM PRELIMINAR DE CARÊNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA, POR SER A UNIÃO A SUCESSORA DO INAMPS. RELATOR VENCIDO. VOTO DA MAIORIA NO SENTIDO DA LEGITIMIDADE PASSIVA DO INSS, APESAR DE TER SIDO O DANO CAUSADO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE. MÉRITO JULGADO POR FORÇA EXCLUSIVA DE REMESSA OFICIAL. PROVA DA CONDUTA ESTATAL (SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE) E DO DANO (HEMIPLEGIA ESQUERDA TOTAL), VÍNCULO CAUSAL (DANO DECORRENTE DA CIRURGIA). [...]. 6. A internação ocorreu em hospital credenciado pelo antigo INPS, assim como a cirurgia que foi dirigida por médico a serviço da autarquia, estando presente, portanto, a causa para a discussão da responsabilidade civil, por dano causado por erro médico ou má prestação do serviço público de saúde. [...]. 8. Para atestar a relação de causalidade entre conduta estatal e dano sofrido pelo autor, constam dos autos, além dos documentos de internação e cirurgia, um minucioso relatório médico, elaborado pelo Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo - IMESC, com descrição e identificação do autor, histórico e antecedentes pessoais e familiares, exame físico, parecer psiquiátrico com histórico, descrição, discussão e conclusão e, por fim, resposta aos quesitos. [...] 10. O dano e a conduta estatal encontram-se vinculadas por nexo de causalidade, nada existindo a romper com tal relação de causa e efeito e, por outro lado, a fixação de uma pensão mensal, no valor estipulado, não afronta qualquer disposição legal, passível de reforma em sede de remessa oficial, assim, igualmente, quanto aos acessórios e o próprio valor da verba honorária arbitrada.

É com esse conceito doutrinário e jurisprudencial acerca da possibilidade de responsabilização civil do Estado que avançamos neste capítulo para estudar o tratamento dispensado pelo Poder Público aos indivíduos acometidos pela hanseníase e seus familiares.

3.4 Marco inicial da responsabilidade do Estado Brasileiro na saúde pública.

Preliminarmente à discussão do caso concreto ? possibilidade de se responsabilizar o Poder Público pelo tratamento dispensado aos hansenianos e seus filhos ? é preciso identificar, na história da saúde pública brasileira, a partir de quando o Estado assumiu para ele essa responsabilidade.
A principal forma de se apurar as responsabilidades de um Estado é por intermédio da análise de sua Carta Política, que nada mais é que uma declaração de suas intenções para com a sociedade. No primeiro capítulo deste trabalho, foi realizada uma análise comparativa entre as constituições de 1946 e a de 1988 e pôde-se perceber que, apesar de possuírem alguns aspectos em comum, no tocante ao momento histórico-político que o país atravessava no momento de suas respectivas publicações, no que tange à saúde pública, no entanto, a primeira apenas reservava à União o poder de legislar sobre esse tema, enquanto a segunda, traz em seu bojo, de forma expressa, que a saúde pública é direito do povo e obrigação do Estado. Essa linha de raciocínio poderia nos conduzir, de forma equivocada, à conclusão de que, somente a partir de 1988, o Poder Público teria assumido a responsabilidade sobre a saúde pública para com sua população. Logo, não haveria motivos para que o Estado Brasileiro viesse a responder civilmente por fatos pretéritos a essa data.
Entretanto, no capítulo segundo, onde foi traçado um breve histórico da saúde pública no Brasil, pôde-se notar que a responsabilidade estatal sobre essa temática foi assumida via decreto do então Presidente da República Getúlio Vargas, que percebeu a necessidade de o Estado firmar compromisso com a sociedade em relação a essa demanda. O Decreto 19.402, de 14 de novembro de 1930, criou o Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública. Tal normativo infraconstitucional, além de instituir esse novo órgão, destinou-lhe estrutura e pessoal para o desempenho de suas atividades, como é possível apurar da leitura de alguns de seus artigos:

Art. 1º Fica criada uma Secretaria de Estado com a denominação de Ministério dos Negócios da Educação e Saude Pública, sem aumento de despeza.
Art. 2º Este Ministério terá a seu cargo o estudo e despacho de todos os assuntos relativos ao ensino, saude pública e assistência hospitalar.
[...]
Art. 5º Ficarão pertencendo ao novo Ministério os estabelecimentos, instituições e repartições públicas que se proponham à realização de estudos, serviços ou trabalhos especificados no art. 2º, como são, entre outros, o Departamento do Ensino, o Instituto Benjamim Constant, a Escola Nacional de Belas Artes, o Instituto Nacional de Música, o Instituto Nacional de Surdos Mudos, a Escola de Aprendizes Artífices, a Escola Normal do Artes e Ofícios Venceslau Braz, a Superintendência dos Estabelecimentos do Ensino Comercial, o Departamento de Saude Pública, o Instituto Osvaldo Cruz, o Museu Nacional e a Assistência Hospitalar.
Art. 6º Será aproveitado todo o pessoal, nos termos do decreto n. 19.398, de 11 de novembro corrente.

Esse é, então, o marco da responsabilidade do Estado Brasileiro no que se refere à saúde pública. Ou seja, a partir de 14 de novembro de 1930, data da publicação do mencionado decreto, ação ou omissão de conduta exigível da Administração na prestação de serviço sanitário, pode acarretar, como já registrado por Yussef Said Cahali (2007, p. 217), responsabilidade civil do Estado pelos danos decorrentes da referida ação ou omissão.

3.4.1 Descaso do Estado no trato da saúde pública.

Em 1930, data em que a saúde pública passou a ser de responsabilidade estatal, o Brasil ainda era uma República Democrática pouco madura e sem experiências suficientes na área social que lhe assegurassem sucesso em suas iniciativas nesse setor. Nada mais natural que ocorressem algumas impropriedades no trato dessa nova demanda social, à conta de ser algo plenamente incipiente. Entretanto, o que se verificou não foi a simples ocorrência de alguns deslizes na promoção de serviços sanitários, mas sim, um completo descaso do Estado em relação a essa temática.
Um bom exemplo do mencionado descaso estatal para com esse novo compromisso, a saúde pública, que teve como marco inicial a criação do Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública (1930), foi o atraso na publicação de uma lei que estabelecesse normas gerais de defesa e proteção da saúde. A Lei n. 2.312, de 3 de setembro de 1954, nota-se 24 anos depois do mencionado marco, foi o normativo que, além de traçar regras gerais no trato da saúde, pela primeira vez, de forma expressa, registrou ser dever do Estado, bem como da família, a defesa e a proteção da saúde do indivíduo. O legislador, no penúltimo artigo da referida lei, assumiu o compromisso de regulamentá-la em 120 dias, o que só veio a acontecer 7 anos depois, com a publicação do Decreto n. 49.974-A, de 21 de janeiro de 1961, que ficou conhecido como o Código Nacional de Saúde.
Sabe-se que no trato da demanda saúde, é necessária a prestação contínua e presente do responsável por esse serviço. Sendo o Estado aquele que se propôs a prestá-la, deveria Ele atuar, de forma perene, independentemente da alternância de Presidentes da República e suas respectivas políticas de governo, afinal de contas, saúde pública é política estatal e não governamental.
Com base nesse pensamento, passemos a estudar a Lei 610, de 13 de janeiro de 1949, que, dentre outras providências, visando a profilaxia da hanseníase, determinou o isolamento dos doentes em leprosários ou hospitais-colônia e a internação de seus filhos em preventórios ou educandários, e que ensejou a publicação da Lei 11.520, de 18 de setembro de 2007, responsável pela indenização especial àqueles que foram isolados. Será desenvolvida, também, uma análise acerca da viabilidade de se estender àqueles que foram internados em preventórios os efeitos desse normativo, no tocante à concessão de pensão especial.

3.4.2 Das normas nacionais de combate à hanseníase.

A leitura de artigos científicos da época e o estudo da Lei n. 610, de 13 de janeiro de 1949, que fixou normas para profilaxia da lepra, e da Lei n. 5.511, de 15 de outubro de 1968, que a revogou, como de suas respectivas exposições de motivos foram fundamentais para o esclarecimento de questões acerca do tratamento dispensado pelo Estado aos hansenianos e seus familiares.
Convém registrar que, segundo o Manual de Leprologia do Ministério da Saúde (RJ, 1960), o primeiro normativo federal que tratou da doença foi o Decreto 16.300, de 31 de dezembro de 1923, que dispunha sobre o Regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Entretanto, dada a organização política do país nesse período, apesar de se tratar de norma federal e o DNSP levar em seu nome o título de Nacional, o aludido decreto só tinha aplicação na Capital Federal (Rio de Janeiro, à época), nos territórios e, por meio de acordos, nos estados federados que, em sua maioria, já possuíam regulamentos próprios no tocante à doença. A necessidade de descentralização de serviços públicos foi, aos poucos, se tornando evidente e foi efetivada de vez anos mais tarde com o Decreto-lei 200, 25 de fevereiro de 1967.
Com isso, reafirmamos a tese de que o marco inicial da responsabilidade estatal para com a saúde pública é 1930, com a criação do Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública, a partir de quando a saúde passou a ser pensada de forma nacional e sistêmica.
Dessa forma, partimos para o estudo da Lei 610/1949, que fixou normas de profilaxia da hanseníase de forma a atribuir-lhe o status de primeiro normativo que, realmente, foi adotado em todo território nacional. Analisaremos nos subtópicos seguintes alguns pressupostos que ensejam a responsabilidade estatal no trato dos hansenianos isolados de forma compulsória e de seus filhos internados em preventórios.

3.4.2.1 Saúde Pública versus Liberdade Individual.

A exposição de motivos da referida Lei 610/49 traz o parecer favorável do Ministro da Educação e Saúde. Nesse documento, aquela autoridade discorreu sobre as dificuldades em lidar com a hanseníase, tendo em vista a coexistência do Regulamento do DNSP e de normas estaduais de combate à doença, muitas vezes divergentes entre si, e pregou a necessidade de se editar uma lei específica para o combate à doença, a exemplo do ocorrido com a febre amarela e a malária. Além do que, a doença era um problema nacional porque estava disseminada em todo o território brasileiro, o que fazia com que o país figurasse entre os Estados que detinham mais casos do referido mal. Com base nesses argumentos, o Ministro submeteu o anteprojeto de padronização de procedimentos de combate à doença ao Presidente da Câmara dos Deputados que, por sua vez, o encaminhou à manifestação da Comissão de Saúde Pública e a de Finanças. Ambas as comissões aprovaram o projeto sem grandes reparos.
Assim, a Lei 610/1949 foi publicada e trouxe expressos seus objetivos:

Art. 1º A profilaxia da lepra será executada por meio das seguintes medidas gerais:
I ? Descobrimento de doentes por intermédio de:
a) Censo;
b) Exame obrigatório de todos os "contatos"; ou comunicantes e dos suspeitos ou "observandos";
c) Notificação compulsória;
d) Exame das pessoas que procuram espontaneamente os serviços de lepra;
II ? Investigação epidemiológica de todos os casos de lepra;
III ? Isolamento compulsório dos doentes contagiantes;
IV ? Afastamento obrigatório dos menores "contatos" de casos de lepra da fonte de infecção;
V ? Vigilância Sanitária;
VI ? Tratamento obrigatório de todos os doentes de lepra;
VII ? Educação sanitária;
VIII ? Assistência Social aos doentes e suas famílias;
IX ? Preparo do pessoal técnico;
X ? Estudos e pesquisas relativas à lepra.
§ 1º O Serviço de Profilaxia da Lepra manterá sigilo sobre a internação do doente e a executará com a maior discrição possível.
§ 2º No assento de nascimento do filho do doente, quando nascido no leprosário, figurará como local do nascimento o nome do Município onde estiver situado o leprosário.
[..]
Art. 7º É obrigatório o isolamento dos casos contagiantes de lepra, compreendidos
a) todos os de lepra lepromatose;
b) todos os não lepromatosos, que, em virtude dos exames clínicos e de laboratório e a juízo da autoridade sanitária, tornem provável a hipótese do contágio.
Art. 8º E' também obrigatório o isolamento dos casos não lepromatosos, que, pelas condições e hábitos de vida do doente ou pela sua insubmissão às medidas sanitárias, constituam ameaça, a critério da autoridade sanitária, para a saúde da coletividade.
[...]
Art. 17. Será exercida rigorosa vigilância sanitária sôbre os doentes isolados em leprosários, os suspeitos e os que estiverem em observação, de modo que se torne fácil promover e fiscalizar o cumprimento das leis e regulamentas sanitários no tocante à lepra. (grifo nosso).


Como se pode apurar da leitura dos dispositivos supra transcritos e do que já foi mencionado no capítulo segundo do presente trabalho, esse normativo foi baseado na política profilática baseada no tripé institucional: leprosários (hospitais-colônia), dispensários e preventórios (educandários).
A palavra de ordem, portanto, era o isolamento. Como, nessa época, ainda não havia cura para a doença, a principal preocupação do Estado era com o afastamento do doente, de forma a evitar novas contaminações e a controlar a propagação da doença.
Essa mesma estratégia fora utilizada com sucesso pelos países europeus no final do século 19. Assim que descoberto o bacilo causador da enfermidade, o Mycobacterium leprae, e suas características, os doentes foram isolados para que a transmissão da doença não mais ocorresse. Com isso, a doença praticamente desaparecera naquele continente (CUNHA, 2002).
Com isso, diante dessa colisão de direitos, entre o da liberdade individual do enfermo e o da saúde pública, sentimos a necessidade de nos reportarmos ao primeiro capítulo deste trabalho. Naquela oportunidade foi comentado que o operador do Direito, diante da colisão de princípios e/ou direitos, no estudo de determinado caso concreto, deveria recorrer ao Princípio da Proporcionalidade.
Humberto Ávila (2009, p. 163-185) ensina que o postulado da proporcionalidade cresce em importância no Direito Nacional, visto que, cada vez mais, ele serve como instrumento de controle dos atos do Poder Público. O mencionado postulado "se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais": o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito. Melhor dizendo, se essas três questões forem respondidas a contento, não há que se reprovar a iniciativa do Estado de isolar os enfermos, restringindo suas liberdades individuais em nome da proteção à saúde pública. Caso contrário, reprovar-se-ia tal atitude estatal.

3.4.2.1.1 Adequação

No tocante à escolha do meio mais adequado para se promover um fim, Ávila explica que nem sempre é possível, ou mesmo plausível, saber qual, dentre os meios igualmente adequados, é o mais intenso, melhor e mais seguro na realização do fim. Isso demandaria informações e circunstâncias muitas vezes não disponíveis, no momento da ação, para a Administração. O referido autor ensina a medida escolhida pelo Poder Público será adequada se o julgador, no momento da decisão e depois que ela for adotada, verificar que essa medida promove o fim. Se a avaliação do administrador revelou-se equivocada em momento posterior, e com informações somente disponíveis mais tarde, não se mostra razoável reprovar a opção estatal.
No caso concreto, a opção do Estado, à época, por isolar seus enfermos, a nosso ver não se mostra condenável sob a ótica da adequação dos meios para legitimar um fim. A maior preocupação estatal era conter o avanço da doença, em benefício de um direito transindividual coletivo, que é a saúde pública, em detrimento à liberdade individual do enfermo. Ademais, muitos estudos da época, que versavam sobre essa enfermidade, e sobre a já citada experiência de sucesso na Europa eram favoráveis a essa política isolacionista. O estágio de evolução da ciência nesse período não dava muitas alternativas e o isolamento, aparentemente, parecia ser a melhor solução, visto que, por vários anos, uma série de tentativas empíricas de tratamento, muitas vezes sem fundamentação científica alguma, foram utilizadas e descartadas. Um bom exemplo disso era o que ocorrera, durante anos, na cidade de Caldas Novas (GO). Aquele município mereceu destaque pelo tratamento por intermédio de banhos termais seguidos da cauterização com barras de ferro candente nos nódulos e tubérculos dos doentes. No estado do Pará, os doentes eram medicados com ervas laxantes, que lhes provocavam evacuações líquidas e, em seguida, tomavam banhos mornos na água de casca de açacu cozida e banhos de vapor. (CUNHA, 2002).
Na busca de soluções mais eficientes, o Rio de Janeiro sediou entre 19 e 31 de outubro de 1946 a Segunda Conferência Panamericana de Lepra no Brasil. Portanto, apenas dois anos antes da publicação da Lei 610/49, a política de isolamento dos doentes e de seus filhos era a tônica de boa parte dos trabalhos científicos apresentados:

EPIDEMIOLOGIA DA LEPRA NA INFÃNCIA.
Prof. Dr. J. Aguiar Pupo
Dr. Nelson de Souza Campos
C O N C L U S Õ E S:
1) A alta incidência da lepra na infância decorre da maior promiscuidade com o fóco contagiante familiar, na mais intima e permanente convivência com os progenitores e irmãos afetados pelo grande mal.
[...]
3) O rigor da vigilância clínico-leprológica nos preventórios evita o "Circulo vicioso de contágio" entre os próprios filhos de leprosos, sendo de relevante interesse a prática de um triênio de observação preventiva antes da transferência à comunidade dos asilos de amparo aos filhos de leprosos.
4) As medidas constantes do isolamento trienal, indicadas na conclusão anterior, reduziram a incidência da lepra entre as crianças amparadas pelo preventório da Associação Teresinha do Menino Jesus A cifra de 21,5%, que Julgamos ser o menor índice registrado nos anais da epidemiologia da lepra na infância. (grifo nosso).

A IMPORTANCIA DO ISOLAMENTO HOSPITALAR DOS DOENTES CONTAGIANTES NA PROFILAXIA DA LEPRA:
Luiz Marino Bechelli e Reinaldo Quagliato
Médicos do D.P.L. de São Paulo
C O N C L U S Õ E S:
Os Autores apresentam documentadas observações sobre o isolamento do hanseniano, considerando essas medida como uma das mais importantes e eficientes na profilaxia da lepra. Estão de acordo com a opinião de JEANSELME, quando afirma que é o isolamento uma das medidas básicas, isso porque, ignorando-se a transmissão da molestia e não se dispondo de uma terapêutica específica, não são aplicáveis aos meios racionais que decorreriam do conhecimento desses fatores.
Contudo, conforme vem sendo feito, atualmente, o isolamento compulsório dos contagiantes deve ser secundado por outras medidas, tais como: controle dos comunicantes (diagnóstico precoce) e de doentes com alta: proteção aos filhos dos doentes (preventórios), elevação do padrão de higiene da população, educação sanitária, etc..
[...]
Afirmam que se tivessem que tomar apenas uma medida profilática entre as várias, acima mencionadas, não teriam dúvida em escolher primeiramente o isolamento das formas contagiantes. Isso para evidenciar o valôr que dão ao isolamento em relação as outras medidas, sendo desnecessário reassegurar que todas as medidas profiláticas devem ser tomadas a um só tempo com igual intensidade e constância para uma solução mais rápida do problema.
Esperam, que para o futuro, com o progresso dos estudos da patogenia, terapêutica, imunología, etc.. as medidas atuais de profilaxia pelo isolamento, sejam atenuadas e reduzidas a proporções mínimas.
Dentro, porém, dos conhecimentos atuais da leprologia, consideram os Autores que nos países ou áreas onde a lepra é endêmica, não há outra orientação a. seguir, senão a do isolamento hospitalar do doente contagiante, recurso essencial para o sucesso da profilaxia e que deve ser tomado conjuntamente com as outras medidas preventivas já citadas. (grifo nosso).

É verdade que nessa mesma conferência foi apresentado um trabalho que defendia o tratamento pelo uso de sulfona que, conforme explicado no segundo capítulo, viria a substituir gradualmente o isolamento como principal forma de tratamento da doença, em um futuro próximo:
CHEMOTHERAPY OF LEPROSY
(With Lantern-Slide Demonstration)
G. M. FAGET
U.S. Public Health Service - U.S. Marine Hospital - National Leprosarium, Carville, La.
C O N C L U S Õ E S:
1) Com o emprego das sulfonas, promin, iasona e promizolo na quimioterapia da lepra, obtem-se melhoras clínicas evidentes, duradouras, e que não podem ser atribuídas ás remissões expontaneas da molestia.
2) Estas melhoras, embora obtidas lentamente, são progressivas durante o curso do tratamento.
3) Fotografias das alterações ocorridas nas lesões evidenciam estas melhoras.
4) Exames laboratoriais indicam que as sulfonas possuem uma ação bacteriostática na lepra .
5) Uma vez que a ação quimioterápica das sulfonas é demorada, devem ser incentivadas pesquisas no sentido de descobrir agentes bactericidas mais poderosos.
6) Estreptomicina é um antibiotico que merece ser investigado como um possível agente quimioterápico da lepra.
7) Até que sejam descobertos medicamentos de ação mais rápida, as sulfonas devem ser consideradas como o melhor tratamento da lepra. (grifo nosso).

Entretanto, é possível perceber que ainda não havia unanimidade quanto à eficácia do tratamento por meio do uso da sulfona. Em artigo datado de 28 de abril de 1953, portanto, quatro anos após a publicação da Lei 610/1949, persistia a ideia da necessidade de internação. Souza-Araújo, um dos mais renomados médicos brasileiros da época e estudioso da hanseníase, produziu o artigo O problema da lepra no Brasil, no qual revelou dados do censo dos doentes pelo país e registrou sua crença na eficiência do tripé institucional, imposto pela referida lei, ao reforçar a importância dos leprosários e constatar a necessidade de se construir mais dispensários e preventórios pelo país:

Leprosários
Há no país, em funcionamento, 38 leprocômios, de vários tipos, sendo 2 no Território do Acre, 2 no Distrito Federal e 34 espalhados nos 20 Estados. Dos períodos colonial e imperial restam 3 hospitais. Dos 35 restanets o mais antigo é a Lazarópolis do Prata, fundada por mim no Pará em 1924 (V. Estampa 1). A maioria é do tipo colônia agro-pecuária, sendo modelar a Colônia Aimorés de Baurú, S. Paulo (V. Estampa 5); são do tipo sanatorial a Colônia Santa Teresa, de Santa Catarina (V. Estampa 6), o Padre Bento, de S. Paulo (Est. 4) e o Roça Grande, de minas Gerais. Os maiores leprocômios do país são as Colônias Pirapitinguí (S. Paulo (Est.3) com capacidade para 3.000 doentes e Santa Isabel Minas Gerais) (Est. 2) para 2.500.
Dispensários
O Dispensário Anti-leproso é a "Célula Mater" da profilaxia da lepra e existem no país 93 deles, segundo informa o SNL. Para fazer a vigilância dos leprosos fichados e não-isolados, rever periódicamente o censo e tratar os casos incipientes e não contagiantes, necessitamos, pelo menos, de 200 dispensários fixos e itinerantes. Nos Estados do Pará, Maranhão, Piauí, Ceará e Rio Grande do Sul existem 51 unidades sanitárias cooperando na profilaxia da lepra.
Preventórios
Há no país 29 preventórios em funcionamento e 2 em construção. A maioria deles foi fundada pela Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e defesa contra a Lepra. O preventório para filhos de leprosos é o complemento imperativo de qualquer serviço anti-leproso bem organizado. [...] A Federação e o Serviço Nacional da Lepra planejam construir novos preventórios e ampliar alguns dos existentes. (grifo nosso).


3.4.2.1.2 Necessidade

No que toca ao exame da necessidade do meio adotado para promover um fim, o que deve se avaliar é a existência de medidas alternativas que possam promover igualmente o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados.
O que ocorre, no entanto, é que, como se viu, o meio considerado mais eficaz, à época, era esse que abolia a liberdade individual do enfermo. Outras medidas, naquele momento, não eram consideradas plausíveis (vide os casos Caldas Novas/GO e Pará e o uso da sulfona, que ainda estava em fase experimental).


3.4.2.1.3 Proporcionalidade em sentido estrito

Aqui, neste terceiro e último quesito que visa examinar a política estatal de isolar seus enfermos em prol da saúde pública, o que se tem a fazer é a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. A pergunta a ser respondida é: as vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio?
Os fins da política isolacionista do Estado eram dois: a defesa da saúde pública e a eliminação da doença.
Sabemos que o Estado fracassou na eliminação da doença.
Mas, quanto à defesa da saúde pública, o Poder Público, com certeza, com essa política isolacionista, conseguiu evitar que boa parte da população contraísse a doença.
É claro que o isolamento compulsório dos enfermos acarretou sérias conseqüências sociais como: a abolição da liberdade individual dos doentes, agravamento do preconceito em relação à doença, desmantelamento de unidades familiares e marginalização das famílias atingidas. No entanto, o fim maior era a proteção da coletividade de forma evitar que mais pessoas sofressem desses males elencados.
Tendo em vista que isentamos o Estado da responsabilidade pelo fato de ter optado pela política de isolamento das vítimas da hanseníase como forma de tratamento da doença, o que pode parecer ser um ato de extrema condescendência para com o Poder Público, entendemos ser necessário dedicar algumas linhas a mais para analisar outras questões decorrentes da mencionada política. Nos próximos tópicos analisaremos outros pontos da estratégia isolacionista do Estado, como: grande poder de decisão dado às autoridades sanitárias; a qualidade de vida oferecida nos leprosários/hospitais-colônia; a assistência social e as condições de readaptação à sociedade dada aos egressos; o descompasso e a desordem legislativa no que tange a evolução do tratamento da hanseníase e o tratamento dispensado aos internos dos preventórios/educandários.

3.4.2.2 Alto grau de autonomia dado às autoridades sanitárias.

Conforme registrado, não nos parece adequado condenar o Estado pela implementação da política de isolamento de doentes e seus filhos. Mas, o fato de ter reservado um alto grau de autonomia à autoridade sanitária para decidir sobre quem deveria ser isolado, tendo por base, apenas, suspeitas de ser foco de contágio, nos parece ter fugido ao racional. Fundamental seria que se desse tal parcela de poder a uma autoridade que se cercasse de todos os meios possíveis para embasar sua certeza de que estaria determinando o isolamento somente daquela pessoa comprovadamente enferma. O dispositivo legal, da forma como foi redigido, amplia em muito a margem discricionária do agente público responsável por uma decisão que afetaria a vida de muitas pessoas. Isso, sem a devida promoção de ações de conscientização da mencionada autoridade quanto às inúmeras repercussões negativas que uma decisão equivocada sua importaria, pode ter determinado a contaminação de pessoas inicialmente sãs, até que, equivocadamente, de forma compulsória, passaram a conviver com pessoas acometidas pela doença, o desmantelamento de famílias, entre outras. O artigo A pensão especial para as pessoas atingidas pela hanseníase, de Wagner de Oliveira Pierotti (2009), destaca esse poder decisório do serviço médico oficial:

O isolamento compulsório foi amplamente discutido pelos hansenologistas da época. Emílio Ribas defendia o isolamento humanitário (construção de asilo-colônia destinado aos doentes pobres em loca de fácil acesso, facilitando a assistência médica e as pesquisas); um segundo grupo acreditava ser o isolamento insular o mais indicado; e um terceiro grupo defendia que todos deveriam ser isolados a partir do diagnóstico de hanseníase, não importando a forma clínica, a situação sócio-econômica e o estágio da doença, todos os doentes deveriam ser banidos da sociedade. Este último grupo acabou prevalecendo.
[...]
Assim, toda pessoa com diagnóstico de hanseníase era imediatamente levada para um dos asilos, de onde somente poderia sair com alta concedida pelo serviço médico oficial, o qual tinha a decisão sobre a vida de cada um. (grifo nosso).

3.4.2.3 Condições de vida nos leprosários ou hospitais-colônias e de assistência social e readaptação aos egressos à sociedade.

Ao determinar o isolamento dos doentes de seu meio social, o Estado assumiu mais um compromisso, além do cuidado para com a saúde pública, que foi o de ter que oferecer a esses enfermos condições de vida minimamente dignas e propiciar aos egressos sua readaptação à sociedade. Essas duas novas responsabilidades estatais foram lembradas na edição da Lei n. 610/1949:

Art. 1º A profilaxia da lepra será executada por meio das seguintes medidas gerais:
VIII - Assistência Social aos doentes e suas famílias;
[...]
Art. 11. O isolamento leprocomial será, por via de regra, feito em estabelecimentos oficiais dos tipos colônia ou sanitário, ou em estabelecimentos particulares de tipo sanatorial.
§ 1º Os sanatórios mantidos pôr particulares ficarão subordinados à fiscalização dos serviços oficiais de profilaxia da lepra.
[...]
Art. 24. O Estado prestará ampla assistência social aos doentes de lepra e às suas famílias, compreendendo-se nela:
a) os doentes que, pelas suas condições, não necessitem de isolamento leprocomial;
b) os egressos de leprosários;
c) as crianças comunicantes de doentes de lepra e os demais membros das familias dos doentes isolados;
d) os doentes isolados em leprosários.
[...]
Art. 25. Aos doentes não isolados, inclusive os egressos de leprosários, a assistência social deverá visar, fundamentalmente, ao seu reajustamento ocupacional de modo que êles fiquem, por si mesmos, providos dos recursos para sua subsistência.
[...]
Art. 28. A assistência social aos doentes isolados em leprosários terá por fim criar, nesses estabelecimentos, condições de vida digna e confortável, tanto quanto possível aproximada do convívio na sociedade.
Parágrafo único. As associações de assistência social, organizadas, dentro dos leprosários, pelos doentes nela internados, só poderão funcionar mediante prévia autorização do Diretor do estabelecimento. (grifo nosso)

Quanto ao compromisso de dar condições mínimas de vida nos leprosários ou hospitais colônia pode-se apurar da leitura de trabalhos monográficos relacionados a esse assunto que o Poder Público falhou. O fato de ter previsão legal, como visto acima, não significa que essa obrigação foi de fato cumprida. Isso porque a concentração, pela União, da responsabilidade pela saúde pública, como será visto no próximo tópico, não foi acompanhada, de imediato, pela unificação e padronização de procedimentos no trato da doença. Devido ao alto grau de autonomia que os Estados detinham à época, o Poder Central não possuía meios eficientes de controlar, por exemplo, a qualidade do tripé institucional leprosário-dispensário-preventório implantado em cada ente federativo.
Embora a doença estivesse espalhada por todo território nacional, alguns Estados não possuíam um leprosário ou hospital-colônia sequer. Já o Estado de São Paulo, por sua vez, primava pela excelência em boa parte de suas instituições, antes mesmo da edição Lei n. 610/1949. A posição independente dos paulistas os capacitou a desenvolver suas próprias políticas profiláticas e tratar com qualidade seus doentes:

O Estado de São Paulo promoveu medidas de controle da lepra de forma independente daquelas realizadas pelo governo federal. [...] Para pôr em prática tais medidas era importante a construção de colônias para leprosos, cujo projeto e estrutura terminaram por influenciar a edificação de instituições similares em outros países. As colônias de São Paulo foram visitadas por pesquisadores estrangeiros e citadas em literatura especializada, transformando-as em referência obrigatória para os leprologistas brasileiros e latino-americanos, notadamente até a década de 1950.
O projeto de uma leprosaria em Santo Ângelo, para abrigar os doentes de lepra do estado, foi apresentado pelo arquiteto Adelardo Caiuby e deveria servir de ?modelo? para outros estabelecimentos congêneres no país. As construções foram planejadas permitindo a separação dos pacientes por sexo, idade e condições de saúde, incluindo uma zona de diversões, outra para a administração, além de cadeia, igreja, portaria, estábulos, cemitério, biblioteca, creches, posto policial, farmácia etc. Deveria ter também sistema de eletricidade, de águas e de esgotos. Era projetado para se tornar auto-suficiente, contendo terra para cultivo agrícola e animais de pasto.
Desde o final da década de 1910 defendia-se a idéia de construir uma "mini-cidade" em cada leprosário, de forma que os doentes pudessem ter o conforto de que dispunha uma pessoa sã, embora vivendo apartados da vida comum em sociedade. A análise de Santo Ângelo difundiu a visão de como o mundo isolado poderia ser estruturado, em toda a sua complexidade, incluindo relações de hierarquia, disciplina, trabalho e moralidade, despertando um papel importante na organização dos mecanismos para facilitar a identificação, supervisão e proteção dos pacientes internados. (CUNHA, 2005). (grifo nosso).

A qualidade do tratamento da doença no estado de São Paulo, não era a mesma observada em outros entes da federação que, muitas vezes, possuíam leprosários de tamanhos bem reduzidos e insalubres e não possuíam profissionais de saúde suficientes para dar conta da demanda dos internados. Os enfermos sofriam com o abandono do Estado e da própria família e eram vítimas de maus tratos de profissionais mal preparados e altamente dependentes de doações e esmolas.
No que concerne a política de readaptação dos egressos dos leprosários, a atuação do Poder Público, como um todo, não foi diferente.
Os egressos dos leprosários eram aqueles indivíduos que passaram muito tempo internados e obtiveram a cura clínica. Com a sua alta médica, os ex-doentes deveriam passar por um processo de readaptação social, de forma a facilitar a sua volta para a vida em sociedade para que eles mesmos tivessem condições de garantir o seu próprio sustento. Tal readaptação, assim como previsto na Lei n. 610/1949, era obrigação de quem determinou a internação, ou seja, do Estado. Entretanto, é possível notar da leitura de artigos científicos apresentados no VIII Congresso Internacional de Leprologia (1963), que essa obrigação também não estava sendo levada a termo pelo Estado:

Educação Sanitária e Reintegração Social na Lepra
Dr. Adolpho Brandão Filho
Ainda que não se tenha conseguido a terapêutica ideal para o tratamento da leprose, os quimioterápicos, indiscutivelmente, vêm aumentando de forma apreciável a cura clínica de milhares de enfermos, tornando-os aptos a se reintegrarem à comunidade social e bem assim a exercerem quase todas as atividades profissionais.
Quer-nos parecer que os fatos acima não oferecem contestação, entretanto, até o presente, não foram traçados planos exeqüíveis e normas capazes de favorecerem a reintegração do ex-doente à sociedade, propiciando-lhe trabalho, para que possa, emancipado, prover a sua própria subsistência, medidas estas, que, além de justas e humanas, desafogariam de maneira substancial o elevado ônus que acarreta o internamento de doentes, por tempo indeterminado.
Muito embora, reconheçamos que na leprose muitos fatores ainda continuem obscuros, também estamos convictos, ser presentemente, a hensenose, tanto um problema médico-sanitário, como, em igualdade de importância, um problema social.
[...]
Concordamos plenamente com a afirmação da OMS e estamos certos de que nenhum sistema profilático adotado no combate à endemia leprótica dará resultados positivos, sem que em seu planejamento, seja incluído e posto em prática, um largo programa de esclarecimento público, destruindo os tabus criados em torno da doença e favorecendo clima de melhor receptividade ao doente por parte da sociedade.
[...]
A reabilitação do egresso de lepra exige um conjunto de medidas educacionais e legais que não podem ser planejadas e executadas isoladamente.
Falar em reabilitação e reintegração de doente de lepra, quando em pleno século XX e à luz dos novos conhecimentos científicos sobre a doença, as autoridades sanitárias, ainda permitem, em plena vigência, leis específicas de profilaxia do mal de Hansen, é utopia.
Poder-se-á de sã consciência condenar a sociedade por não receber ou facilitar a reintegração do ex-Hansenoso, quando as autoridades de Saúde Pública, indiferentes, não exigem a revogação de leis obsoletas e anti-humanas?
Se realmente desejamos e necessitamos reabilitar o Hansenoso nos parecem imperativas as seguintes recomendações:
1º) Revogação das leis exceção e enquadramento da lepra nas leis normais e regulares de Saúde Pública.
2º) Intensa campanha de propaganda e educação sanitária.
3º) Reaparelhamento dos leprosários, instalando oficinas de aprendizado profissional, dando ensejo para que o futuro egresso forme uma nova coletividade, sem quaisquer estigmas.
4º) Construção de asilos para os doentes portadores de seqüelas mutilantes e irrecuperáveis, proporcionando-lhes conforto condigno. (grifo nosso).

O excerto transcrito evidencia a preocupação de seu articulista, Dr. Adolpho Brandão Filho, em minorar o sofrimento dos egressos dos leprosários. Percebe-se, pelas propostas por ele apresentadas que o Estado, aquele que, em tese, deveria traçar políticas públicas voltadas para a reabilitação desses egressos, não estava muito empenhado nesse projeto.
Outro trabalho, apresentado nesse mesmo evento, evidenciou, mais uma vez, como o Estado de São Paulo estava à frente dos demais entes federativos quando o assunto era hanseníase. Descontando-se o teor de promoção política contido nesse artigo, vale destacar que, enquanto, no plano federal, somente em 2007 uma lei instituiu pensão especial para os que haviam sido internados até dezembro de 1986, uma deputada do mencionado estado, já em 1963, havia aprovado lei de sua iniciativa junto à Assembléia Estadual Paulista visando benefícios semelhantes:

Programa Assistencial no Problema da Lepra
Maria da Conceição da Costa Neves ? Deputada Estadual e Presidente da Associação Paulista de Assistência ao Doente de Lepra
A autora relaciona trinta e duas leis de sua iniciativa junto à Assembléia Estadual do Estado de São Paulo, sendo a última a seguinte:
Lei nº 7662/63 ? Concede pensões do Estado, mensais e vitalícias, no valor de 70% sobre o salário mínimo vigente na Capital do Estado, a mais 522 pacientes fichados no D.P.L. e considerados irrecuperáveis para o trabalho, e eleva para igual nível as pensões concedidas pelas leis anteriores, a pacientes nas mesmas condições.
A propósito dessa pensão do Estado concedida a doentes considerados irrecuperáveis para o trabalho, convém salientar que já há 8 leis nesse sentido. Assim é que, hoje, 4635 ex-internados e pacientes fichados no D.P.L. recebem 70% do salário mínimo vigente na Capital, ou seja, a importância de Cr$ 14.700. É evidente que tal pensão é assegurada aos que ficaram mutilados ou que têm idade muito avançada, que, por isso, não mais podem ganhar sua subsistência, pois o primordial objetivo que temos é o de fazer com que cada egresso de sanatório volte à sociedade como elemento recuperado que é, para todas as atividades, obedecidas as restrições que ainda a ciência exige. (grifo nosso)

Repisamos que o esforço social vislumbrado no trecho acima se restringiu ao Estado de São Paulo que, como já registrado, pautava-se por uma postura mais auto-sustentável e, nesse caso, mais responsável que as demais unidades da Federação. Foi evidenciada a iniciativa assistencial somente àqueles considerados irrecuperáveis, visto que os demais egressos, em tese, não necessitariam dessa espécie de benesse, desde que passassem por um processo de readaptação.
Em suma, vê-se que mesmo depois de 14 anos de vigência da Lei n. 610/1949, o Estado ainda não tinha uma política sólida que garantisse condições ideais de vida nos leprosários ou hospitais-colônia, nem ações de assistência social e esforços na readaptação dos egressos à sociedade. Percebe-se, com clareza, a falha do Estado nessas duas situações, o que reforça sua responsabilidade sobre o tema.


3.4.2.4 Descompasso e desordem legislativa.

Sabe-se que, em 1953, aconteceu o VI Congresso Internacional de Leprologia em Madri e que ali foram traçadas as novas diretrizes para as ações de controle: tratamento ambulatorial, internação seletiva, estímulo à pesquisa e assistência social aos doentes e familiares. (CUNHA, 2005).
O VII Congresso Internacional de Leprologia, realizado em Tóquio, no ano de 1958, recomendou, mais uma vez, o fim do isolamento compulsório dos doentes de lepra (CUNHA, 2005). Nesse mesmo ano, a Repartição Sanitária Panamericana, organismo regional da Organização Mundial de Saúde, promoveu, em Belo Horizonte, o Seminário sobre Profilaxia da Lepra, cujas conclusões faziam uma boa leitura acerca das conseqüências negativas do isolamento, tanto para os doentes quanto para seus familiares, o que evidenciava a o caráter emergencial da necessidade de se alterar essa forma de lidar com a doença:

O Seminário é de opinião que a disposição legal do isolamento obrigatório em estabelecimentos especiais ? leprosários ? traz sérias desvantagens, as quais criam obstáculos à execução de medidas mais valiosas de controle. Destacam-se, entre elas:
a) Ocultamento de grande número de enfermos por temor à internação, dificultando o contrôle subseqüente de seus comunicantes:
b) Gastos elevados para o erário público, desviando-se, sem proveito algum para a profilaxia, recursos financeiros que poderiam ser mais bem aplicados no desenvolvimento de métodos mais racionais e eficazes da luta contra a lepra;
c) Desintegração e estigmatização da família do doente, tornando mais difícil seu reajustamento social;
d) Discriminação injusta e desumana de uma classe de doentes, que passam a ser considerados como parias, impossibilitando, portanto a reintegração posterior na sociedade;
e) Perpetuação dos preconceitos populares.
DESTA FORMA, O SEMINÁRIO RECOMENDA A ABOLICÃO DO ISOLAMENTO OBRIGATÓRIO E A SUBSTITUICÃO PELO CONTROLE EFETIVO DOS FOCOS, LOGRADO MEDIANTE O TRATAMENTO DE TODOS OS DOENTES E A VIGILÂNCIA DE SEUS COMUNICANTES. A INTERNAÇÃO EM HOSPITAIS ESPECIALIZADOS FICARÁ RESTRITA AOS CASOS EM QUE HAJA ESPECIAL INDICACÃO MÉDICA OU SOCIAL. (ROTBERG, 1968).

Com isso, o Brasil deu início, de forma gradual, à implementação do tratamento ambulatorial, tendo em vista a dificuldade de aceitação e resistência à nova técnica (tratamento ambulatorial) por parte dos próprios profissionais de saúde, descrentes em relação a essa inovação.
As recomendações advindas do VI e VII Seminários Internacionais de Leprologia e do Seminário sobre Profilaxia da Lepra foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto do Conselho de Ministros n. 968, de 7 de maio de 1962. O mencionado Decreto garantiu aos portadores de formas clínicas contagiantes da doença a movimentação, o que poderia, eventualmente, sofrer limitações se a situação assim o exigir conforme se pode apurar de seu artigo 8º:

Art. 1º A profilaxia da lepra será realizada:
1 - Estudos e pesquisas
2 - Preparo de pessoal técnico
3 - Inquéritos epidemiológicos
4 - Procura sistemática de doentes
5 ? Tratamento
6 - Educação sanitária
7 - Assistência social
8 - Limitação dos movimentos das fontes de contágio
9 - Vigilância sanitária
I - Mediante a execução das seguintes tarefas, de responsabilidade dos serviços especializados
II - Através de medidas gerais preventivas de caráter sanitário ou extra-sanitário executadas pela administração pública, visando a elevação do nível de saúde das populações
Parágrafo único. No combate à endemia a leprótica será, sempre que possível, evitada a aplicação de medidas que impliquem na quebra da unidade familiar, no desajustamento ocupacional e na criação de outros problemas sociais.
[...]
Art. 8º Será assegurado aos enfêrmos de lepra, portadores de formas clínicas contagiantes, o direito de movimentação, que poderá, entretanto, sofrer limitações nas eventualidades:
a) de não possuir o enfêrmo condições econômicas que garantam sua subsistência na forma requerida pelo seu estado de saúde.
b) de não possuir o enfêrmo domicílio que satisfaça os requisitos mínimos de proteção aos demais conviventes.
c) de o enfêrmo, embora satisfazendo os itens anteriores não acatar as determinações relativas ao seu tratamento regular e as recomendações que visem a eliminar os riscos da disseminação. (grifo nosso).

O Decreto 968/1962 representou um avanço no tratamento da doença e a partir de sua publicação o isolamento deveria ser considerado medida de exceção. Ocorre que em algumas unidades da federação, em especial, o Estado de São Paulo, aquele decreto não teve aplicação e a internação compulsória continuou sendo efetuada, por se entender que, pelo princípio da hierarquia das normas, um decreto não teria força suficiente para revogar uma lei. (FERREIRA; GAURI; ZAPELLA, 2009).
O argumento dos paulistas, a nosso ver, era procedente. Tratou-se de uma desordem legislativa acerca do tema.
A Exposição de Motivos da Lei n. 5.511, de 15 de outubro de 1968, normativo responsável pela revogação expressa da Lei n. 610/1949, explica essa desordem. Segundo esse documento, diferentemente do que ocorreu à época da publicação dessa lei, em que se valorizou a importância de se ter uma lei específica voltada para se combater determinada doença, o Estado percebeu que esse tipo de prática não era apropriado. Isso porque a ciência, em constante evolução, ficava amarrada pela inércia do Poder Legislativo. Ou seja, os procedimentos médicos não poderiam ser outros, que não os que estivessem prescritos em lei e o doente, o principal beneficiário da norma, muitas vezes acabava sendo prejudicado, enquanto não sobreviesse norma nova revogando ou alterando a anterior.
Para resolver esse problema, acreditou-se que as normas de profilaxia da hanseníase deveriam ser baixadas por decreto, norma legislativa mais ágil por exigir um procedimento mais simples na sua aprovação do que o exigido no caso de uma lei ordinária.
Foi aí que se instalou uma confusão legislativa.
Foi editada a Lei n. 2.312, de 3 de setembro de 1954, que fixou normas gerais sobre a defesa e a proteção da saúde e que previu sua regulamentação por decreto.
Veio o Decreto n. 49.974-A, de 21 de janeiro de 1961, que regulamentou aquela lei e ficou conhecido como Código Nacional de Saúde (CNS), pois teria penetração em todos os estados federativos. Esse decreto previu que o Ministério da Saúde baixaria todas suas Normas Técnicas Especiais via decreto.
Resumindo: um decreto, que regulamentou uma lei geral, teria autorizado a revogação de uma lei específica por outro decreto. Daí a legitimidade, para alguns, do Decreto n. 968/1962 que, em tese, teria revogado tacitamente a Lei n. 610/1949.
Somente em 15 de outubro de 1968, portanto seis anos após o Decreto 968/1962, que proporcionou "a confusão legislativa" foi publicada a Lei n. 5.511 que revogou expressamente a Lei n. 610/1949, pondo um fim na discussão sobre a validade daquele decreto. O novo normativo, além da revogação, determinou que o combate à hanseníase se desse pela Lei n. 5.026, de 14 de junho de 1966, que estabelecia normas gerais para a instituição e execução de Campanhas de Saúde Pública exercidas ou promovidas pelo Ministério da Saúde, se alinhando, dessa forma, ao que preconizava o Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967, que dispunha sobre a descentralização dos serviços públicos, transferindo para outras esferas as atividades executivas da União.
Com base no exposto, cremos que o Estado também deve ser responsabilizado pela demora em extinguir a internação compulsória, substituindo-a pelo tratamento ambulatorial, graças ao já explicitado descompasso legislativo que retardou em seis anos a adoção dessa política, pelo menos no Estado de São Paulo.

3.4.2.5 A vida nos preventórios ou educandários.

Os preventórios surgiram com a missão de acolher os filhos sãos dos hansenianos internados de forma compulsória nos leprosários ou hospitais-colônia e que não eram aceitos pelos parentes mais próximos, seja pela falta de recursos para sustentá-los ou pelo medo de contaminar suas famílias. Essas instituições poderiam ser privadas, mantidas com o auxílio do Estado, ou públicas, também chamadas de oficiais.
O Serviço Nacional de Lepra (SNL), vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, lançou em 1948, uma publicação com características de manual que se chamava Organização e Funcionamento de Preventórios. Essa obra detalhava os princípios, objetivos e a forma de funcionamento de um preventório ideal:

A parte de alimentação dos internados, seja da creche, seja dos pavilhões gerais, é de grande importância. Essa alimentação tem que ser racional, completa, controlada pela administração e pelo médico clínico.
A parte social é outra questão que não pode ser descuidada. O regime de internato deve ser orientado de modo a se contribuir inteligentemente para a formação da mentalidade das crianças, fazendo-as ainda esquecer a moléstia dos pais, sendo que em hipótese alguma se fará alguma referência à lepra e ao leproso.
[...]
Trabalhar para integrar a criança no meio social normal ? para o que muito concorre a localização do preventório, dentro, ou bastante próximo, dos centros urbanos, facilitando assim o intercâmbio com a sociedade ? é uma das questões que necessitam ser encaradas com muito cuidado pelas pessoas ou autoridades responsáveis pelos preventórios.
A parte educativa é igualmente importante, pois torna-se absolutamente necessário proporcionar às crianças os elementos indispensáveis à luta pela vida, dentro de suas realidades atuais.
[...]
A parte médica do preventório é de fundamental importância.
[...]
Somos de opinião, todavia, que a localização ideal para o preventório é dentro de perímetro urbano. Contra essa localização não se pode alegar motivos de ordem profilática ou higiênica. Antes de mais nada, os internados do preventório são pessoas de saúde.
[...]
A organização e o funcionamento de preventórios não podem ser padronizados em detalhes. Dependem sobretudo da situação econômica de cada Estado e das suas relações com os serviços oficiais.(BRASIL, 1948). (grifo nosso).

Como se pode observar, essa obra traçou as características ideais de um estabelecimento que cuidaria de crianças de ambos os sexos até se tornarem jovens adultos.
O limite máximo de idade para admissão, como regra geral, era de 15 anos para os meninos e 18 anos para as meninas. E eles poderiam continuar internados até os 18 anos, os homens, e até os 21, as mulheres.
As baixas e saídas dos preventórios se davam, principalmente por: a) falecimento; b) desenvolvimento tardio da hanseníase; c) limite de idade; vantajosa colocação ou casamento; d) solicitação de parentes ou pessoas estranhas sadias de idoneidade moral e capacidade financeira para manter e educar os pretendidos e com compromisso de sujeitá-los à vigilância das autoridades sanitárias competentes; e) contumaz indisciplina ou inveterado maus hábitos, tratando-se de maiores de 15 anos e que tenham resistido a todos os meios de correção permitidos.
Sabe-se, no entanto, que instituições perfeitas não existem. Além do que, quando o acompanhamento próximo e o controle concomitante não estão presentes na implementação de políticas públicas, surge espaço para distorções do sistema, e foi o que se verificou na realidade prática dos preventórios.
Santos (2009), em sua dissertação mestrado, intitulada de Crianças indesejadas ? estigma e exclusão dos filhos sadios de portadores de hanseníase internados no Preventório Santa Terezinha ? 1930 ? 1967, realizou estudos sobre o funcionamento do Preventório Santa Terezinha e do Preventório Jacareí, ambos localizados no Estado de São Paulo. A mestranda apontou uma série de impropriedades que distanciavam os preventórios reais daqueles tidos como ideais.
As diferenças começavam pela localização dos preventórios. Segundo os mais conceituados especialistas da época, essas instituições deveriam ter praça nos centros urbanos, o que facilitaria sua administração e viabilizaria maiores possibilidades de seus egressos se socializarem e adaptarem-se melhor à vida fora dos preventórios. Mas, não foi o que aconteceu na maioria das vezes devido ao preconceito das próprias autoridades. Com o Preventório Santa Terezinha, por exemplo, a escolha do local foi de encontro a essa idéia. Esse preventório acabou sendo construído nas redondezas do Município de Carapicuíba, interior paulista, sob o argumento de que uma instituição que abrigasse filhos de leprosos deveria situar-se o mais distante possível de grandes centros urbanos.
Outras ocorrências negativas verificada nos preventórios, de um modo geral, eram: superlotação dos quartos de dormir das crianças e adolescentes, excesso de rigor na disciplina traduzido em violência física e mental contra os internos, maus tratos e castigos desumanos.
Vale trazer trecho da dissertação de Santos (2009, p.194) em que são reveladas algumas situações de maus tratos contra os internos dos preventório Santa Terezinha:

Em entrevista ao jornalista Hélio Siqueira do jornal A Última hora, o egresso Carlinhos Fontes de Oliveira, narrou as práticas de torturas e humilhações impostas aos menores considerados rebeldes ou insubordinados.
Em seu relato afirmou que uma das práticas mais comuns de agressão às crianças com idades entre 10 e 14 anos era colocar os garotos totalmente nus dentro da capela e ali dar violentas surras de cordas, cintas e mesmo com as mãos. Muitas vezes os menores ficavam a noite inteira despidos dentro da igreja. Outra prática de tortura denunciada pelo ex-interno era introduzir a cabeça da criança dentro do vaso sanitário e em seguida acionar a descarga de água, provocando afogamento.
[...]
As penalidades aplicadas aos menores além de dilacerarem o físico os expunham a situações vexatórias e humilhantes, principalmente nos casos em que as crianças sofriam de incontinência urinária. Nesses casos além de humilhar as vítimas, as submetiam a torturas físicas e psicológicas extremamente traumáticas.
[...]
Várias irregularidades administrativas supostamente cometidas sob a direção de Margarida Galvão foram denunciadas por ex-internos no jornal A Última Hora. O desaparecimento de uma criança de um ano e seis meses ganhou destaque nas edições deste diário. Tratava-se da irmã menor do egresso Milton Méier que foi entregue à adoção sem o consentimento dos pais. A fim de eliminar as provas que a incriminassem, afirma Méier que todos os registro de internação da irmã Julia Aparecida Méier desapareceram dos arquivos da instituição.

Monteiro (1998), em seu artigo Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de portadores de hanseníase, também revela o drama dos internos dos preventórios. A autora afirma que as correspondências enviadas dos pais aos internos eram abertas e censuradas, e só algumas poucas eram devidamente entregues aos seus destinatários, a critério da instituição.
Monteiro (1998) denuncia também que, além da violação da correspondência, os internos sofriam com maus tratos, má alimentação, trabalho forçado, falta de atividades de lazer e despreocupação das instituições em adaptá-los à vida em sociedade:

Em Jacareí havia poucas oportunidades de lazer e dentre elas destaca-se a ida ao cinema.
[...]
Entretanto, verifica-se ter havido grande distanciamento entre o disposto e o praticado, na medida em que as oportunidades de ensino eram extremamente limitadas e que os internados acabavam por ter acesso apenas ao curso primário, que era ministrado dentro da instituição. Se oportunidades de ensino fora do Preventório já eram restritas, observa-se que a situação era ainda agravada pelo não interesse da instituição em prover o mínimo necessário para o prosseguimento dos estudos dos internos.
[...]
O tipo de formação educacional permitida no Preventório condicionou as possibilidades e oportunidades de vida que os menores tiveram ao sair da instituição. Desta forma, as meninas acabavam por se tornarem empregadas domésticas, e os meninos saíam sem capacitação, a não ser para os trabalhos agrícolas ou para o exercício de tarefas que não necessitassem qualificação.
[...]
A estrutura montada pela instituição fazia com que as crianças, ao saírem do Preventório, estivessem totalmente despreparadas para viver fora de seus muros.(grifo nosso).

Com base nas experiências aqui narradas, registramos entendimento de que o Estado também deve ser responsabilizado pelo tratamento dispensado aos filhos dos hansenianos, visto que se propôs, expressamente, por intermédio da Lei n. 610/1949, compromisso renovado pelo Decreto do Conselho de Ministros n. 968/1962, a cuidar e educar com qualidade essas pessoas, o que efetivamente não ocorreu. Dessa forma, acreditamos que a pensão vitalícia especial concedida pela Lei n. 11.570/2007 aos hansenianos isolados de forma compulsória pelo Estado, por conta das razões já aqui elencadas, também é merecida e deve ser estendida àqueles egressos dos preventórios que sofreram maus tratos, castigos cruéis, humilhações e violência durante sua internação, além de não terem tido acesso a uma boa educação e condições saudáveis de vida.

















CONCLUSÃO

O motivo pelo qual decidi estudar sobre a responsabilidade civil estatal e desenvolver o trabalho monográfico de conclusão do curso de pós-graduação em Direito Administrativo explorando essa temática, se deu pela minha preocupação com o vertiginoso aumento do número de ações ressarcitórias movidas em face do Estado, visando sua responsabilização à conta de sua possível omissão ou má prestação de serviços públicos. Tal preocupação se dá, principalmente, pelo fato de saber que toda e qualquer espécie de indenização paga pelo Estado é financiada pela população contribuinte de tributos da qual faço parte.
Quando tive conhecimento da Lei n. 11.520/2007, que dispõe sobre a concessão de pensão especial, vitalícia e mensal às pessoas atingidas pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e internação compulsória até 31 de dezembro de 1986, e que havia um grupo, o MORHAN (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), que tinha interesse de ampliar os efeitos dessa lei, de forma a abarcar tantas outras pessoas com a mencionada pensão, resolvi estudar mais de perto esse assunto.
A minha suspeita, inicialmente, era de que se tratava de uma norma populista, revestida de política social, que teria sido aprovada por parlamentares tomados por interesses meramente eleitoreiros. Minha desconfiança aparentemente se confirmou quando tive acesso às treze propostas de emendas à Medida Provisória n. 373 de 2007, que veio a ser convertida na Lei 11.520/2007. A maioria das propostas de emendas fugia por completo do foco da norma, visando, além de ampliar o público-alvo a ser beneficiado pelas mencionadas pensões (vítimas do acidente radioativo com o Césio 137 em Goiânia; pessoas com transtornos mentais; diabéticos crônicos; portadores de insuficiência renal crônica e vítimas da talidomida), conceder uma série de outras benesses a esses e outros grupos de interesse.
Em meu entendimento, esse tipo de estratégia, reunir em uma única norma a concessão de benefícios a grupos diversos, nada mais é que um subterfúgio utilizado por maus políticos com o único objetivo de agradar seu eleitorado e angariar votos. Se cada grupo a ser beneficiado, realmente merecesse sê-lo, por qual motivo não se deveria elaborar uma norma específica para ele, antecedida, logicamente, por um sério trabalho de investigação acerca do real direito de ser indenizado? Tratar-se-ia de uma homenagem ao princípio da especialidade das leis.
Para minha surpresa, todas as propostas de emendas à MP que fugiam do foco da norma foram rejeitadas.
Entretanto, mesmo assim, mantive minha postura cética quanto às reais intenções da lei de pensões aos hansenianos e da necessidade de se estender esse benefício aos seus filhos internados nos preventórios. Já tinha, inclusive, montado uma estratégia para condenar essa pretensa política pública reparadora. A idéia era descaracterizar a responsabilidade estatal no tocante ao tratamento dispensado aos hansenianos, aplicar o princípio da reserva do possível ao caso concreto e concluir pela desnecessidade da concessão das pensões aos dois grupos (hansenianos e seus filhos).
Com o início das pesquisas sobre a hanseníase, no entanto, a história mudou. Tive que rever alguns conceitos. A história da doença no Brasil e no mundo, o preconceito sofrido pelos enfermos, suas dores, suas desesperanças, entre outras coisas, fizeram-me quebrar aquele paradigma.
Como registrado por Yussef Said Cahali (2007), a ação ou omissão de conduta exigível da Administração, na execução de obra ou na prestação de serviço; acarreta a responsabilidade civil do Estado pelos danos conseqüentes dessa ação ou omissão.
Tendo o Estado Brasileiro assumido o compromisso para com a saúde pública nacional, Ele, de fato, possui uma dívida a pagar para com os portadores da hanseníase que foram isolados compulsoriamente e seus filhos, também internados. Mas isso, a meu ver, não por ter determinado o isolamento dos hansenianos, pois, como restou demonstrado, essa política era uma das mais defendidas na época. Mas, sobretudo, pela forma como foi conduzida essa política, o tempo que ela durou, a qualidade dos ambientes a que eram submetidos os doentes, a inexistência de uma política de readaptação dos egressos, etc. Isso tudo determina a responsabilidade estatal para com eles. No tocante aos filhos dos doentes isolados, aplica-se o mesmo raciocínio. A situação destes últimos, talvez, fosse até pior, visto que provavelmente sofreram tanto quanto seus pais, mas sem serem portadores da enfermidade, tendo em vista que o medo da doença é que, na maioria das vezes, justificava os maus tratos e o preconceito sofrido pelos enfermos.
Os artigos e trabalhos monográficos a que tive acesso, tão ricos em detalhes, me fizeram abandonar aquela visão fria e distante de mero contribuinte de tributos, descrente com a seriedade da política de destinação das verbas públicas, para abraçar uma causa digna e nobre, que é a luta por uma justiça tardia, mas efetiva e definitivamente justa.
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