RESPONSABILIDADE CIVIL: POR UM DIREITO MAIS HOLÍSTICO; POR UMA JUSTIÇA MAIS HUMANA

Por Cláudio Lúcio Firmo da Silveira | 19/05/2017 | Adm

 

 

RESUMO 

Analisa-se neste artigo científico o instituto da responsabilidade civil, abordando sua definição e seus pressupostos, evidenciando-lhes os elementos constitutivos: conduta, nexo de causalidade, dano e culpa, transpondo-o a outro patamar ante a perspectiva psicanalítica e sociológica.

 

1 INTRODUÇÃO 

O médico deixará ao jurista construir para fins sociais uma responsabilidade que é artificialmente limitada ao ego metapsicológico.

                                                                                                                                   FREUD 

Entende-se, preambularmente, a Responsabilidade Civil enquanto instituto altamente dinâmico e flexível, que, embora sofra constantes mutações, com o fito de satisfazer as necessidades sociais e dos agentes que permutam inter-relações, requer, ainda, seja submetido ao crivo de novéis olhares e perspectivas outras de forma que se evite a propagação de lides que muitas das vezes apenas se limitam a, ao final, a aplicação da letra estática da norma positivada.

O presente estudo aborda os pressupostos clássicos deste instituto, mas pretende mais que isso: procura ir para além do Direito; busca entender o homem em toda a sua dimensão, para que a Justiça realmente se estabeleça e a Jurisdição promova, de fato, a promoção social. 

 

2 RESPONSABILIDADE CIVIL 

2.1. Conceito 

Relaciona-se a ideia de responsabilidade civil à noção de não lesar outrem; define-se esta como a aplicação de medidas que constranjam alguém a reparar o dano causado ao outro em razão de sua ação ou omissão. No dissertar de Stoco (2007, p. 114): 

A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana (STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil: Doutrina e Jurisprudência. 7 ed.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 114).

 

Tal inteligência vai ao encontro com a dicção doutrinária de Silva (2008, p. 642) para quem responsabilidade civil se constitui

 

Dever jurídico, em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas. Onde quer, portanto, que haja obrigação de fazer, dar ou não fazer alguma coisa, de ressarcir danos, de suportar sanções legais ou penalidades, há a responsabilidade, em virtude da qual se exige a satisfação ou o cumprimento da obrigação ou da sanção (SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico Conciso. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 642).

 

As definições doutrinárias clássicas partem sempre do parâmetro histórico e etimológico, sem, contudo, por mais atualizada se encontre esse tópico do direito civil, abranger aspecto conceitual que contemple a interdisciplinaridade sempre defendida no âmbito da Ciência Jurídica e, de certa forma, lecionada nas academias, o que – inevitavelmente – resulta em um repetir conceitual mais ou menos igual, com pequenas variantes, como se pode observar na definição de Rodrigues (2003, p. 6), para quem

 

A responsabilidade civil é a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 4. p. 6).

 

Sem que se levem em consideração visões mais dilatadas, que abarquem uma cosmovisão mais holística e, por conseguinte, mais humana e justa, contemporaneamente se tende a não consentir – em uma espécie torpe e em certa medida perigosa de não deixar a vítima sem reparação de cunho pecuniário, como se isso por si só resolvesse a questão e tivesse o condão mágico de lhe restaurar o equilíbrio moral e patrimonial. Nessa linha de visão, Bittar (1994, p. 561) disserta que

 

O lesionamento a elementos integrantes da esfera jurídica alheia acarreta ao agente a necessidade de reparação dos danos provocados. É a responsabilidade civil, ou obrigação de indenizar, que compele o causador a arcar com as consequências advindas da ação violadora, ressarcindo os prejuízos de ordem moral ou patrimonial, decorrente de fato ilícito próprio, ou de outrem a ele relacionado (BITTAR, Carlos Alberto. Curso de Direito Civil. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 561).

 

Tal entendimento – meramente mitigado, mitificado e mistificado pela atualidade – se prende, em grande parte, a uma acepção etimológica, que há muito deveria encontrar-se superada.

Os doutrinadores e mesmos os demais operadores do Direito, por mais contemporâneos pretendam aparentar, sempre se deixam vincular a ideias meramente originária, sem inovarem em seus postulados ou em suas proposições; limitam-se antes a encravar raízes em conceitos vetustos, e o fazem – não por segurança jurídica – mas ante o medo de transcender os limites estabelecidos pela ‘velha guarda’ do conceito aprisionado, o que implica asseverar que ninguém, por maior desejo tenha, deseja arriscar-se ser ‘porta-bandeira’ ou ‘mestre-sala’ da inovação e da ousadia. O comodismo e o lenitivo podem trazer êxito às lides nas quais trabalham; mas, certamente, acarretará prejuízos à parte vencida. Não o prejuízo pecuniário ou o extrapatrimonial perseguido em si, mas a lesão moral que se inflige à parte vencida.

Impõe-se, entretanto, vislumbrar com maior acuidade de onde advém o pensar estreito da quase totalidade dos operadores, antes que se adentre ao mérito proposto pelo presente estudo.

Como sabido, a palavra ‘responsabilidade’ provém do latim respondere, e, de sua análise lexical, extraem-se os seguintes elementos de composição: ‘res’, elemento prefixal que significa “coisa ou bem que pertence ao mundo factível ou a plausíveis relações jurídicas”; ‘pondere’, raiz mórfica que significa “equilibrar”; e, o afixo ‘idade’ que imprime a ideia de ação.

Dessa análise morfológica, têm-se a maioria dos conceitos adotados na Ciência Jurídica; Cavalieri Filho (2010, p. 3) assenta sua fundamentação a partir desse mesmo entendimento histórico-lexical:

 

Em seu sentido etimológico e também no sentido jurídico, a responsabilidade civil está atrelada a ideia de contraprestação, encargo e obrigação. Entretanto é importante distinguir a obrigação da responsabilidade. A obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo consequente à violação do primeiro (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010, p. 3).

 

Limitar-se a isso ou prender-se a isso implica necessariamente desconsiderar seja o instituto da responsabilidade civil o tópico mais dinâmico, pulsante e vivo do Direito, porquanto se, à contumácia, irrompam novas teses jurídicas com o escopo de absorver as demandas sociais emergentes. Confiná-lo, pois, ao eremitério vetusto de definições que se adstringem ao pretérito que ignora a evolução pluridimensional que o porvir carrearia ao instituto, bem como de sua incidência e profundidade.

Cuida-se, no entanto, que a ideia de reparar o dano injustamente causado, por constituir-se inerente à natureza humana. Contudo, é exatamente por essa razão que o instituto demanda que seja sopesado à transcendência de olhar mais interdisciplinar, evitando-se, assim, injustiça; prevenindo-se que haja enriquecimento ilícito por parte de terceiros eivados de interesses escusos.

Impõe-se, pois, para que se evitem reparações ilícitas chanceladas pelo Judiciário, que a forma de reparação do dano efetivamente causado e cabalmente comprovado acompanhe a evolução social, e, mais que isso, se compreenda o homem como membro de uma sociedade em constantes mutações e ávido por transformações em si mesmo, ainda que não tenha percepção de tais fenômenos.

Não se pode afastar, apesar de todo o argumento científico e teórico que aqui se pretende constituir, a ideia genérica segundo a qual o instituto da responsabilidade civil se constitua no dever de reparar danos provocados em uma situação específica em que dada pessoa venha a suportar prejuízos jurídicos como sequela de atos ilícitos perpetrados por outrem. O que não se pode é consentir que o instituto se preste a constituir-se mero substituir de pena e, por conseguinte, facilitador de enriquecimento sem causa.

Dias (1987, p. 26) lembra que 

A indenização permanecia substituindo o caráter da pena, sendo que os textos relativos a ações de responsabilidade se espraiaram de tal forma que, em ultimo grau do direito romano, já não mais faziam menção apenas aos danos materiais, mas também aos danos morais (DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. 2, p. 26);

 

o problema maior consiste exatamente na averiguação, no constatar da extensão do dano e mensuração do quantum a ser arbitrado à reparação do prejuízo provocado por terceiro.

Exatamente por essas razões que o instituto merece ser analisado com maior acuidade, para que se abrolhem acuradas análises sobre casos concretos, até porque – ao que se percebe – a teoria clássica da culpa não foi de todo abandonada, inclusive, pela lei substantiva civil brasileira. 

 

3 ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE CIVIL 

 

Na doutrina, costuma-se classificar a responsabilidade civil em razão da culpa e quanto à natureza jurídica da norma violada. Aquela se divide em objetiva e subjetiva; esta em contratual ou extracontratual. 

 

3.1 Responsabilidade civil subjetiva e objetiva 

A responsabilidade civil subjetiva consiste naquela capitaneada por conduta culposa lato sensu, e engloba a culpa stricto sensu e o dolo. A culpa stricto sensu se caracteriza quando o agente gerador do dano praticar o ato com negligencia ou imprudência. O dolo, por vez, consiste na pretensão conscientemente dirigida à produção do resultado ilícito.

A necessidade de maior proteção à vitima fez nascer a culpa presumida, de sorte a inverter o ônus da prova e solucionar a grande dificuldade daquele que sofreu um dano demonstrar a culpa do responsável pela ação ou omissão.

Não se pode olvidar – desde já –, muito embora se abordará melhor o tema adiante, de que tanto a jurisprudência quanto a doutrina apreendem hodiernamente que o modelo de responsabilidade pautado na culpa tão-somente não basta para solucionar todos os casos; até porque o  paradigma da responsabilidade civil subjetiva deu-se ante a transformação das relações de produção advindos em decorrência da conflagração industrial, o que implicou, por conseguinte, maior probabilidade de acidentes de natureza laboral. A esse respeito Stoco (2007, p. 157) leciona:

 

O próximo passo foi desconsiderar a culpa como elemento indispensável, nos casos expressos em lei, surgindo a responsabilidade objetiva, quando então não se indaga se o ato é culpável. (STOCO, Rui. op. cit., p. 157).

 

Graças à transformação advinda da revolução industrial, nasceu a Teoria do Risco e da qual se irrompeu a denominada responsabilidade civil objetiva, que prescinde da culpa. Cavalieri Filho, ao conceituá-la, preleciona que

 

Todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa (CAVALIERI FILHO. op. cit., p. 137).

 

Não se pode olvidar de que a evolução do instituto da responsabilidade civil tenha sido abarcada pelo atual código civilista; entretanto, não abandonou integralmente a responsabilidade subjetiva, embora tenha estabelecido a responsabilidade objetiva, conforme se depreende da dicção do art. 927:

 

Art. 927. Haverá obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

 

Muito questionado pelos civilistas, coube ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei nº 8.078/90, carrear para o ordenamento jurídico brasileiro a responsabilidade objetiva, embora adstrita ao fornecedor e ao fabricante, desconsiderando o elemento culpa, como se erige nos arts. 12 e 14 da legislação consumerista:

 

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

 

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (CONGRESSO NACIONAL. Código de Defesa do Consumidor. 1990).

 

3.2 Responsabilidade Civil Contratual e Extracontratual

 

Consoante a natureza do dever jurídico violado, classifica-se a responsabilidade civil em contratual e extracontratual, que se configura em decorrência da celebração ou da execução contratual ou de um negócio jurídico unilateral. A respeito deste último, Fiuza (2011, p. 331) doutrina que

 

A responsabilidade por atos unilaterais de vontade, como a promessa de recompensa é também contratual, por assemelhação, uma vez que os atos unilaterais só geram efeitos e, portanto, responsabilidade, após se bilateralizarem. Se um indivíduo promete pagar uma recompensa a que lhe restitui os documentos perdidos, só será efetivamente responsável, se e quando alguém encontrar e restituir os documentos, ou seja, depois da bilaterização da promessa (FIUZA, Cesár. Direito Civil: Curso Completo. 15 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 331).

[...]

Artigo completo: