Resenha: Um estudo sobre a constituição profissional de uma professora alfabetizadora
Por Ivânia Pereira Midon de Souza | 19/08/2010 | EducaçãoResenha: Um estudo sobre a constituição profissional de uma professora alfabetizadora
Ivânia Pereira Midon de Souza
Obra: Memórias da trajetória de uma alfabetizadora: Entrecruzando vozes e tecendo fios.
Autoras: Cancionila Janzkovski Cardoso e Lázara Nanci de Barros Amâncio
Biografia das autoras:
Cancionila Janzkovski Cardoso
Possui graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso - Campus de Rondonópolis (1984), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995), doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000), com estágio no Institut National de Recherche Pédagogique (Paris) e pós_Doutorado pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso, trabalhando na graduação no campus de Rondonópolis e na pós-graduação nos campi de Cuiabá e Rondonópolis. Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: história da alfabetização, cartilhas escolares, memórias de professoras e alfabetização e letramento. Coordena o Mestrado em Educação da UFMT, campus de Rondonópolis, e o Grupo de Pesquisa ALFALE - Alfabetização e Letramento Escolar.
Lázara Nanci de Barros Amâncio
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso (1984), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Goiás (1994), doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000) e pós-doutoramento pela Unicamp (2007). É professor titular da Universidade Federal de Mato Grosso, com experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: alfabetização, cartilha, história da alfabetização, ensino de leitura e educação..
SUGESTÕES DE OBRAS
Cancionila Janzkovski Cardoso Da oralidade à escrita: o processo de produção do texto narrativo no contexto escolar" (INEP/COMPED e EdUFMT, 2000); A socioconstrução do texto narrativo no contexto escolar: uma perspectiva longitudinal (Mercado de Letras, 2003); O que as crianças sabem sobre a escrita? (EdUFMT e Central de Textos, 2009), além de capítulos de livros e artigos em periódicos.
Lázara Nanci de Barros Amâncio
Cartilhas, para quê? e Ensino de Leitura e Grupos Escolares (Mato Grosso 1910-1930). Co-autora da obra História da Alfabetização: produção, difusão e circulação de livros (MG/RS/MT- Séc. XIX e XX) entre outras.
Memórias da trajetória docente de uma alfabetizadora: Entrecruzando vozes e tecendo fios é um texto revisto e ampliado apresentado inicialmente no 15º COLE (Campinas, 2005). Trata-se do segundo capítulo do livro História da Alfabetização: produção, difusão e circulação de livros (MG/RS/MT-Séc.XIX e XX.). Livro resultado de uma pesquisa interinstitucional (UFTG, UFMT e UFPel) que discorre sobre a trajetória histórica da alfabetização utilizando como objeto e fonte de pesquisa o uso e a circulação de livros de alfabetização nos referidos Estados.
As autoras abordam no presente texto, aspectos das políticas educacionais e sua influência nas práticas escolares, recorrendo ao conceito de cultura escolar como sendo "... um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos". (JULIA, 2001,p.10-11).
As autoras iniciam o texto discorrendo sobre a dificuldade de reconstituição das práticas escolares cotidianas em função da insuficiência e quase inexistência de registros escolares para serem utilizados como fonte nas pesquisas históricas. Por essa razão as autoras afirmam serem escassos trabalhos que se utilizam dessas fontes, de modo que muitos pesquisadores têm recorrido ao uso de fontes orais, que apesar de sua exagerada subjetividade e, portanto, serem consideradas questionáveis, são as formas encontradas pra a composição de registros históricos de práticas escolares.
Amâncio e Cardoso citam Thompson (1992), para fundamentar as vantagens do uso de registros orais uma vez que o autor afirma que dessa forma existe a possibilidade de "se ouvir a versão de pessoas comuns , mas que participaram e vivenciaram a história". Após uma breve discussão sobre o uso da História Oral, definem a metodologia de trabalho com a utilização de técnicas de inquirição por entrevistas da História Oral, ressaltando aspectos da história de vida dos entrevistados, suas memórias de escolarização e sua profissionalização, além da análise de métodos de alfabetização, cartilhas e livros utilizados, professores e colegas, conteúdos e práticas escolares, entre outros fatores.
Os sujeitos da pesquisa foram professores que atuaram entre as décadas de 40 à 2000, totalizando 20 entrevistados. Apesar da riqueza de dados que a pesquisa arrecadou, o presente texto aborda a história de uma única alfabetizadora. Sua escolha se deve ao fato das pesquisadoras terem entrevistas com ela que se estendiam ao longo de uma década, o que enriquece a análise histórica dos dados obtidos. Partindo da observação da história de vida de uma alfabetizadora foi possível reconstituir fatos passados do meio escolar. Nessa análise de vida foi possível observar que na constituição da prática pedagógica os aspectos de formação profissional se misturam a elementos pessoais e sociais. Assim sua história de vida, e incluindo nesta sua história de iniciação profissional, constituem-se em aprendizagens que acontecem em diversos contextos e acabam por determinar a prática dessa professora.
As autoras descrevem a carreira profissional da professora, sua experiência como aluna e seu processo de constituição como professora. A mesma iniciou como professora leiga, continuou os estudos, ingressou no magistério e após um certo período volta aos bancos escolares para cursar pedagogia. Segundo as pesquisas citadas pelas autoras, a história profissional da professora retrata uma realidade comum em Mato Grosso, onde grande parte dos profissionais da educação no período pesquisado começam atuar sem o preparo profissional adequado, mas que ao longo da carreira profissional vão se formando.
Chama-nos atenção os parágrafos do texto referentes a influência da história de vida da professora como aluna em sua constituição profissional, em que fica evidente que os fatos considerados negativos ou fonte de sofrimento para ela durante sua vida de aluna, despertou nela reflexões para a constituição de sua prática como professora alfabetizadora. Tais eventos são levantados por ela como exemplos a não serem seguidos. Esse depoimento confirma que nossa formação enquanto professores inicia com a nossa própria experiência escolar enquanto alunos, constituindo essa etapa, em parâmetros a serem evitados ou seguidos e também como fonte de reflexões que impulsionarão a busca de formação profissional e conhecimentos que facilitem e melhorem nossa prática.
No item 4 intitulado "Concepção de aprendizagem: indícios de novos saberes" as autoras procuram demonstrar com base nos depoimentos da professora, como ela se apropriou dos novos conhecimentos e concepções de aprendizagem trazidas por Emília Ferreiro tais como o construtivismo, centradas em questões ligadas ao processo de aprendizagem das crianças, deslocando o foco do ensino e dos métodos para a compreensão de como a criança aprende. Nesse item as autoras demonstram as transformações conceituais de ensino-aprendizagem da professora que passa a refletir sobre a impossibilidade de controle total do avanço da aprendizagem dos alunos.Tal reflexão fica evidente na fala da professora quando a mesma afirma observar que as crianças podem avançar nas leituras, mesmo que ela ainda não tenha ensinado aquela lição.
Já na 5ª parte do texto intitulado Metodologia de trabalho com a alfabetização e o uso do material didático: da cartilha necessária à " Cartilhas para quê" as autoras explicam como a mudança de concepções sobre a alfabetização da professora foi impulsionada pela novas exigências para o ensino da língua portuguesa geradas também pelas demandas sociais de leitura e escrita, trazendo informações quanto à mudança da metodologia de trabalho da professora e uso que ela faz do material didático durante seus anos de alfabetização.
Cardoso e Amâncio descreve a mudança de concepções da professora sobre a sua prática de alfabetização e sobre o uso da cartilha, onde a mesma admite os limites pedagógicos e de conhecimentos de suas ações anteriores, alegando ser a cartilha o único material disponível em que poderia se pautar para o exercício da alfabetização. Segundo as autoras, essa mudança de concepção é fruto da própria experiência prática, onde novos saberes e necessidades foram sendo constituídos. Além disso, nas últimas décadas o uso das cartilhas foi tão questionado e discutido em função do aparecimento da necessidade de letramento das crianças entrelaçadas às práticas de alfabetização, que certamente a professora entrou em contato com essas novas concepções de alfabetização durante as formações das quais participou, como o Gestar, por exemplo. Após essas formações a professora faz uma análise crítica de suas ações frente ao uso das cartilhas e aos demais livros didáticos. Esse fato deve-se, segundo a análise das autoras, às políticas nacionais que aconteceram a partir da segunda metade da década de 90. Dentre elas a aprovação da LDB de 1996, a elaboração dos PCNs em 1997 e a criação do SAEB em 1995. As autoras afirmam que as novas orientações teóricas impunham às professoras uma urgente apropriação, além de desqualificar sua profunda e arraigada cultura pedagógica.
Considerações finais
O tema discutido pelas autoras é bastante pertinente no entendimento de como nós professores sem exceção, constituímo-nos como profissionais, ressaltando a coragem e sensibilidade das pesquisadoras no lidar com situações tão delicadas que dizem respeito à intimidade e muitas vezes fragilidades de vida das pessoas. Essa pesquisa trouxe-nos informações muito relevantes para o entendimento dos problemas que alfabetização apresenta, de forma a fazer-nos refletir sobre como os professores, antes de serem julgados, precisam mais é de incentivos e ajuda (formação) para exercerem sua prática de maneira eficaz. A professora entrevistada, ao meu ver apresentou também muita dignidade e coragem para expor suas fragilidades ao descrever sua intimidade pedagógica , arriscando-se ao julgamento daqueles que possivelmente não teriam a mesma disposição ou a mesma coragem. Acredito que trabalhos que procuram compreender a prática pedagógica buscando as fontes nos sujeitos e no chão da escola são os que mais significadamente nos trazem informações importantes para a melhoria do trabalho educativo. Isso porque, no relato dos sujeitos acabamos por nos identificar, sensibilizando-nos e refletindo como podemos sempre melhorar reconhecendo o nosso papel na transformação da educação no Brasil.
Referência Bibliográfica
CARDOSO, Cancionila & AMANCIO, Lazara Nanci de Barros. Memórias da trajetória docente de uma alfabetizadora: Entrecruzando vozes e tecendo fios. In: FRADE, I.C.A.S & MACIEL, F. I. P.(orgs) História da Alfabetização: produção, difusão e circulação de livros (MG/RS/MT-Séc.XIX e XX). Belo Horizonte: UFMG/FAE, 2006.