Resenha - Estação Carandiru, de Drauzio Varella

Por Augusto Kummer | 09/05/2017 | Direito

Drauzio Varella, médico de renome no país e há muitos anos na profissão, fez trabalho voluntário para prevenção da AIDS, por 10 anos, na maior casa de detenção da história do Brasil, o Carandiru. Lá, além de inúmeras pessoas que conheceu e amizades que fez, vivenciou tantas outras incontáveis experiências, muitas delas relatadas no livro denominado Estação Carandiru, publicado em 1999 pela Editora Companhia das Letras. 

O livro intitulado “Estação Carandiru” trata de um relato verídico do Dr. Drauzio Varela em sua experiência como médico voluntário em 1999, no maior presídio do país, denominado Carandiru, em referência ao bairro onde estava localizado, tendo capacidade máxima permitida de 4.000 detentos, porém, na época e até o fatídico massacre que lá ocorreu, estavam presos cerca de 7.000 homens, o que da uma dimensão da superlotação, uma vez que haviam celas que tinham até 20 pessoas. 

Os presos dormiam amontoados, e viviam em condições “insalubres”, os presos que estavam doentes, não tinham o tratamento adequado e muitas vezes dividiam celas com os saudáveis, podendo até contaminar, dependendo a sua enfermidade. 

O formato do livro está dividido em crônicas, onde o médico relata de forma detalhada, sua experiência de 12 (doze) anos, convivendo semanalmente dentro da casa de detenção, bem como faz uma análise do ser humano que vive em cárcere e desmistifica alguns paradigmas pela sociedade criada. 

O trabalho voluntário do médico era basicamente orientar os apenados em relação à prevenção do Vírus da AIDS (HIV) e com essa convivência criou amizades e teve a confiança de muitos apenados que lá residem, conhecendo de perto este mundo à parte. 

O interesse do médico voluntário surgiu, da necessidade e da vontade de ajudar além do que já se fazia, que eram as palestras. O ideal, seria uma equipe médica especializada e bem remunerada para atender exclusivamente os apenados, porém, como a realidade carcerária é conhecida por todos em nosso país, sabemos que não é possível isso, pois nem policiais temos o suficiente para garantir a segurança deles. O médico exercia a função sozinho, contado apenas com ajuda de seus assistentes detentos, inclusive correndo o risco de contágio de doenças transmissíveis, em função da precariedade dos equipamentos. 

O livro conta basicamente, histórias sobre a experiência do renomado médico na cadeia, até a grande rebelião que ficou “famoso” pelo massacre ocorrido em 1992. 

No livro, o escritor começa ambientando o leitor sobre a prisão, detalhando os lugares por onde passou e descrevendo detalhadamente cada um dos nove pavilhões do presídio, para que facilite a localização do leitor na casa prisional, uma vez que poucas pessoas tem acesso livre nesses pavilhões. 

Ao chegar na casa de detenção, o apenado passa por uma triagem, ou seja, dependendo o tipo de crime que cometeu, se é primário ou não vai para diferentes pavilhões. Após breve relato expositivo sobre os ambientes, o autor começa de fato a escrever sobre suas experiências e a relatar histórias e falar um pouco sobre a personalidade de cada um dos presos. Em vários trechos ele cita ter sentido medo, mas em outros ele os trata como velhos conhecidos. No Carandiru eles tem suas próprias regras, no sentido de que há uma hierarquia e há regras entre eles. 

O livro relata a vida pregressa dos detentos, ou seja, suas origens, o que os motivou entrar na vida do crime, quais crimes cometeram, e o que pensam em fazer após saírem, e se mesmo tem esperança de um dia sair. 

O autor descreve conversas com os presos e inclusive mantém suas gírias, o que dá um tom muito informal e realista para o livro. 

A leitura é difícil, pois se trata de uma outra realidade, como se fosse um mundo à parte, uma vez que não faz parte do cotidiano da maioria das pessoas, por outro lado talvez seja isso que faça o livro ficar tão interessante, pois a sociedade em geral costuma julgar e condenar os presos, sem saber o sacrifício e as dificuldades enfrentadas pelos mesmos. 

No geral, a mídia brasileira não está preocupada em saber as condições de vida e como se comporta um presidiário nas casas de detenção, a imprensa só cobra atitudes dos Governantes para “jogar” os criminosos na cadeia, 

No livro, embora se fale da vida na detenção, nenhum apenado é “santificado” ou “condenado”, apenas são expostos fatos relevantes do convívio e impressões gerais do autor, sem minimizar seus atos ou mesmo justificar, pois de longe não pareceu a intenção do livro. 

Os relatos do livro são conversas informais, experiências e causos ocorridos durante o trabalho voluntário realizado na detenção, em função do crescente número de casos de HIV no Carandiru, e fez deste trabalho uma missão, e com esse trabalho conheceu pessoas e fez amigos. 

Em vários trechos fica evidente, que a postura do autor é também mostrar o lado humano de quem está lá dentro, e não tão e somente a postura fria do condenado, como se observa em vários trechos, mas uma em especial, em que numa das palestras realizadas na sala de cinema, um dos detentos, que se “achava”, o meu encarado, fortão, anda na direção do médico, com queixo levantado, deixando o médico um tanto quanto intimidado, porém ao se aproximar do médico, simplesmente se oferece para ajudar. 

O livro também nos mostra, a dura realidade do nosso sistema prisional. A falta de dignidade e o sonho praticamente utópico da ressocialização. 

Para muitos dos detentos que estavam lá, o “crime” era só uma forma de garantir o sustento da sua família, como se fosse um trabalho como outro qualquer, contudo eram exemplares pais de família e maridos. O que mais choca é a falta de princípios e noção de realidade, do certo e do errado, lendo essas coisas cada vez me convenço mais, de que só a educação pode mudar o nosso país. 

O ponto mais chocante do livro, é o relato sobre o massacre ocorrido em 1992, que chocou não só a cidade de São Paulo, como todo o país; uma vez que segundo os apenados, tudo começou com uma briga de motivo torpe, e tomou dimensões jamais vistas e esperadas, passando para uma rebelião. 

O autor, ouviu e relatou apenas a versão contada pelos presos, o que por óbvio diverge da contada pelos policiais, não se sabe ao certo quantos foram os mortos, mas aproximadamente 110, de forma violenta e brutal, em ato de possível abuso de poder. 

Atualmente se fala muito em redução da maioridade penal devido aos altos índices de crimes praticados por menores de idade, porém, ao ler este livro e conhecer a dura realidade lá dentro, de alguém que efetivamente conheceu e conviveu com os detentos, me pergunto se é o ideal, ou se não vamos “fabricar” mais infratores e criminosos; pois lá, se vive em um mundo paralelo, com regras e Leis diferenciada das nossas, muitos infratores saem de lá verdadeiros peritos no crime. 

Sob uma ótica bastante crítica, teríamos que analisar detalhadamente o ambiente que esses jovens vivem, sua família, seus amigos, e as oportunidades de vida que lhe foram dadas, para assim compreender sua essência e o porquê de suas escolhas; a partir disso, pode-se perceber a influência do meio em que se vive para se tornar ou não um criminoso. Não se trata simplesmente de julgar ou condenar; trata-se de compreender o que o limita, o que o diferencia para que as gerações futuras, não façam as mesmas escolhas, e isso está ligado a uma conscientização e consequente diminuição na violência. 

Há algumas décadas, uma Universidade americana realizou uma experiência para compreender como diferentes grupos reagiram a uma igual situação, eles deixaram dois carros idênticos abandonados na rua, em dois bairros distintos, um de classe baixa e conflituosa, outro de classe alta, distinta; e os especialistas ficaram estudando as condutas das pessoas dos locais. O resultado foi o seguinte: o carro deixado no bairro mais pobre e violento, foi destruído e saqueado em poucas horas, já o carro deixado em um bairro de classe alta, ficou intacto, logo após um dos pesquisadores quebrou uma das janelas e algumas partes do automóvel e a partir deste momento o carro foi completamente destruído. O que se compreende através deste estudo é que a classe social não interfere na conduta do ser humano, mas que quando se há chance, independente de classe social existem vândalos e pessoas que sentem prazer em destruir o patrimônio alheio, e isso inclui o início para o mundo do crime. 

O livro conta a realidade sob um ponto de vista, e isso pode ou não ser bom, uma vez que ao conviver com os detentos o autor passa a os ver com outros olhos, e se percebe isso nas passagens em que ele admite sentir medo, mas que aos poucos, até o mais violento e agressivo o oferece ajuda, com isso fica evidente que até o modo como os detentos o viam e como ele via os detentos ao longo da convivência estava mudando. 

Dentre as diversas peculiaridades da casa de detenção, tais como, por exemplo, a chamada “Faxina” ser a espinha dorsal da cadeia, mantendo a ordem da casa e sendo organizada, ao mesmo tempo, pelos próprios presos, o livro relata a história de várias pessoas, presos e funcionários, em uma linha bastante imparcial, onde o Autor não busca condenar o sistema carcerário ou a rotina da prisão, e sim apresentar a realidade nua e crua do local, conhecida através da experiência de 10 anos de trabalho voluntário, ajudando, na medida do possível, os necessitados. 

No livro, como disse anteriormente, nenhum deles foi julgado pelo autor, porém suas histórias nos fazem refletir o quanto falta dignidade no tratamento com os nossos presos e o quanto precisamos avançar no quesito humanidade, e oportunizar uma vida digna para qualquer um brasileiro, independente dos erros e dos acertos que tenham cometido. 

O Brasil é um país muito rico, apesar da atual situação e muito solidário, quando falamos em ajudar os necessitados e os idosos, porém é um país que esquece os presidiários (pois estes não têm poder de voto). Julgamos as pessoas sem conhecer e todos são a favor da Pena de morte, esquecendo de toda injustiça que é cometida diariamente, condenando inocentes e absolvendo culpados. 

Quando digo que precisamos investir mais em educação, digo isso, pois só assim poderemos ter uma sociedade crítica e pensante capaz de questionar os atos de seus governantes e ajudar a construir um país menos desigual. 

Tenho certeza que após cada dia de voluntariado, o médico ia para sua casa confortável e agradecia o privilégio de ter um teto para morar, uma comida para comer, de outro modo deve ter sido enriquecedor conviver com seres humanos com tantas histórias e ao mesmo tempo tão carentes por uma palavra de amizade e um pouco de dignidade, pois era isso que o autor levava para eles, dignidade e garantia a eles acesso a saúde. 

O trecho final do livro, relata o massacre de outubro de 1992, em uma perspectiva geral, mas a história de um sujeito chama a atenção. Na véspera da invasão, Dadá, um dos detentos, recebeu uma carta de sua mãe, mulher religiosa, onde a mesma pedia que o filho não deixasse de ler o Salmo 91 da Bíblia. O pedido não foi atendido no dia, Dadá sequer possuía uma Bíblia. Ao fim do fatídico dia de 02/10/1992, sobrevivente, fulano procurou ler a recomendação de sua mãe: mil cairão a teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido; nada chegará a tua tenda. 

Enfim, trata-se de uma leitura muito rica, que põe o leitor à par de uma realidade, na maioria das vezes, completamente desconhecida ou ignorada. 

 VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.