RESENHA CRÍTICA:Memória e História
Por Maria Lúcia Wochler Pelaes | 27/10/2010 | HistóriaRESENHA CRÍTICA
LE GOLF. Memória e História. São Paulo: Papirus, 1999. p.423-483
Maria Lúcia Wochler Pelaes
MEMÓRIA
O autor aborda, neste capítulo, os diferentes conceitos sobre a "memória" e as respectivas funções no meio social.
Introduz o capítulo referindo-se a memória "como propriedade de conservar certas informações", ligada às funções psíquicas, através das quais o homem pode "atualizar impressões ou informações passadas"(p.423).
Cita também os diversos sistemas de educação da memória que existiram nas várias sociedades e em diferentes épocas: as mnemotécnicas.
Entre os autores citados, merece uma atenção especial Pierre Janet, o qual fornece ao conceito de memória aqui apresentado, as noções de "comportamento narrativo" e "função social", relacionadas ao ato mnemônico enquanto comunicação de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que o motivou (p.424-425).
O autor cita Leroi-Gourhan que referi-se a memória em sentido lato, distinguindo três tipos de memória: a memória específica para "definir a fixação dos comportamentos de espécies animais", a memória étnica que "assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas" e a memória artificial, que "possibilita a reprodução de atos mecânicos encadeados"(p.425-426).
Ainda na introdução do capítulo delimita a base de sua análise, calcada na valorização das relações entre memória e história.
Seu trabalho apresenta inicialmente um estudo da memória nas sociedades sem escrita, antigas ou modernas, distinguindo na história da memória, nas sociedades que têm simultaneamente memória oral e memória escrita, a fase antiga de predominância da memória oral em que a memória escrita ou figurada têm funções específicas; apresenta, numa segunda etapa, a fase medieval de equilíbrio entre as duas memórias com transformações importantes das funções de cada uma delas; a fase moderna de processos decisivos da memória escrita, ligada à imprensa e à alfabetização; e, por fim, numa terceira etapa, reagrupa os desenvolvimentos do último século relativamente ao que Leroi-Goourhan chama "a memória em expansão"(p.427).
O autor desenvolve os estudos apresentados acima em seis sub-ítens:
1. A memória ética.
Neste tópico o autor comenta sobre o desenvolvimento da memória coletiva, fazendo parte da vida cotidiana para os povos sem escrita, citando Leroi-Gouhan e Goody.
Cita também alguns exemplos da cultura de povos primitivos e de que forma desenvolviam uma memória coletiva.
Comenta, citando Goody, que a memória coletiva nas sociedades "selvagens" não se desenvolve palavra por palavra, numa aprendizagem mecânica, mas como uma "construção generativa", dentro de uma dimensão narrativa e em outras estruturas da história cronológica dos acontecimentos (p.428-430).
2. O desenvolvimento da memória: da oralidade à escrita, da Pré-história à Antiguidade.
Neste tópico o autor comenta o aparecimento da escrita, estando ligado à uma profunda transformação na memória coletiva, permitindo o desenvolvimento de duas formas de memória: a primeira , em forma de monumento comemorativo de um acontecimento marcante e a segunda, a inscrição em pedra, suscitando na época moderna, uma ciência auxiliar da história, a epigrafia (p.431).
Comenta a grande importância da memória funerária, como as estelas sacerdotais ou reais egípcias, nas quais existe a presença de uma "narrativa histórica" que funciona como um arquivo mnemônico dos acontecimentos significativos da época, assim como a importância dos documentos arquivados nos mais diferentes suportes (osso, estofo, pele, papiro, pergaminho, papel, entre outros). E com isso a criação de "instituições de memória", como arquivos, bibliotecas e museus, permitindo registros da "memória real", onde estão narrados feitos que estabelecem "a fronteira onde a memória se torna história" (p.432-434).
O autor comenta a transformação ocorrida nos processos de "memória artificial", com a passagem da oralidade à escrita e o aparecimento de "processos mnemotécnicos", permitindo a memorização palavra por palavra, que segundo Goody, trata-se de uma operação efetuada numa certa ordem e que permite "descontextualizar" e "recontextualizar" um dado verbal, segundo uma "recodificação lingüística" (p.435-436).
Cita também Platão, em Fedro, numa colocação contrária à anterior, onde a memória escrita contribuiria para o desaparecimento das tradições da memória oral (p.437).
Comenta ainda a importância da laicização da memória relativa à invenção da escrita permitindo à Grécia criar novas técnicas de memória: a mnemotecnica e suas distinções entre os lugares da memória e a memória artificial dividida em"câmaras de memória" entre outros procedimentos que permitiam a recordação mnemônica.(p.440-441).
3. A memória medieval no Ocidente.
Neste tópico o autor comenta a "cristianização da memória" e da mnemotécnica, através da repartição da memória em uma memória litúrgica e uma memória laica, de fraca penetração cronológica, desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente dos santos, papel da memória no ensino que articula o oral e o escrito e o aparecimento, enfim, de tratados de memória (artes memoriae), caracterizando a intensa variedade nos sistemas de memória da Idade Média (p.443)
O autor cita, entre outros exemplos, o Antigo Testamento, principalmente o Deuteronômio, que "apela para o dever da recordação e da memória constituinte", como fundadora da identidade judaica. Ao citar o Novo Testamento, coloca a recordação de Jesus numa perspectiva escatológica, negando a experiência temporal e a história, confirmando uma das vias da memória cristã (p.443-444).
Cita também Agostinho, o qual deixa na suas confissões, "parte da concepção antiga dos lugares e das imagens de memória, dando-lhes uma extraordinária fluidez psicológicas, referindo-se a "imensa sala da memória" e a sua "câmara vasta e infinita"(p.445-446).
Tomás de Aquino é citado, entre outros, como particularmente apto a tratar da memória, principalmente no que se refere a memória artificial, que se destaca no ensino de Alberto Magno.
Alberto, a partir da doutrina clássica dos lugares, formulou algumas regras mnemônicas: a idéia dos "simulacros adequados das coisas que se deseja recordar" ligados à relações corpóreas; em seguida, racionalizar sobre a ordem dos fatos; depois , a efeito de estimulação da memória, "meditar com freqüência no que se deseja recordar"(p.454-455).
4. Os progressos da memória escrita e figurada da renascença aos nossos dias.
Neste tópico o autor comenta a importância da invenção da imprensa para a constituição da memória ocidental, proporcionando o acesso do leitor comum à uma memória coletiva, assistindo-se então, à exteriorização progressiva da memória individual, tendo uma importante conseqüência: "a teoria clássica da memória formada na Antigüidade greco-romana é modificada pela escolástica, que tivera um lugar central na vida escolar, literária e artística da Idade média, desaparecendo quase que completamente no movimento humanista"(p.457).
Ao citar Pierre de la Ramée, observa que as técnicas de memorização antigas são substituídas por novas, que segundo Ramée, obedessem à uma ordem dialética. Nos sistemas escolares as matérias relacionadas ao estímulo da mémoria, diminuem de importância numa corrente "anti-memória", enquanto que os estudiosos do desenvolvimento cognitivo, como o expoente Jean Piaget, demonstraram que a memória e a inteligência se complementam (p.459).
É comentada também a contribuição dos vocabulários descritos em dicionários, como importante fonte de pesquisa, mostrando que "a vida cotidiana foi penetrada pela necessidade de memória". Quanto ao alargamento da memória coletiva, cita Leroi-Gourhan: "Os dicionários atingem os seus limites nas enciclopédias de toda a espécie que são publicadas" (p.460-461)
Após a Revolução Francesa, como comenta o autor, "assiste-se a um retorno da memória dos mortos na França, como em outros países da Europa", evocando um rito de lembrança e visita à cemitérios (p.462).
Após esse período, o autor comenta que se desenvolve a laicização das festas e do calendário, facilitando em muitos países a multiplicação de comemorações e a conseqüente manipulação da memória coletiva, voltada para a lembrança de fatos históricos, ligados aos conservadores e nacionalistas da época (p.463).
Cita ainda o movimento científico do século XVIII destinado à conservação da memória nacional, através da criação de "Arquivos nacionais" e os "depósitos centrais de arquivos" e com isso o desenvolvimento das bibliotecas (p.464-465).
É importante ressaltar neste tópico a apresentação da "fotografia" como importante meio de revolução dos sistemas de memória, permitindo que se multiplique e popularize um processo de memória preciso, que registre a memória temporal e cronológica, criando uma memória social, que segundo Pierre Bourdieu "As imagens do passado dispostas em ordem cronológica,(...) evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada(...)"(p.466).
5. Os desenvolvimentos contemporâneos da memória.
Neste tópico o autor comenta a grande transformação da memória coletiva no século XIX e XX, significando um "salto" nos sistemas mnemônicos, tal qual a memória compilada em fichas, significando a organização do conteúdo das bibliotecas, semelhante a um "córtex cerebral exteriorizado", porém sem meios próprios de rememoração (p.467).
Os desenvolvimentos da memória coletiva no século XX, como comenta o autor, constituem uma verdadeira revolução da memória , sendo a memória eletrônica o mais significativo (p.467).
O autor observa que há duas conseqüências importantes com o aparecimento da memória eletrônica: a utilização da calculadora nas ciências sociais e a utilização do computador, constituindo um novo tipo de memória arquivista, o banco de dados (p.468-469).
É também citada a memória hereditária, como uma mensagem encerrada no código genético, constituindo uma memória biológica semelhante a eletrônica, enquanto programa onde se fundem duas funções: "a memória e o projeto". E contrariamente aos computadores, a mensagem hereditária não permite qualquer intervenção exterior, não podendo haver mudança do programa (p.470-471).
É citado Freud, sobre a Interpretação dos sonhos, onde afirma que "o comportamento da memória durante o sonho é certamente significativo para toda a teoria da memória", quando a memória é fonte de conhecimento latente, de esclarecimento da vivência individual e coletiva da infância (p.471).
É feita uma análise das grandes transformações porque passou a memória coletiva, através da constituição das ciências sociais e a instituição de lugares de memória coletiva topográficos e simbólicos, determinando a renúncia a temporalidade linear em proveito dos "tempos múltiplos" em arquivos que fazem a memória histórica (p.473).
6. Conclusão: a valor da memória.
São apresentadas conclusões do estudo realizado no capítulo, sendo possível extrair quatro conceitos fundamentais:
? A memória como elemento essencial na constituição da identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma atividade fundamental dos indivíduos e das sociedades de hoje (p.476);
? A memória coletiva é mais que uma conquista, sendo também um instrumento e um objeto de poder (p.476);
? A constituição de uma memória coletiva ligada estritamente a uma classe social dominante, como o caso da historiografia etrusca, determinou uma ausência de memória quando a civilização desapareceu (p.476);
? Em estudos sobre a memória familiar para o "homem comum" africano e o europeu, descobriu-se que todo aquele aparato de memória extra-oficial, "as recordações familiares, às histórias locais, de clã, de famílias, de aldeias, às recordações pessoais...,(...) de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (...), contrapondo-se a um conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos" (p.477).
Em conclusão, o capítulo "memória", ao ser analisado, constitui importante fonte de pesquisa em qualquer área de conhecimento, porém em especial na área de história, fornecendo conteúdo enriquecedor, relativo aos conceitos de memória coletiva, estabelecidos a partir do estudo da função social da memória.