Resenha comparativa dos livros "Espetáculo das raças" e "Preto no branco".

Por Emanuela Faleiro | 28/05/2015 | Sociedade

Resenha  Comparativa dos livros O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930 de Lilia Moritz Schwarcz  (1993) e Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1976).

O livro O  Espetáculo das Raças, de Lilia Schwarcz, tem o propósito de levar o leitor a compreender a importância e  as transformações da teoria racial no Brasil entre os anos de 1870 e 1930. Nele é destacado o processo de reconstrução de conceitos e modelos, como também o período em que  esses conceitos estiveram em voga no Brasil. 

Logo no início do livro é apresentado o fato de que o Brasil sempre foi visto, especificamente no final do século passado, como um caso único e singular de extremada miscigenação racial, apontando a fala de alguns intelectuais da época, como o crítico literário Silvio Romero, que afirmava que “formamos um país mestiço... somos mestiços se não no sangue ao menos na alma” (ROMERO apud SCHWARCZ, 1993, p. 11).          

O que é relevante para a autora é o entendimento de que o fator racial foi constituído como um argumento histórico e político, da mesma forma que o conceito raça foi criado como uma designação que vai além do sentido biológico, para receber um viés sobretudo social.

Assim, para se compreender como as teorias estavam ocorrendo e sendo absorvidas naquele contexto, tornou-se necessário a reflexão sobre a originalidade da visão racial por parte do povo brasileiro, que muito se esforçava para seguir os padrões europeus, no que condiz ao ideal de civilização. Muito embora tenha chegado tardiamente no Brasil, as teorias raciais foram muito bem recebidas pela elite intelectual nacional, que era composta principalmente por áreas como literatura e direito, sendo que muitos também eram da área de medicina.

  Os grupos intelectuais dos diversos estabelecimentos de ensino e pesquisa do país, os que eram intitulados como “homem de ciência” – só de ciência, não podendo ser nada fora dela, o que era a fala da personagem Simão Bacamarte, de Machado de Assis –  foram designados para fazer uma profunda reflexão referente à nação brasileira, o que estava em seu porvir e as dificuldades que poderiam ocorrer,  ou seja, os impasses decorrentes das teorias raciais.

Os  estudiosos considerados como intelectuais que lutavam pelo progresso científico do Brasil, os “homens de ciência”, eram das mais diversas áreas, são eles: Manoel de Oliveira Lima, do IAGP; Francisco José de Oliveira Viana, do IHGN; Tobias Barreto, da Faculdade de Direito de Recife; Silvio Romero, da Faculdade de Direito de Recife; João Batista Lacerda, do Museu Nacional; Raimundo Nina Rodrigues, da Faculdade de Medicina da Bahia; Euclides da Cunha, do IHGB; Edgard Roquete Pinto, do Museu Nacional; Herman Von Ihering, do Museu Paulista; Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; Miguel Pereira, da Academia de Medicina do Brasil; A. A. de Azevedo Sodré, da Faculdade de Medicina do Rio do Janeiro.   

 As doutrinas raciais do século XIX foram introduzidas no cenário brasileiro a partir de 1870, o evolucionismo, o positivismo, o naturalismo e o social darwinismo foram difundidos no Brasil de forma coletiva, o que acarretou uma percepção mais únivoca dessas correntes, sendo que a noção de evolução social funcionava como um paradigma da época, atentando-se mais uma única interpretação, do que para suas especificidades.

 De acordo com Schwarcz (1993) essas teorias raciais europeias passaram por adaptações e atualizações, pois considerou-se o contexto político e social brasileiro,  já que os estudiosos do período fizeram uso do que condizia com a realidade do país e deixaram de lado o que consideravam que seria um problema para a construção da argumentação racial da nação brasileira.

Desse modo, essas teorias foram transformadas em argumento que atingiu grande efetividade para estabelecer critérios distintivos de cidadania e também serviram para legitimar a antiga ordem escravocrata, além de servir como um projeto com intuito de civilizar o país.

A autora coloca que os homens de ciência, que foram tidos como os ricos de cultura, adotaram essas teorias evolucionistas, muito embora já estivessem desacreditadas na Europa. Esses estudiosos fizeram dessas correntes e da interpretação de manuais positivistas e darwinistas sua principal ocupação. É interessante observar que transformaram-nas em um instrumento que embasou um pensamento conservador e autoritário sobre as hierarquias sociais que já estavam arraigadas no país.

O objetivo dessas construções teóricas dos intelectuais da época foi representar uma solução que fosse original para os problemas do Brasil, que simbolizava uma nova visão materialista e moderna de compreensão do mundo (Schwarcz, p. 41, 1993). É importante ressaltar que a intenção das elites políticas e intelectual do Brasil era aproximar o imaginário nacional ao imaginário europeu de progresso e civilidade; o que na verdade só serviu para justificar e manter as práticas imperialistas de dominação e difundir ainda mais as diferenças sociais e econômicas do país.

Schwarcz (1993) também chama atenção para  a importância dos museus nacionais na questão racial, pois essas instituições trabalhavam os parâmetros biológicos de investigação e utilizavam as teorias evolucionistas na análise social, sendo que a autora  buscou compreender o desenvolvimento dos museus etnográficos brasileiros e seu debate com as demais instituições de ensino do país. Nesses museus também há a visão determinista das teorias raciais, que favorecia a sustentação da corrente evolucionista que explica que as diferenças classificam as espécies e localizam seus pontos de atraso.

Além dos museus, a autora também menciona os institutos históricos e geográficos, que apesar de terem um propósito unificador, de fato manifestavam-se de forma parcial e regionalista, sendo fortemente ligado ao império, tanto nos objetivos quanto no funcionamento, importando-se mais  com as relações sociais que a produção acadêmica, privilegiando a aristocracia.

Em 1839 fundou-se o pioneiro Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado logo após a independência política do país, com o objetivo de construir uma história da nação, recriando o passado,  solidificando mitos de fundação, ordenando fatos na busca pela homogeneidade de personagens e eventos dispersos, para isso tornou-se necessário a centralização e unificação da nação, contudo, houve fortes marcas do perfil dos influentes grupos econômicos e sociais que participavam dos diversos institutos (SCHWARCZ, 1993, p. 99).

 O projeto de unificação obrigou a inclusão dos negros e indígenas, no entanto, os primeiros, de acordo com o evolucionismo, eram vistos se não fossem capazes de evoluir. Quanto aos indígenas, devido à religiosidade,  havia uma visão romântica, no entanto, influenciava-se a vinda de europeus para o Brasil, para compensar o atraso dos negros.

Nesse contexto intelectual do país, a autora fala sobre a criação das faculdades de direito, que teve o importante papel de tentar criar uma nova imagem  do Brasil que fosse desvinculada  da metrópole portuguesa, embora o país ainda estivesse sendo comandado por D. Pedro II. Para tal era necessário criar novas leis e uma nova consciência ao povo brasileiro. Desse modo, a intenção era formar uma elite de estudiosos letrados, capazes de construir uma constituição brasileira livre dos laços da metrópole.

Nesses centros de estudos, formaram-se vários homens importantes da sociedade brasileira, como políticos, homens da ciência e pensadores, que decidiram a história do país. A profissão tornou-se muito cobiçada, tendo em vista que o bacharel era considerado um importante intelectual da sociedade local. Havia duas instituições, uma em Pernambuco e outra em São Paulo, sendo que a autora coloca que havia discrepância quanto ao currículo de ambas, já que na primeira havia a preocupação de formar cientistas e na segunda em formar políticos e burocratas.

Além da criação das faculdades de direito, também foram criadas as faculdades de medicina, uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro. As duas forma ganhando destaque pouco a pouco e também abordaram, de certo modo, a intervenção social, sendo que na Bahia começou-se a analisar o cruzamento racial como um problema, e no Rio de Janeiro a faculdade de medicina concentrou-se mais na questão das doenças tropicais, apesar de a visão pessimista quanto à miscigenação não se restringir apenas à faculdade baiana, pois o médicos do Rio de Janeiro acreditavam que ela poderia causar doenças, já que, na visão deles, o cruzamento era uma degeneração.

Percebe-se que a autora faz uma abordagem sobre toda a sociedade intelectual daquela época no Brasil, pautando principalmente a questão racial, o que aqueles estudiosos pensavam a respeito dela, e as teorias adotadas para sua análise no contexto nacional. É notável que naquele período, todos os estudos posicionavam-se de forma preconceituosa, especialmente as teorias evolucionistas e deterministas, que viam a raça negra como uma degeneração em meio à sociedade, havendo claramente um engrandecimento do povo europeu.

Skidmore (1976) em sua obra Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro, também aborda a questão racial no Brasil do século XIX. Assim como Schwarcz (1993), o autor inicia sua obra falando sobre o contexto histórico brasileiro, apontando o posicionamento intelectual da época. No entanto, Skidmore (1976) aprofunda-se mais na questão do negro, especialmente nos assuntos escravidão e abolição.

Assim como no livro o Espetáculo das Raças, Skidmore (1976) colocou em seu livro que os estudiosos do século XIX foram muito influenciados pelas teorias e padrões europeus, que inferiorizavam o negro e condenavam o cruzamento entre as raças, opondo-se à miscigenação, o que era e é comum no Brasil. A intenção da elite pensante brasileira era o “branqueamento” da sociedade, por meio da vinda de europeus para o país.

Entretanto,  o autor afirma que esses posicionamentos de viés determinista e evolucionista foram perdendo espaço para novas perspectivas que visualizam a miscigenação como algo positivo, produzindo o consenso da existência de uma democracia racial, o que distorceu o racismo que era constantemente presente no país.

Da mesma forma que a autora de O espetáculo das raças abordou o crítico literário Silvio Romero, Skidmore (1976) também o fez, apontando-o como um nacionalista frustrado, isso porque contradizia-se em suas análises acerca de raça, pois considerava-se um darwinista social e também sustentava a ideia de que “uma nação é produto  de uma interação entre a população e o habitat natural” (SKIDMORE, 1976, p. 49).

Silvio Romero era de acordo com a hierarquia racial, utilizava a expressão escala etnográfica, citando os inferiores e superiores. Afirmava que o Brasil era composto por três raças: os brancos europeus, o negro africano e o indígena, sendo que o terceiro era, para Romero, na escala etnográfica o mais decaído e considerava os negros como os derrotados, restando, como cultura privilegiada a do branco.

Skidmore (1976) aborda a questão da abolição da escravatura no Brasil, afirmando que a cor da pele era determinante para colocar cada qual no seu lugar. Mesmo que o negro não fosse mais escravo, era julgado como um ser inferior que teria o dever de prestar respeito ao branco. Mesmo os mulatos também eram inferiorizados, a menos que sua condição financeira fosse vantajosa, o que ficou conhecido com a expressão “dinheiro branqueia”. No entanto, na prática, a raça era o fator determinante na constituição das camadas sociais.

O autor compara o racismo no Brasil ao racismo no Estados Unidos, afirmando que aqui já havia uma sociedade multirracial – o que persiste fortemente até os dias atuais – enquanto que lá só havia duas raças, a branca e a não-branca, no Brasil havia outra em grande número e que atingiu reconhecimento: o mulato.

O norte-americano de pele escura enfrentava uma série de fatores que o impediam, sistematicamente, de envolver-se com a ordem estabelecida social e economicamente, já no Brasil o negro ou o mulato, apesar de ser considerado inferior em relação ao branco, tinha um lugar definido na sociedade.

É interessante ressaltar a questão  da miscigenação colocada por Skidmore (1976),  que se visualizada atualmente pode ser considerada absurda, pois os poligenistas extremados da época  comparam o cruzamento entre as raças com o cruzamento entre espécies animais, sendo que o resultado desse cruzamento não poderia procriar. No entanto, é evidente que o mulato – resultado do cruzamento entre negro e branco – não era estéril. Nessa teoria da esterilidade não ganhou muitos adeptos no Brasil. Nos Estados Unidos, os anglo-saxões não se misturaram com os negros, o que não ocorreu no Brasil, já que os portugueses não hesitaram em relacionarem-se com eles.

Mesmo que os estudos das teorias deterministas tentassem comprovar a superioridade de determinada raça em relação a outra, nas vias de fato isso não condizia com a realidade, é e foi tudo uma questão cultural, se os negros não detinham determinado conhecimento, não era uma questão genética, mas sim social, pois não tinha tido as condições favoráveis para deter certa qualidade.

O autor do livro Preto no Branco aborda a questão política, literária e do sentimento brasileiro de nacionalidade do século XIX, sendo que a identidade nacional desse período e as opiniões com relação à raça eram inevitáveis, por mais delicadas que fossem. Havia, nessa época, duas formas de manifestar o sentimento de identidade nacional, que era a capacidade de atingir a estabilidade política e o desenvolvimento de uma literatura autenticamente nacional (SKIDMORE, 1976, p. 95). A literatura, no entanto, não representava de forma satisfatória o Brasil de 1910, deixando muito a desejar.

Na dimensão política, havia um contraste entre o ideal e a realidade, pois mesmo havendo o aumento do número de eleitores, o que ocorreu foi uma fraude que tornou-se uma regra, o que consistia era o “coronelismo”, com o intuito de manipular a eleição, prevalecendo principalmente nas áreas rurais. Havia também pistoleiros que eram contratados para assassinarem rivais políticos.

Desse modo, a estabilidade política era apenas aparente,  para satisfazer a atribulada elite da época. Muitas críticas surgiram com relação à política nacional, por  não ser capaz de estabilizar-se, principalmente por parte de republicanos, monarquistas e visionários políticos, como os jacobinos.

Apesar disso, o Brasil saia do status de colônia para nova República moderna. Nesse período, os estilos literários predominantes eram o realismo e o naturalismo, sendo que este último  tinha como base os avanços científicos, entre eles a teoria darwiniana e o determinismo. Um autor de destaque no naturalismo e que é fortemente mencionado por Skidmore (1976) é Euclides da Cunha que, como é debatido tanto no livro Espetáculo das Raças quanto em Preto no Branco, defendia a imigração europeia, ou seja, branca, considerando  o estrangeiro como um povo inteligente, que iria contribuir etnicamente para a feição futura do povo brasileiro, para a realização do ideal de “branqueamento”.

Euclides da Cunha, assim como alguns intelectuais mencionados por Schwarcz (1993), chegou a aceitar a raça indígena como uma contribuição positiva, no entanto considerava o negro (africano) como um elo fraco na composição do povo brasileiro. Na verdade, o que Skidmore (1976) afirma nesse livro é que os intelectuais da época procuravam conviver com o determinismo, já que apoiavam as teorias científicas vigentes, o que de certo favoreceu o racismo, principalmente em relação ao negro, isso também foi debatido no livro O Espetáculo das Raças.

Entretanto, Skimore (1976) coloca que mesmo nesse período em que o racismo e determinismo foram fortemente presentes, alguns poucos estudiosos rejeitaram-nos, entre eles estavam Manuel Bonfim e Alberto Torres, que à frente de seu tempo, confrontaram as doutrinas inatas entre as raças, pois afirmavam que o atraso brasileiro só poderia ser superado se houvesse uma análise sólida dos fatores históricos que levaram-no a esse cenário problemático.

Manuel Bonfim documentou as inconsistências lógicas das teorias com base empírica que apresentavam-se naquele período de caráter racista. Contestou os argumentos biológicos que pregavam a inferioridade dos mestiços, o que mostrou que a miscigenação não prejudicaria em nada a composição do povo brasileiro, como alguns intelectuais da época tanto afirmavam. Dessa forma, Bonfim contribuiu com seu antirracismo para um posicionamento nacionalista e anti-imperialista, mostrando que o racismo era “cientificamente falso e que servia de instrumento aos estrangeiros para desmoralizá-los” (SKIDMORE, 1976, p. 134).

Skidmore (1976) também colocou em seu livro que havia a preocupação com a imagem nacional, era de grande interesse naquele período promover o Brasil, para tal utilizava-se o modelo dos Estados Unidos. Entre os esforços para promover o país estavam os pedidos de capital e de homens de negócio, incentivo de imigrantes, sendo que houve um surto de propagandas direcionadas à França.

Já na segunda década do século XX, tem-se um novo nacionalismo, havendo a preocupação de estimular o pensamento nacionalista, analisando-se o Brasil de forma mais realista, já que se percebeu que ele estava distante daquilo que era idealizado  por modelos de pensadores do passado. Passou-se a analisar o país de fato como ele era, os escritores sensibilizaram-se ao fato de que deviam abordá-lo por ele mesmo, com o pensamento de livrarem-se dos moldes europeus ao qual sempre esteve aprisionado.

REFERÊNCIAS

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. 7ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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