Repetições ao meio-dia
Por Osorio de Vasconcellos | 15/10/2011 | CrônicasRepetições ao meio-dia
O lema da CBN é tocar a notícia. O “repórter CBN” vai ao ar a cada meia hora. É natural que a intervalos tão curtos muitas notícias saiam repetidas. É natural que, com o passar do tempo - a CBN está completando vinte anos – a emissora desenvolva, assim como se desenvolvem as lesões por esforços repetitivos, uma visão peculiar do significado das repetições.
O que não me parece de bom aviso, no entanto, é que o ouvinte, com o passar dos anos, se deixe aculturar e, sem perceber, incorpore os mesmos condicionamentos da emissora.
Para evitar a contaminação, o ouvinte deve, antes de ligar o rádio, recorrer a uma teoria e, ato contínuo, testá-la a céu aberto.
Mais ou menos assim: repetir, isto é, tornar a fazer, pensar, dizer ou escrever alguma coisa, salvo, é claro, o segmento das repetições neuróticas, representa ser um ato elaborado ao comando de sensações.
Dito de outro modo: toda repetição saudável estriba-se numa dialética real.
É o que ocorre no teatro quando as pessoas aplaudem e pedem bis. O artista canta de novo. Repetição saudável. Dialética real.
A televisão utiliza maciçamente a técnica do replay, na convicção de que o torcedor anseia por rever o lance. Repetição saudável. Dialética real.
O apostador joga na mega-sena. Marca seis números e assinala a opção da “teimosinha” por três concursos, porque aspira melhorar de vida. Repetição saudável.
Dialética real.
O poeta repete o verso, para potencializar a expressividade. Repetição saudável.
Dialética real.
O xamã repete o ritual, para facilitar a migração das almas. Repetição saudável. Dialética real.
Assim embasado, o ouvinte estará apto a perceber que, a certa altura, as repetições na CBN discrepam do modelo teórico levantado. A fórmula “repetição saudável/ dialética real”, presente nas edições do “repórter CBN”, transfigura-se ao meio-dia, quando, no correr de poucos minutos, uma notícia chega a repetir-se por quatro vezs: no “repórter CBN”, nos comentários do Âncora, nas “manchetes” e nas “reportagens”.
Se ainda não estiver contaminado, o ouvinte estranhará aquela overdose informativa e, com muita calma, verificará o seguinte: 1) que, no “repórter CBN”, de meia em meia hora, as repetições, quando as há, estribam-se numa dialética real, estruturada nas sensações filantrópicas do redator, que repete a notícia, imaginando a possibilidade de o ouvinte ter perdido a edição anterior, ou convencido de que a repetição será educativa; 2) que, assim nutridas, as repetições do “repórter CBN” credenciam-se ao galardão de repetições saudáveis; 3) que, no entanto, ao meio-dia, como Cinderela à meia-noite, as repetições na CBN mudam de aspecto. Ainda hospedam uma dialética. Ainda contam uma história. Mas já se distanciam da efetividade cósmica, da concretude sedimentar da existência.
Com efeito, repetir a mesma notícia por quatro vezes no correr de poucos minutos, convenhamos, beira os domínios da fantasia, da pantomima ou da simulação; 4) que, ao meio-dia, as repetições na CBN ignoram a dimensão material do mundo, da qual o ouvinte participa, e negligenciam a natural aversão do ser humano pelos inchaços, pletoras e intumescências; 5) que, ao meio-dia, as repetições na CBN estruturam-se não mais em função do ouvinte, mas ao sabor de uma dialética virtual, ou seja, à feição das possibilidades. As repetições do meio-dia na CBN acontecem pela única e singela razão de que são possíveis de acontecer. Possíveis de acontecer, porque existem espaços que precisam ser ocupados, justamente os espaços virtuais do Âncora, das “manchetes” e das “reportagens”.
Vou parar por aqui. Começo a me preocupar com o ouvinte que, a estas alturas, com justa razão, deve estar apavorado. Afinal o triunfo das representações sobre a realidade é a catástrofe dos tempos pós-modernos.
Antes de me retirar, porém, dou-lhe um último conselho: ao meio-dia, ligue o rádio e ouça apenas o “repórter CBN”. Despreze o resto. Pague na mesma moeda.