REPERCUSÕES DA LEI 11.206/05 NO ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS

Por Suellen Souza Pereira | 15/08/2011 | Direito

REPERCUSÕES DA LEI 11.206/05 NO ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS

Suellen Souza Pereira
1. INTRODUÇÃO
Diante das transformações que hodiernamente atravessa a humanidade, em todos os aspectos atinentes à vida, vivencia-se uma crescente mutação social. Todavia, apesar de tantas evoluções tecnológicas, dos avanços nos mais diferentes ramos do conhecimento humano, infelizmente, ainda presencia-se a caracterização de condutas adversas às benesses que tais transformações deveriam ensejar.
Com exemplo disto passar-se-á à consideração de alguns pontos acerca do tráfico interno de pessoas e seus aspectos técnicos tais como: o bem jurídico tutelado por este preceito normativo, ao sujeitos e os tipos penais. A priori, serão ressaltados alguns aspectos atinentes à Lei 11.106, de 28 de Março de 2005.
A Lei 11.106 inseriu a figura do tráfico interno de pessoas no rol dos crimes contra os costumes. A antiga figura do tráfico de mulheres passou a ser tipificado em outras duas condutas, aquela descrita no artigo 231 do Código penal como Tráfico Internacional de Pessoas e a conduta do artigo 231-A, Tráfico Interno de Pessoas, também introduzido no Código Penal pela Lei em comento.
2. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS
Antes do advento da Lei 11.106/05, o tipo penal abarcava apenas a tipificação descrita como Tráfico de Mulheres ou Tráfico de Brancas, como era então conhecido o comércio internacional de mulheres, até o fim do século XIX e início do século XX, essa questão ainda não tinha a merecida atenção de que necessitava (PRADO, 2006, p. 284-285).
As primeiras discussões em torno deste tema foram iniciadas em congressos internacionais. Em 1902, o Brasil, participou de uma conferência na França onde foi aprovado um texto convencional que versava acerca do comércio internacional de mulheres e que, posteriormente, foi ratificado e integrado à legislação pátria através do Decreto 5.591, de 13 de Julho de 1905. Assim, este passa a ser o primeiro documento que mostra o comprometimento nacional no plano internacional contra tal prática. Após a Segunda Guerra Mundial, é criada a ONU ? Organização das Nações Unidas, fruto da antiga Liga das Nações, que passou a firmar vários acordos internacionais entre estes vale o destaque para o Protocolo de Lake Sucess, este protocolo, em 1950, deu origem à Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio, que foi ratificada pelo Brasil em nos fins da década de 50, através do Decreto-Lei 6, de 12 de Julho de 1958 (PRADO, 2006, p. 284-285).
Hodiernamente, o tráfico internacional de pessoas conta com uma gigantesca rede de informações devido ao desenvolvimento tecnológico, ao fácil acesso à rede mundial de computadores nos mais diferentes tipos de mídia dão um suporte global e sinistro a este nefasto comércio. Estudos recentes da união Européia mostram que (EUROPA, 2008):
A nível mundial, estima-se que atinge os 700 000 o número de mulheres e crianças que as redes de tráfico fazem passar todos os anos pelas fronteiras internacionais. Algumas organizações não governamentais estimam que este número é sensivelmente mais elevado, tendo em conta nomeadamente o tráfico para fins de exploração pelo trabalho. [...] todos os Estados-Membros são em maior ou menor medida, afetados pelo tráfico de mulheres. Mais precisamente o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual tem aumentado nos últimos anos paralelamente ao desenvolvimento da indústria do sexo.
Além, desses dados o estudo revela alguns aspectos de apoio e amparo oferecidos às vítimas do tráfico internacional de pessoas. Um exemplo desse resguardo das vítimas é descrito no mesmo documento, da seguinte maneira (EUROPA, 2008):
As mulheres vítimas de tráfico para fins de exploração sexual têm geralmente origem em círculos sociais em que se encontram numa posição vulnerável, tanto do ponto de vista material, como psicológico. Todas sofreram traumas físicos e/ou psicológicos profundos durante o período em que foram exploradas e algumas continuam com problemas de saúde muito depois deste período ter terminado. As ONGs e os serviços sociais e de saúde desempenham um importante papel a nível de auxílio ás vítimas na sua reintegração gradual na normalidade. [...] a Declaração de Haia insiste nestas iniciativas, que não podem consistir apenas na disponibilização de centros de acolhimento e reabilitação seguros para proteger as vítimas contra os seus exploradores, devendo também providenciar apoio confidencial do ponto de vista médico, social e psicológico, bem como a assistência jurídica. Além disso, é também necessário mais apoio em termos de educação, formação profissional e repatriamento das vítimas para o seu país de origem. [...] a União Européia deve tomar medidas a nível legislativo relativamente à questão específica da concessão de autorizações temporárias de residência para as vítimas que estejam dispostas a cooperar com o sistema judicial. [...] novas perspectivas se abriram quando o Conselho Europeu de Lisboa, EM Março de 2000, convidou os Estados-Membros a utilizar os Fundos Estruturais para lutar contra a pobreza e a exclusão social, bem como para desenvolver medidas prioritárias em benefício de grupos-alvo específicos. A Itália, por exemplo, está a utilizar o Fundo Social Europeu para combater o tráfico de mulheres e fornecer apoio às vítimas.
São programas, antes de tudo, imprescindíveis para o apoio das vítimas de tráfico ao serem reinseridas na sociedade. Esse tipo de projeto deveria ser copiado por países que enfrentam esse tipo de problema, que é uma mazela que afeta a sociedade mundialmente. No sistema penal pátrio tanto o Tráfico Internacional de Pessoas quanto o Tráfico Interno de Pessoas são práticas ilegais e puníveis. Todavia, o Brasil está diante de ser modelo no enfrentamento dessas condutas e de ter em prática tais como o visto acima.
Depois dessas consideração acerca do Tráfico Internacional de Pessoas, será visto adiante o que pertine ao Tráfico Interno de Pessoas.
3. ARTIGO 231-A, DO CÓDIGO PENAL E O TRÁFICO INTERNO DE PESSOAS
Em consonância com o supracitado, este artigo foi embutido ao Código Penal Brasileiro, no ano de 2005, através da Lei 11.106/05 e veio completar o completar ou especificar o artigo 231.
O artigo 231-A reza: promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha a exercer a prostituição. Pena ? reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa.
Conceitualmente, tráfico de pessoas é tido pela Resolução 49/166, da Assembléia Geral das Nações Unidas, como (PRADO, 2006, p. 287):
O movimento ilícito e clandestino de pessoas através das fronteiras nacionais e internacionais [...] com o fim último de forçar mulheres e meninas a situações de opressão e de exploração sexual ou econômica em benefício de proxenetas, traficantes e bandos criminosos organizados, bem como atividades ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres.
Essa definição abarca todos os aspectos que envolvem tal conduta. O novo tipo penal, tutela, a honra sexual e os bons costumes (MARCÃO, 2008, p.03). Porém, GRECO (2007, p. 602) e JESUS (2007, p.169), entendem que o tutela jurídica recai sobre os bons costumes, o primeiro amplia essa vertente e inclui a moral pública sexual. Já PRADO (2006, p.295), entende que a condição humana, sua dignidade como pessoa que é o bem jurídico, tutelado pelo artigo 231-A. No que tange aos sujeitos, há unanimidade entre os doutrinadores ao afirmarem que o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa, pois trata-se de crime comum, quanto ao sujeito passivo, este poderá ser qualquer pessoa e a coletividade, porém GRECO (2006, p.602), afirma que: "[...] somente aquele que exerce a prostituição poderá ser considerado sujeito passivo desse delito, sendo assim, um crime próprio".
O tipo subjetivo do Tráfico Interno de Pessoas é o dolo. Já o tipo objetivo ou os elementos do tipo, deverão ser analisados em cada uma de suas modalidades, conforme MARCÃO (2008, 3-4):
Promover significa dar impulso, colocar em execução (de qualquer forma); intermediar quer dizer servir de intermediário ou mediador; facilitar, aqui, tem o sentido de desembaraçar, tornar mais simples, dar maior agilidade.
Recrutamento é a reunião; agrupamento ou alistamento de pessoas. Não é preciso que o recrutamento envolva várias pessoas, basta uma para a configuração do ilícito. Transporte é o deslocamento de um lugar a outro. Enquanto o agente estiver promovendo o transporte o crime será de natureza permanente, assim considerado aquele cuja conduta delituosa se mantém no tempo e no espaço. Transferência significa mudança de um lugar a outro. Há uma sutil diferença entre esta conduta e a anterior (transporte). Enquanto transporte tem o sentido de levar alguém para local em que se pratica o prostituição (para os fins do tipo legal) a transferência pressupõe a mudança de um lugar onde se pratica a prostituição para outro de igual destinação. Alojamento, é local específico destinado ao abrigo de pessoas. Acolhimento, para os termos do tipo penal, significa receber alguém em local não destinado ao alojamento, acolher é dar amparo, guarida; dar refúgio, proteção ou conforto físico. É preciso que as práticas acima analisadas tenham por alvo "pessoa que venha a exercer a prostituição". Exercer a prostituição é prostituir-se". Exercer a prostituição é prostituir-se; dedicar-se ao comércio sexual; à satisfação voluntária da lascívia de outrem em troca de vantagem. Para a adequação típica é preciso, ainda, que tais condutas tenham ocorrido no território nacional, pois se uma das práticas tocar território estrangeiro a figura penal será a do art. 231 (observados parâmetros da tipificação), e não a do art. 231-A, onde a conduta é de natureza permanente, poderá ocorrer hipótese em que ele venha a perdurar vários dias. Sendo assim, se iniciado antes da vigência da lei nova, o transporte se estender para além do início da exigência do texto novo, poderá ocorrer prisão em flagrante , por exemplo, e regular processo com a nova definição típica.
A consumação ocorre com a prostituição de fato, de forma reiterada, com habitualidade. A tentativa é possível, a qualificação do crime de Tráfico Interno de Pessoas se dá com as mesmas situações que qualificam o artigo 231, do Código Penal, "[...] se a vítima for maior de quatorze e menor de dezoito anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a que esteja confiada pra fins de educação, de tratamento ou de guarda e ainda se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude" (PRADO, 2006, 295).
Em relação à pena e à ação penal, a pena será do caput, se a conduta for qualificada em qualquer um dos casos previstos no artigo 231, §1º, do Código Penal, esta aumentará de 4 a 10 anos mais a multa e se houver violência, grave ameaça ou fraude será de 5 a 12 anos de reclusão mais multa. A ação será pública incondicionada.
4. A POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS
Devido ao contínuo aumento do Tráfico Interno de Pessoas, o Brasil lançou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (BRASIL, 2011), que preconiza em seu artigo 1º, tem por finalidade:
[...] estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas, conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, em especial de mulheres e crianças.
São 3 capítulos, contendo 8 artigos que traçam o plano de ação do Brasil contra tal prática, além de diretrizes e princípios que regerão essa política. O princípio mais abrangente, dentro do plano desse plano de ações, é o princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Isto se dá, conforme BASTOS (apud TAVARES, 2003, p.509): "[...] é que um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas".
Apesar dos esforços o Brasil, ainda não tem conseguido concretizar medidas eficazes no que diz respeito à coibição do Tráfico Interno de Pessoas, prova disso é como os países estrangeiros nos observam. Neste diapasão, vale atentarmos aos excertos da seguinte matéria, pautada em um relatório sobre tal questão (BRASIL, 2011):
O Brasil é origem sobretudo do tráfico de mulheres e crianças dentro do próprio país para fins de exploração sexual comercial e de homens para trabalho forçado, também internamente. ONGs estimam que 500 mil crianças estejam em prostituição no país [...]. O governo brasileiro não está em total conformidade com os padrões mínimos para a eliminação do tráfico, embora esteja envidando esforços significativos para tanto. No ano passado, o governo intensificou os esforços para punir o tráfico sexual interno e transnacional [...]. Em outubro de 2006, o presidente Lula determinou a criação de um plano de ação nacional contra o tráfico de pessoas para todos os tipos de exploração, assim como a coordenação dos esforços governamentais de combate ao tráfico pela Secretaria de Justiça e a destinação de verbas para as iniciativas multissetoriais do governo no combate ao tráfico. [...] No Brasil não existe um sistema centralizado de coleta e divulgação de dados sobre a aplicação da lei de combate ao tráfico; por isso, não foi possível obter dados abrangentes sobre investigações, ações penais, condenações ou sentenças no período em referência. No entanto, embora limitados, os dados coletados em vários estados revelaram um avanço nos esforços de combate ao tráfico.
5. CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que o tráfico Interno de Pessoas, além de ser tipificado penalmente, é uma barbárie que atenta contra a dignidade da pessoa humana. Um outro aspecto é que a prática dessa conduta leva ao desdobramento de outras tais como: o trabalho em situação análoga à escravidão, a tráfico de entorpecentes, etc.
As vítimas desta conduta nefasta são feridas e devassadas de várias formas, por isso que o que se resguarda nessas pessoas e o que prepondera na salvaguarda dos direitos de tais é a Dignidade da Pessoa Humana. Portanto, cabe à sociedade e a cada cidadão a responsabilidade no enfrentamento para a erradicação desse funesto comércio.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_______. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/areas/infancia/arquivos/traficoseres.pdf Acesso em: 12/08/2011.
CRECO, Rogério. Curso de direito penal, parte especial, volume III. 3. ed. ? Niterói, Rio de Janeiro: Impetus, 2007.
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, parte especial: 3º volume: dos crimes contra a propriedade imaterial aos crimes contra a paz pública. ? 16 ed. rev. e atual. ? São Paulo: Saraiva, 2007.
MARCÃO, Renato. Lei 11.106/2005: novas modificaçõesao código penal brasileiro. do lenocínio e do tráfico de pessoas;art. 227 (mediação para servir a lascívia de outrem);art. 231 (tráfico internacional de pessoas);art. 231-a (tráfico interno de pessoas). 23ª Procuradoria de Justiça Criminal de Goiás caderno de doutrina011901 direito penal. Disponível em: http://www.serrano.neves.nom.br/cgd/011901/011901040.pdf Acesso em: 12/08/2011.
PRADO, Luís Régis. Curso de direito penal brasileiro, volume 3: parte especial, arts. 184 a 288. ? 4. ed. rev. atual e ampl. ? São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. ? 2. Ed. - São Paulo: Saraiva, 2003.
UNIÃO EUROPÉIA. Justiça e assuntos internos. Tráfico de mulheres - a miséria por trás da fantasia: da pobreza à escravatura sexual. Uma estratégia européia global. Disponível em: Acesso em: 12/08/2011.