Repensar o Ensino da Literatura na Escola

Por Murim Mourinho Nhaca | 29/06/2020 | Educação

Repensar o Ensino da Literatura na Escola

Murim  Nhaca

 

Introdução

Nos últimos tempos, a literatura atravessa momento de crise relativamente ao seu ensino na escola. O ensino da literatura constitui um dos desafios que o sistema educativo enfrenta, pois para ter outras competências que habilitem os alunos a serem cidadãos com possibilidade de ampliar o conhecimento, continuar a aprender ao longo das suas vidas e participar activa e conscientemente na sociedade, dependem da aprendizagem da leitura e da literatura. Neste trabalho, pretende-se discutir as estratégias de ensino da literatura, no sentido de despertar nas pessoas a importância da leitura e da literatura no processo de ensino-aprendizagem. O trabalho apresenta, para além da introdução, uma contextualização teórica em que, primeiro, é exposto o panorama actual do ensino da literatura. São propostas estratégias de ensino com base na confrontação de ideias de vários autores. Na sequência, as considerações finais.

Contextualização teórica

Sendo a literatura um direito fundamental do ser humano porque humaniza, desenvolve a compreensão e torna o Homem mais aberto à sociedade, ao próximo e à natureza (Cândido 1998), há necessidade de se criar um ambiente em que todos gozem desse direito. Porém, o cenário actual do seu ensino não é o desejável. Porque a escola não ensina a ler, a gostar de ler, preocupa-se apenas com a alfabetização. É muito importante saber ler e escrever. Pois, tudo o que somos, fazemos e partilhamos com outros é escrito (Cosson, Souza, 2011). Por isso, a leitura e a literatura devem ser bem ensinadas, visto que nos tornam mais capazes de ordenarmos a nossa própria mente e sentimentos e, consequentemente, mais capazes de organizarmos a nossa visão do mundo (Cândido, 1998). Para a reforma efectiva e consistente do ensino de literatua, deve-se ter em conta as condições sociais e financeiras dos alunos e a qualidade dos professores. Está-se a falar da realidade em que maior parte dos alunos encontra-se em escolas que não reúnem condições básicas para a realização de aulas. Aliado a isso, é a existência de professores não preparados para darem aulas com propriedade. Por isso, a impossibilidade de se ter acesso aos livros, estabelecer relação harmoniosa com eles, dar-lhes sentido e ter boa imagem deles. (Fumo, 2018). Há também longas distâncias entre as poucas bibliotecas existentes e as casas dos alunos e a difícil circulção. Tem-se aqui indivíduos que, por mais vontade e gosto que tiverem de ler, estão extremamente limitados, ou seja, está a ser-lhes violado de forma gritante o direito à literatura. Há, portanto, uma necessidade urgente e pontual de se mudar o cenário. Como reforça Fumo (2108), considerando que boa parte dessas pessoas sai de famílias em que não têm exemplos de leitores, para lhes servirem de incentivo senão elas mesmas como os primeiros nesse mundo, a escola deve ser, por excelência, um lugar onde tenham acesso ao livro e encontrem condições precisas para construir uma relação de fruição.

Estratégias de ensino de literatura

O que ensinar?

Está claro que um dos grandes problemas que o Ensino de Literatura enfrenta reside na definição do que se deve ensinar. A isto, associa-se a questão de professores que dão aulas de literatura sem a devida formação nesta área. Neste caso, o que se ensina é de preferência do professor. O que se verifica é que se ensina a História Literária e a Literatura para a correcção gramatical. Mas será para isto apenas que serve a Literatura? Entre a forma e o conteúdo de um texto literário, em que se deve focar? Obviamente que, para a formação de um leior crítico, com espírito de reflexão que se pretende na escola e na sociedade, o ensino da História Literária e o ensino da Literatura como modelo de correcção gramatical não bastam. Segundo um dos nomes mais sonantes na Literatura, Vicent Jouve, deve-se dispensar as preferências e não se concentrar apenas na forma de uma obra literária, mas ao conteúdo como objecto de linguagem, porque exprime  uma cultura, um pensamento e uma relação com o mundo. Para o bom leitor, é certo que cada ponto, vírgula ou acento tem a sua função no texto. É nesta perspectiva que, Jouve (2012) chama à atenção para a importância da forma do texto literário, ou seja, a dimensão estética não pode ser levada em conta por si mesma, mas pelo que ela significa e representa.

Para que ensinar?

O professor de literatura deve saber para que ensina, sob o risco de ensinar a literatura como preferir e para a satisfação pessoal. No contexto em que o professor não conhece os objectivos do ensino da Literatura, fica claro que os alunos aprendem, obrigatoriamente, coisas que nem sequer sabem por que estudam. E, nestas condições de ensino, não ocorre aprendizagem. Na óptica de Jouve (2012), é importante mostrar que o ensino de literatura enriquece a compreensão do mundo dos alunos, esclarecendo-lhes sobre o que são e sobre a sua realidade social. Daí que, o professor deve trabalhar a obra literária de modo que, o seu resultado seja útil para todos. É também tarefa do professor o papel de iniciação dos alunos à leitura, de despertar neles o gosto e interesse pela literatura. Diz ainda este autor que, o simples leitor percebe uma parte de informações num texto, identifica ou constrói saberes a partir dessas informações e o professor ajuda o aluno a transformar esses saberes em conhecimentos. Há necessidade de se ensinar aos alunos uma exploração criativa das potencialidades das línguas através dos textos literários. Porque estes textos permitem ao aluno-leitor aceder a sentidos que sem a ajuda do texto literário, não seria fácil entender. Portanto, com o texto literário, os alunos serão munidos de ferramentas essenciais para o bom uso das línguas no autoquestionamento, no dos outros e no questionamento do mundo. Consequentemente, o aluno-leitor estará consciente de si, da sua identidade como cidadão, participando activamente na tomada de decisões. Daí que, é importante ensinar-se a literatura para se alcançarem níveis de formação individual e cultural indispensáveis para o enquadramento aceite do indivíduo na sociedade.

Como ensinar?

Acima, abordou-se sobre que aspectos devem ser ensinados na literatura e as suas finalidades e com isso, percebe-se também que para se chegar a este ensino, é preciso que haja formas de o fazer, os meios. Esta etapa é a mais sensível de se trabalhar pela sua importância no ensino de literatura e, pela sua sensibilidade, é com que mais não se trabalha devidamente. A nossa escolarização ainda é marcada pelo ensino vertical, estático, em que o professor representa a autoridade na sala e o aluno é tido como depósito de conhecimento. O ensino de literatura diverge completamente desta abordagem educativa, o ensino de literatura privilegia a interação na sala de aula e respeita os conhecimentos e experiências dos alunos. Assim, a formação de um leitor passa pelo seu contexto cultural, ou seja, a escola deve criar uma ligação entre a cultura colectiva ou de classe e o texto a ser lido, para o aluno se reconhecer na obra, porque a realidade representada diz-lhe respeito (Bordini, Aguiar, 1993). Para se melhorar esta situação, a escola deve ter como objectivo precípuo o desenvolvimento de literacias, deve investir na aquisição de material e professores qualificados. Ainda na perspectiva de Bordini e Aguiar (1995. p. 17), " para que a escola possa produzir um ensino eficaz da leitura da obra literária, deve cumprir certos requisitos como: dispor de uma biblioteca bem aparelhada, na área da literatura, com bibliotecários que promovam o livro literário, professores leitores com boa fundamentação teórica e metodológica, programas de ensino que valorizem a literatura, e, sobretudo, uma interação democrática e simétrica entre alunos e professor."

É claro que ter bibliotecas e livros não basta.  Pois, além de o professor e outros intervenientes no ensino de literatura terem domínio do que se faz, têm que gostar do que fazem. É por isso que Cosson (2012) sublinha que, a escola deve revitalizar a leitura a partir dos profissionais, no geral, e especificamente dos bibliotecários, desenvolvendo neles o espírito de que o saber e prazer são parte da leitura. E ainda este autor realça que o professor tem que ver a literatura como conjunto de várias manifestações literárias e aliado ao padrão, devem ser trabalhados na aula. Portanto, se o professor pretende transmitir vias eficazes de fruição e conhecimento das obras e da história literárias, deve ler e compreender previamente os textos que trabalhará na aula (Bordini, Aguiar, 1993). Nesta senda, o professor deve servir de exemplo, mostrando domínio e gosto pelo que faz, para motivar os alunos. Mas estas qualidades não se podem confundir com o autoritarismo do professor na sala e nem a sua leitura como modelo para a correcção da dos outros. A leitura do professor é um pré-requisito da leitura do aluno, mas a interpretação do aluno não se deve prender à do professor e a metodologia do ensino é outro pré-requisito, hierarquicamente colocado em segundo lugar, também imprescindível (Bordini, Aguiar, 1993).

Vicent Jouve aborda alguns meios para o ensino da literatura, a começar pelo meio denominado depreender o sentido (a investigação arqueológica).

Depreender o sentido (a investigação arqueológica).

Segundo este autor, entre os saberes veiculados por um texto, é claro que se tem aqueles que se inscrevem no universo cultural do autor e de seus contemporâneos. Jouve chama à atenção em relação a questões temporais que podem estar ligadas a como a obra era ou pode ser entendida: " Mesmo que tantos textos ainda nos falem, não podemos esquecer que eles se dirigiam em primeira instância aos leitores do seu tempo, portanto, há toda a lógica em nos interrogar sobre a maneira com que a obra era entendida enquanto seu autor vivia." (Jouve: 2012. p. 146).            

De referir que este modelo apoia-se no estudo dos costumes e culturas dos povos antigos através do material (fósseis, artefactos, monumentos) que a arqueologia mobiliza. Através deste modelo, podem surgir várias perguntas, dentre as quais: como é que se interpretava tal fenómeno na época da concepção deste texto? O que significava tal expressão? Estas questões, conforme pode-se perceber, ajudam na produção e percepção do sentido de um texto literário. Ainda tendo em conta o aspecto temporal, conforme pontua Jouve, é frequente que o sentido inicial de um texto tenha se tornado opaco com o tempo, tendo em conta isto, este autor afirma que o primeiro papel do ensino é, então, munir o leitor da informação necessária para que as obras voltem a lhe falar. 

Perseguir o sentido (do bom uso da teoria)

Neste modelo, o autor mostra a importância que o recurso a modelos de interpretação exteriores tem. Mas chama-se à atenção para que não se confunda modelos de interpretação com interpretações de outros textos. Mas trata-se de confrontação de um texto com uma nova grade de análise que, segundo o autor, faz surgirem conteúdos efectivamente presentes que ainda não tinham sido actualizados.

Controlar o sentido (as virtudes da coerência)

Neste modelo, apela-se a uma busca dos significados com alguma coerência. Estes só podem ser projectados a nível do texto e não em função do imaginário ou pensando fora do texto, conforme sublinha o autor "o desafio dos estudos literários é perseguir sentidos efetivamente presentes, não projetar na obra sentidos que não estão ali" (Jouve, 2012. p. 152). Este autor diz ainda que uma interpretação só será pertinente se o conteúdo que ela acredita assinalar apresenta uma estrutura recuperável no texto.  Logo, para a compreensão de um texto literário, deve-se criar um quadro teórico, indicando-se uma perspectiva em que se pretende trabalhar ou criarem-se hipóteses recuperáveis no texto.




Considerações finais

Tendo em conta o momento de crise que o ensino da literatura atravessa, a sua importância na formação do cidadão e a restruturação do meio a partir do qual se traria de volta a ligação entre alunos e a obra literária e se nos comprometemos a repensar o ensino da literatura, este é o espaço para nos concentrarmos nas potencialidades dos alunos e entender em que condições há aprendizagem. No processo de ensino-aprendizagem, a planificação e a motivação são fundamentais, por isso, o professor deve mostrar domínio, gosto do que faz, do material e conteúdo com que trabalha e prestar mais atenção às experiências dos alunos, estes terão mais interesse pela leitura e a literatura. Entretanto, se o ensino estiver mais virado ao aluno, descobrir-se-ia em que situação houve ruptura entre os alunos e a literatura, o que facilitaria a revitalização dessa relação. Logo, os alunos gozariam do seu direito e perceberiam que trabalhar com a literatura enriquece a sua existência, ajuda a conhecer o mundo e a eles mesmos. Tem-se a certeza de que no dia que o ensino de leitura e literatura seja prioridade na escola, estar-se-á no caminho certo e ter-se-á dado passo importantíssimo para se resolver problemas que afligem a sociedade.











Referências bibliográficas

Cândido, A. (2004). Vários escritos. (4ed). Rio de Janeiro: Ouro Sobre o Azul.

Jouve, V. (2012). Por que estudar a literatura? São Paulo: Parábola Editorial.

Cosson, R. (2012). Letramento Literário: teoria e prática. (2ed., 2ͣ reimpressão). São Paulo: Editora Contexto.

Bordini, M., Aguiar, T. (1993). Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. (2ed.) Porto Alegre: Mercado Aberto.

Cosson, R., Sousa, R. (2011). Letramento Literário: uma proposta para a sala de aulas. Universidade Estadual Paulista-UNESP. Disponível em: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40143/1/01d16t08.pdf

Fumo, O. (2018), práticas de leitura: velha questão, novos olhares. www.webartigos.com.

Disponível em: https//www.webartigos.com/artigos/praticas-de-leitura-velha-questao-novos-olhares/159561a

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