RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

Por Carise Dias Rosa | 08/12/2012 | Direito

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

Carise Dias Rosa

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo traçar em breves linhas alguns questionamentos sobre a viabilidade da relativização da coisa julgada à luz da Carta Política vigente e da atual conjuntura do aparato jurisdicional estatal, trazendo alguns pertinentes conceitos sobre sentença e coisa julgada.

PALAVRAS-CHAVE: COISA JULGADA; RELATIVIZAÇÃO; SEGURANÇA JURÍDICA.

INTRODUÇÃO

Sabemos que o homem é por natureza um animal social, desenvolve suas habilidades e sua condição humana dentro do seio da sociedade. Inerente à sociedade é a idéia de conflito, este surge de uma pretensão resistida e, por conseguinte, gera um clima de insegurança e animosidade. Para solucionar o conflito de interesses, em nome do bem comum e aplicar o direito de forma que todos a ele se submetam, surge o Estado, como ente legitimado a punir e dar a cada um o que é seu.

Para que o Estado possa materializar a vontade da lei e solucionar o litígio de forma pacífica, legítima e justa, a administração da justiça passou a ser monopólio estatal. Para assegurar o direito de ação e o direito de defesa, cria-se o processo como forma compositiva da lide.

Buscando a pacificação social, não interessa ao Poder Judiciário e à sociedade em si, a eternização dos conflitos ou a sua não-solução.  O Estado cumprindo a sua função jurisdicional age orientado pela legislação processual vigente, como também e, sobretudo, amparado nos princípios e direitos protegidos e preconizados pela Constituição Federal de 1988. Dentre tais princípios, relevantes que são para o presente trabalho, menciono o princípio da segurança jurídica, da justiça e da dignidade da pessoa humana.

Tema que hodiernamente vem inflamando a doutrina processual civil pátria é o que diz respeito à chamada relativização da coisa julgada, de forma que uma parte de nossos processualistas são ferrenhos defensores de tal tese que ainda não encontrou resposta definitiva nem na doutrina nem na jurisprudência. Para entender a problemática apresentada por tal tese, convém tecer algumas considerações a respeito da sentença, da coisa julgada e seus efeitos.

SENTENÇA E COISA JULGADA

O art.162, §1º do Código de Processo Civil com redação dada pela Lei nº 11.232/2005 preconiza que sentença é o ato judicial que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 do Diploma Processual, compondo o litígio sem resolução de mérito ou com resolução de mérito, respectivamente.

A sentença é, portanto, o pronunciamento final da instância de primeiro grau de jurisdição, ou seja, da instância conduzida pelo juiz de forma isolada, que põe fim à fase de conhecimento com ou sem a resolução do mérito, sem encerrar o processo, considerando a possibilidade de a decisão ser revista pelo órgão colegiado imediatamente superior, em termos hierárquicos, sem falar no avanço a outras fases (de liquidação e de execução). (MONTENEGRO FILHO, 2009, p.500).

A sentença pode ser entendida como a resposta do Estado-juiz, emitida pelo juízo monocrático, ao conflito posto à sua apreciação como resultado final de uma série de procedimentos corporificados no processo que visa à resolução da própria lide. A sentença é, pois, corolário do princípio da inafastabilidade da jurisdição, já que, uma vez provocado, deve o Estado pronunciar-se ao litígio submetido ao seu crivo.

 De acordo com a doutrina processualista as sentenças podem ser classificadas em terminativas, quando não discutem o mérito nas hipóteses trazidas pelo art.267 do CPC e definitivas, cingindo-se aos casos do art.269 do CPC. A diferença terminológica justifica-se na medida em que os efeitos de cada tipo de sentença são analisados.

As sentenças terminativas, extinguindo o feito sem resolução do mérito, atingem apenas a relação processual entre autor, juiz e réu, de forma que não produzem efeitos na relação de direito material controvertida levada a juízo, não obstando a propositura de nova ação por parte do autor, produzindo a chamada coisa julgada formal.

Segundo Alexandre Freitas Câmara (2010) a coisa julgada formal é capaz apenas de pôr termo ao módulo processual, obstando a rediscussão acerca do objeto do processo no mesmo feito, todavia, não impede que tal discussão seja apreciada em outro processo. A coisa julgada material, todavia, impede que a relação de direito material já discutida seja novamente levada aos pretórios.

A sentença terminativa, repita-se, apenas põe fim à relação processual, deixando indene a relação de direito material que ensejou processo. Por isso, salvo nos casos de perempção, litispendência ou coisa julgada, a extinção do processo não obsta que o autor intente de novo a ação (DONIZETTI, 2010, p.566).

É definitiva a sentença que resolve o mérito e pode ser entendida como a materialização do Direito objetivo que, aplicado ao caso concreto, torna-se lei especial para as partes. Tanto das sentenças definitivas quanto terminativas, cabe recurso dentro do prazo legal, todavia, uma vez decorrido in albis tal prazo, nas decisões com resolução de mérito não caberá mais questionamento acerca do que foi discutido em juízo, adquirindo a sentença os efeitos da coisa julgada material, quais sejam, a imutabilidade e indiscutibilidade de seu conteúdo dispositivo. No entanto, a própria legislação processual vigente admite algumas exceções à coisa julgada material.

O que importa para classificar a sentença como definitiva é saber se houve acertamento do direito material (no processo de conhecimento). Irrelevante é perquirir se tal composição decorreu dos atos cognitivos do juiz, que sopesou os elementos fáticos e jurídicos constantes dos autos, ou se decorreu da iniciativa das partes. Havendo reconhecimento da procedência do pedido pelo réu, transação, acolhimento de alegação de decadência ou prescrição do direito material, ou renúncia, por parte do autor, ao direito sobre o qual se funda a ação, definitiva será a sentença. Havendo resolução do mérito (art.269, I a V), a sentença é denominada definitiva. (DONIZETTI, 2010 p.567)

De acordo com Alexandre Freitas Câmara (2010) a coisa julgada é uma situação jurídica, antes inexistente, que surge com o trânsito em julgado da sentença, consistindo na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da sentença. Na chamada coisa julgada formal a imutabilidade e a indiscutibilidade cingem-se apenas à própria sentença, enquanto que na coisa julgada material tais qualidades referem-se aos efeitos do pronunciamento judicial final.

Não obstante, o próprio ordenamento jurídico prevê hipóteses em que é possível relativizar a coisa julgada. É o caso, por exemplo, da chamada ação rescisória que pode ser proposta no prazo de dois anos, uma vez presentes os vícios do art. 485 do CPC.

Art. 485 - A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV - ofender a coisa julgada;

V - violar literal disposição de lei;

VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.

RELATIVIZAÇÃO OU DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA

Atualmente, respeitados juristas sustentam a possibilidade de relativização da coisa julgada em casos não previstos na lei processual, em nome da justiça.

Capitaneada por Cândido Rangel Dinamarco, José Augusto Delgado, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, a corrente relativista sustenta, em síntese, que decisões “injustas” ou contrárias à Constituição, ainda que transitadas em julgado, podem – ou melhor, devem – ser desconsideradas e modificadas, mesmo após escoado o prazo para propositura da ação rescisória (DONIZETTI, 2010, p.610).

Os relativistas sustentam que mesmo com o trânsito em julgado da sentença e preclusão do prazo para propositura de ação rescisória seria possível, em determinadas hipóteses, desconsiderar a coisa julgada material, podendo as partes consideradas prejudicadas provocar novamente o Judiciário a fim de obter uma decisão “justa”. Para tal corrente sentenças injustas e/ou inconstitucionais, mesmo transitadas em julgado, podem ser revistas e modificadas. Veja-se a posição de José Augusto Delgado a respeito:

Essas teorias sobre a coisa julgada devem ser confrontadas, na época contemporânea, se a coisa julgada ultrapassar os limites da moralidade, o círculo da legalidade, transformar fatos verdadeiros em reais e violar princípios constitucionais, com as características do pleno Estado de Direito que convive impelido pelas linhas do regime democrático e que há de aprimorar as garantias e os anseios da cidadania (DELGADO, 2003 apud DONIZETTI, 2010, p. 611).

Argumenta a doutrina relativista que sentenças inconstitucionais, ainda que transitadas em julgado, representam vício insanável por ofenderem direitos consagrados na Carta Política, ferindo direitos e garantias fundamentais que não podem, frente ao atual Estado Democrático de Direito, ser desprezados ou simplesmente afastados nem por lei ordinária, emenda e tampouco, pronunciamento jurisdicional.

Os partidários de tal doutrina mencionam ainda como exemplo da possibilidade de relativização da coisa julgada, a hipótese da sentença com trânsito em julgado de ação de investigação de paternidade na época em que a Ciência Médica não dispunha de meios suficientes para indicar a ascendência do indivíduo, não reconhecendo a paternidade, portanto. Nesse caso seria possível desconsiderar a coisa julgada e tal processo para que o suposto filho entra-se novamente com outra ação, agora amparado pelo teste de DNA. Elpídio Donizetti ampara tal possibilidade não na afronta à coisa julgada, mas no princípio da dignidade da pessoa humana, superior a todos os outros, uma vez que todo ser humano possui o direito de saber de onde veio e a que família pertence.

A tese relativista confronta os princípios da segurança jurídica e da justiça dos julgamentos, propugnando que, em determinada situação em que tais princípios se choquem, deve-se realizar hermenêutica pautada no ideal de justiça, de forma que a justiça de uma sentença deve prevalecer sobre o princípio constitucional erigido à condição de cláusula pétrea da segurança jurídica, representado pela intangibilidade da coisa julgada.

CONCLUSÃO

As normas processuais foram criadas com o legítimo escopo de solucionar as lides de forma a retirar as partes da situação angustiante gerada pelos conflitos, através do processo, dando uma solução ao caso levado ao Judiciário. Para que cumpra sua função jurisdicional satisfatoriamente, o Estado, valendo-se do processo, age pautado em princípios que orientam a atividade do juiz de forma a conduzi-lo a um melhor julgamento, sempre pautando-se na celeridade e efetividade da resposta jurisdicional. A incerteza das partes quanto aos seus direitos é solucionada através da sentença e a segurança jurídica é a garantia de que tais direitos, reconhecidos ou não no pronunciamento monocrático, não podem mais ser modificados.

Apesar de reconhecer a relevância dos argumentos esposados pelos juristas partidários da corrente mencionada, bem como a notoriedade e contribuição de tais estudiosos para a Ciência Jurídica, a desconsideração da coisa julgada implicaria na eternização dos litígios, uma vez que, em virtude da subjetividade que envolve o conceito de justiça, sempre que a parte prejudicada considerasse determinada sentença injusta ingressaria com nova demanda a fim de discutir a justiça da decisão. Tal fato tornaria ainda mais morosa a justiça brasileira, sem mencionar no caos entre as relações jurídicas, as quais poderiam ser modificadas de uma hora para outra. É ônus que o Poder Judiciário certamente não suportaria além da afronta ao dispositivo constitucional que consagra a intangibilidade da coisa julgada material, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido.

Dessa forma, chega-se ao entendimento de que relativizar ou simplesmente desprezar a coisa julgada material seria colocar o Estado Democrático de Direito em frágeis alicerces. A desconsideração da coisa julgada importaria na angústia do jurisdicionado em saber se possui direito ou não naquela lide de tal forma que dificilmente se chegaria a uma solução definitva ao conflito, além do fato de tornar o processo ainda mais oneroso tanto para o Estado quanto para as partes.

BIBLIOGRAFIA

DONIZETTI, Elpídio.Curso Didático de Direito Processual Civil – 14 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas,2010.

MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil Volume I: teoria geral do processo e processo de conhecimento – 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil – 20ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.