RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA: E a Interpretação na Ótica da Moldura Kelsiana.

Por rita Ribeiro Fontenelle | 02/03/2011 | Direito

Autores:
Rita de Cássia Ribeiro Fontenelle
Rogério Azevedo Vinhas Júnior

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2.Interpretação em Kelsen; 2.1 A interpretação autêntica e a interpretação não-autêntica; 2.2 A indeterminação da Norma Jurídica e a moldura; 3. Considerações sobre Coisa Julgada; 3.1 Coisa Julgada Formal e Material; 3.2 Funções Positiva e Negativa da Coisa Julgada; 3.3 Os Limites Subjetivos da Coisa Julgada; 4. A relativização da coisa julgada ou Coisa Julgada Inconstitucional; Conclusão; Referência.


RESUMO
O essencial à tutela jurisdicional é o que a doutrina moderna esclarece e realça, é o da justiça das decisões. Essa preocupação não é apenas entre a doutrina e os tribunais pois quando começa a despertar para a necessidade de repensar a garantia constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas.

PALAVRAS-CHAVE: Kelsen. Moldura. Coisa Julgada. Relativização.


1 INTRODUÇÃO

A interpretação é, sem sombra de dúvidas, um dos assuntos mais instigantes sobre os quais costuma debater o cientista do direito. As contribuições para a evolução da interpretação foram muitas, sem dúvida. Nosso intento, porém, não é fazer um apanhado geral dos estudiosos da hermenêutica jurídica, mas focalizar os aspectos da interpretação em um dos grandes estudiosos do Direito do século XX ? Hans Kelsen.
Fazendo um corte metodológico e ao restringir suas considerações às normas jurídicas, Kelsen tinha como único intento conferir cientificidade ao conhecimento sobre o Direito, envolto àquela época em outros ramos do saber. Podemos afirmar que Kelsen pretendia retirar a ciência jurídica da sua condição de dependência de outras ciências sociais, pois dependia de análises sociológicas e políticas, sempre vinculadas a uma dada ideologia, como se observa na explicação de Kelsen, presente nas primeiras páginas da Teoria Pura do Direito:

De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quanto a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.


Acerca de outros elementos que não a norma jurídica Tércio Sampaio Ferraz Jr. aduz que:

A redução do objeto jurídico à norma causou inúmeras polêmicas. Kelsen foi continuamente acusado de reducionista, de esquecer as dimensões sociais e valorativas, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres humanos. Sua intenção, no entanto, não foi jamais a de negar os aspectos multifaciais de um fenômeno complexo como é o direito, mas de escolher, dentre eles, um que coubesse autonomamente ao jurista. Sua idéia era a de que uma ciência que se ocupasse de tudo corria o risco de se perder em debates estéreis e, pior, de não se impor conforme os critérios de rigor inerentes a qualquer pensamento que se pretendesse científico.


2. A INTERPRETAÇÃO EM KELSEN

Um dos capítulos da Teoria Pura do Direito se inicia com a distinção entre as chamadas interpretações autêntica e não-autêntica, passando pela indeterminação presente no ato de aplicação do Direito, os métodos de interpretação e retomando a distinção do ato de interpretação enquanto "ato de conhecimento" e "ato de vontade".

2.1 INTERPRETAÇÃO NÃO-AUTÊNTICA E INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA

No capítulo sobre a interpretação, Kelsen começa a tecer considerações sobre a atividade de aplicação do Direito. Sendo indissociável da atividade hermenêutica, já que somente é possível criar uma norma inferior quando se sabe o sentido possível da norma superior:

A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior.

Observa-se que os atos de aplicar e interpretar, esta identificação inicial é notória e se mostra presente em sua própria definição da interpretação, visto que "...a interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior" .

A esta interpretação enquanto aplicação do direito pelos agentes autorizados pela ordem jurídica, Kelsen chama de interpretação autêntica, já que o ato de interpretação, neste caso, gera direito novo, ainda que mais específico (concreto) que o anterior. Cria-se uma nova norma jurídica (inferior) pela aplicação de uma pré-existente (superior).

Kelsen identifica a interpretação não-autêntica a que engloba toda interpretação feita por quem não seja um agente competente para a criação de normas, as interpretações feitas pelos leigos e pela ciência do Direito. Para Kelsen, deve-se somente limitar a buscar os significados possíveis da norma, sem indicar qual deles é o correto:

A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ?correta?. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente.

2.2 A INDETERMINAÇÃO DA NORMA JURÍDICA E A MOLDURA

Kelsen era coerente nas suas ponderações teóricas, de forma que a sua formulação sobre a interpretação reflete, necessariamente, sua concepção de direito enquanto um sistema normativo hierarquizado.

Segundo Kelsen, o sistema deve sempre deixar uma margem, menor ou maior, conforme o direito positivo, "... de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato". É dizer que a norma superior deve orientar seu sujeito sobre os conteúdos possíveis da norma inferior. Assim, a regulação, por exemplo, da sentença pela lei o será sempre de forma mais ou menos indeterminada.

Hans Kelsen explica esta espécie de indeterminação com o seguinte exemplo:

A lei penal prevê, para a hipótese de um determinado delito, uma pena pecuniária (multa) ou uma pena de prisão, e deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma ou pela outra e determinar a medida das mesmas ? podendo, para esta determinação, ser fixado na própria lei um limite máximo e um limite mínimo.

Continua explicando Kelsen:

Aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou de uma seqüência de palavras em que a norma se exprime: o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis.

No mesmo contexto, vislumbra-se como exemplo de indeterminação intencional a situação na qual se deve aplicar uma norma que determina que as propriedades cuja utilização não atenderem ao interesse social devam ser desapropriadas.

Entram nesse grupo de indeterminação também os casos de antinomia (que pode ser a única causa da indeterminação (a dúvida de qual norma aplicar), ou estar combinada com a própria vagueza da norma.

A indeterminação, segundo Eros Roberto Grau, gera uma enorme incompreensão potencial das normas jurídicas, levando à confusão acerca da interpretação dos conceitos jurídicos postos no ordenamento: "a perturbação do pensamento claro e da expressão lúcida, relativamente à compreensão dos conceitos, resulta, fundamentalmente, da circunstância de serem ambíguos ou imprecisos os seus termos".

Não podemos falar, por exemplo, que um cachorro seja uma galinha, ou que uma lâmpada seja um cavalo. Por tais motivos, é que Kelsen fala em uma moldura de aplicação do direito:

O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.

Nos exemplos dados, as aludidas significações estariam fora da moldura, uma vez que a formulação da moldura é tarefa interpretativa cognoscitiva, consistindo em etapa preliminar à interpretação-aplicação. Não cabe aos intérpretes do Direito, segundo Kelsen, a definição da única solução correta, que estaria contida na letra da lei, já que todos os significados possíveis, desde que dentro da moldura, podem ser aplicados aos casos concretos, sem que possamos qualificar um como melhor que o outro. Esta crença numa pretensa "única solução correta" é sustentada através da hermenêutica tradicional, como aponta Fábio Ulhôa Coelho:

A hermenêutica tradicional ? chame-se assim ? se reduz à discussão sobre o método exegético mais adequado para se alcançar a verdade contida na norma, algumas vertentes propondo a pesquisa dos fatores históricos, outras pressupondo a logicidade do sistema normativo, etc. Kelsen desqualifica tal discussão. Todas as significações reunidas na moldura relativa à norma têm rigorosamente igual valor, para a ciência jurídica. Quando o órgão aplicador do direito opta por atribuir à norma interpretanda uma das significações emolduradas, não realiza ato de conhecimento, mas manifesta sua vontade.

Em algumas situações será possível que uma significação que esteja, a princípio, fora do quadro, seja nele incluída pela atividade judicial. Embora a decisão que o faça seja, em tese, anulável, a manutenção da significação fora do quadro somente ocorre com o fenômeno da coisa julgada que, consoante velho brocardo romano, pode transformar o preto em branco. Assim, embora a interpretação não-autêntica limite os significados possíveis da norma, é possível que a atividade judicial se afaste do quadro, de forma a, inovando, chegar inclusive a influenciar a largura do quadro, ampliando-lhe a abrangência. Sobre o assunto, Kelsen ensina:

A propósito, importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas, como também se pode produzir uma norma que se situe fora da moldura que a norma a aplicar representa. [...] Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Direito, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É fato bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo ? especialmente pelos tribunais de última instância.


3. CONSIDERAÇÕES SOBRE COISA JULGADA

A coisa julgada é eleita por Kelsen como fenômeno necessário somente à perpetuação de uma norma individual cujo significado, a princípio, estivesse fora da moldura. Assim, é totalmente despropositada a comparação de Hans Kelsen com escolas que entendem a função judicial como mera declaração da solução que já estaria pronta e acabada na lei. Muito pelo contrário, ao admitir a vagueza dos signos como causa para o preenchimento do significado da norma pelo juiz, Kelsen admite várias soluções distintas para o mesmo caso como possíveis.

A coisa julgada é expressamente garantida como "direito fundamental", no art 5º, XXXVI, da Constituição Federal, o referido dispositivo refere-se concomitantemente ao "direito adquirido" e ao "ato jurídico perfeito", de uma técnica adotada pela lei de garantir estabilidade a determinadas manifestações do Estado-juiz, é uma forma de garantir maior segurança jurídica aos jurisdicionados.
A natureza jurídica da coisa julgada é que de uma concepção que entendia a coisa julgada como um "efeito" da sentença. A doutrina mais recente, baseada no entendimento de Liebman passou a entender a coisa julgada não como um efeito da sentença, mas, mais especificamente, uma especial qualidade atribuída a seus efeitos; a quaisquer de seus efeitos e não somente aos efeitos declaratórios. A coisa julgada só pode ser compreendida como algo a mais que se junta, que se agrega aos efeitos da sentença. O CPC em seu art. 467 acabou por definir a coisa julgada como efeito da sentença.
A sentença, mesmo antes de "transitar em julgado", isto é, antes de revertir-se desta especial qualidade que a imuniza de questionamentos futuros, pode produzir seus efeitos com maior ou com menor intensidade. É o que se dá nos casos da chamada "execução provisória". A hipótese inversa também merece menção, a sentença mesmo que não seja objeto de recurso, não poderá surtir seus regulares efeitos porque sujeita ao que se convencionou chamar de "reexame necessário". Aqui, a sentença não é imutável porque sobre ela não recai, ainda, a coisa julgada.
A tendência do direito brasileiro mais recente é a de admitir "efeitos" e, mais amplamente, "eficácias" imediatas independentemente de sua estabilização. A "efetividade do processo", neste sentido, acaba prevalecendo sobre a "segurança jurídica". A coisa julgada é instituto que se afina a este valor; não àquele. O conceito dado pelo art.467 reclama alguns complementos que são revelados pelo art. 468. Este dispositivo reconhece à decisão "que julgar total ou parcialmente a lide" a autoridade da coisa julgada, passando a ter, por isso mesmo, " força de lei nos limites da lide e das questões decididas".
Para o Direito Processual Brasileiro, só as decisões de mérito transitam em julgado. Só elas se tornam imunes a questionamentos futuros. As "questões decididas" a que se refere o art. 468 devem ser entendidas como todos os demais pedidos que, desde o recebimento da petição inicial até o proferimento da sentença, foram formulados ao longo do processo.

3.1. COISA JULGADA FORMAL E COISA JULGADA MATERIAL

A coisa julgada formal é a ocorrência da imutabilidade dos efeitos da sentença ou, mais amplamente de seu comando "dentro" do próprio processo. É o que ocorre quando não é interposto no prazo da lei o recuso cabível da sentença ou do acórdão. É coisa julgada formal aquela sentença não mais sujeita a qualquer espécie de impugnação endoprocessual , portanto, trata-se de realidade próxima àquela desempenhada pela preclusão.
A coisa julgada material representa a característica de imutabilidade do quanto decidido na sentença para "fora" do processo. Trata-se da concepção de coisa julgada a que geralmente se faz referência. É aquela mesma característica de imutabilidade analisada de fora do processo.

3.2. FUNÇÕES POSITIVA E NEGATIVA DA COISA JULGADA

A doutrina descreve duas funções para a coisa julgada: a função positiva que relaciona-se à noção de a imutabilidade da decisão transitada em julgado obrigar, isto é, vincular as partes perante as quais ela foi proferida; e a função negativa que captura o instituto como pressuposto processual negativo, isto é, como um fator impeditivo de sua de sua rediscussão por qualquer órgão jurisdicional ou pelas próprias partes. Trata-se de uma verdadeira conseqüência da identificação de sua função positiva. Para que a função negativa da coisa julgada seja devidamente desempenhada , é mister que se tenha presente a teoria da identificação das demandas, isto é, saber em que condições duas demandas são idênticas e, por isso mesmo, em que medida a segunda delas não pode ser julgada novamente pelo Estado-juiz (art. 301, §§ 1º a 3º).

3.3. OS LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA

É a parte da decisão que fica imunizada de ulteriores discussões, é dizer, o que não pode mais ser rediscutido perante o Estado-juiz pelo prevalecimento do princípio da segurança jurídica.
O que transita em julgado, é dizer, o que faz coisa julgada e torna-se "imutável" é a parte "dispositiva" da decisão ? o "comando da decisão", isto é, aquilo que o Estado-juiz determina "deva ser" ? e não a sua fundamentação, isto é, as razões de decidir, assim: 1. todas as outras questões, ainda que influenciadora em maior ou em menor grau do quanto decidido e, mais, as "questões" que necessariamente precisaram ser enfrentadas e decididas para que a "parte dispositiva" fosse alcançada, não são cobertas por esta qualidade de imutabilidade (art. 469 CPC), segundo o qual "não fazem coisa julgada"; I ? os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II- a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III- a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo".
A impossibilidade de rediscussão da "questão prejudicial", de resto, é técnica que atua em favor de uma maior estabilização do quanto decidido porque impede que, numa futura atuação do Estado-juiz, o resultado prático do processo anterior seja esvaziado.É lembrar do exemplo da "ação de alimentos": mesmo que ao réu seja imposto o dever de pagá-los ao autor, uma iniciativa sua quanto à negação de paternidade (no exemplo, uma das premissas fundamentais, de acordo com o próprio direito material, para a obrigação alimentar), se acolhida, terá como efeito prático infirmar o que havia decidido anteriormente ainda que, tecnicamente, não haja qualquer afronta àquela coisa julgada por serem as demandas diferentes.

3.4 LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA

É o fato "de quem" fica vinculado ao que foi decidido, é o que a doutrina usualmente identifica como limites subjetivos da coisa julgada, são relacionados com os sujeitos que não podem pretender tomar a iniciativa de rediscutir o que já foi soberanamente decidido pelo Estado-juiz porque vinculados à decisão já proferida (art. 472). Justamente porque os efeitos das decisões jurisdicionais afetam, com maior ou menor intensidade, aqueles que não participam do processo (os terceiros), é que se põe a necessidade de examinar em que condições aqueles terceiros, precisamente por aquele motivo, podem ou devem ingressar no processo. E mais: uma vez que sua intervenção seja possível, quais são as possibilidades de sua atuação processual e, mais amplamente, qual é o papel que poderão (ou deverão) desempenhar ao longo do processo.
A segunda parte do art. 472 dá a entender que alguns terceiros se sujeitam à coisa julgada, é dizer, à imutabilidade do que foi decidido num dado processo. Ocorre, contudo, que os "interessados" lá referidos não podem ser identificados como verdadeiros terceiros, mas, bem diferentemente, como partes. Tanto assim que o dispositivo refere-se à figura do "litisconsórcio necessário", que é a situação em que, por força da lei ou por força do próprio direito material subjacente ao processo, impõe-se que uma pluralidade de autores, de réus ou de autores e réus atuem concomitantemente em juízo em um mesmo processo.
A distinção entre "partes" e "terceiros" aqui empregada é eminentemente formal, isto é, ela leva em conta o plano do processo e não o plano do direito material, é irrecusável admitir a necessária e inafastável influência do plano material sobre o processual.
A "legitimação ordinária é aquele que é parte, isto é, aquele que atua perante o Estado-juiz, pertence, ao menos como hipótese de trabalho, ao plano material controvertido, e o de "legitimação extraordinária" que se admite por força do art. 6º, a ruptura radical dos planos do processo e material.
Quem fica sujeito à imutabilidade do quanto decidido: aquele que atua em juízo ou aquele em prol de quem se atua? A melhor resposta é aquela que sustenta que a coisa julgada recai sobre aquele que não age em juízo, a despeito de não ser "parte" no sentido proposto. É a própria razão de ser do instituto da legitimação extraordinária que conduz a este entendimento. Se a própria lei admite que haja uma verdadeira dicotomia entre aquele que age em juízo e o destinatário da tutela jurisdicional, imediata a percepção de que a atuação daquele que age deve vincular aquele que não agiu.

3.5 MEIOS DE CONTRASTE DA COISA JULGADA

A coisa julgada aceita impugnação. Embora sua proteção tenha assento constitucional expresso no art. 5º, XXXVI, é possível e, mais do que isto, desejável, que o legislador possa estabelecer padrões de seu contraste diante do necessário prevalecimento de outros valores ou de outros ideais do mesmo ordenamento jurídico.
Não deve prevalecer, por isso mesmo, o entendimento de que a coisa julgada é, ela própria, uma espécie de "sanatória" geral de qualquer vício ou nulidade do processo. Que, uma vez julgados os recursos interpostos ou não cabível mais qualquer forma de impugnação da decisão, e formada a coisa julgada, o que foi decidido torna-se imutável e imune a qualquer discussão.
O que se dá na "ação rescisória" (art. 485) pela qual a coisa julgada pode ser removida (desconstituída) quando presente uma ou mais de uma das hipóteses arroladas nos diversos incisos daquele dispositivo; com a "impugnação" ao cumprimento de sentença, em que é dada oportunidade ao réu de contrastar o título executivo representado pela decisão transita em julgado por variados fundamentos, que vão desde a falta ou nulidade de citação para o processo (inciso I art. 475-L) até a declaração de inconstitucionalidade da lei sobre a qual se funda o título (§ 1º do art. 475-L); com os "embargos à execução" opostos pela Fazenda Pública (art. 741), para os quais são cabíveis, por ora, as mesmas considerações feitas à "impugnação" do art. 475-L; e com o chamado "mandado de segurança contra ato judicial", cujo uso é admitido pela doutrina e pela jurisprudência, mitigando o rigor da Súmula 268 do STF, mesmo contra decisões transitadas em julgado, embora o art. 5º ,III, da Lei 12.016/2009, que passou a reger o instituto, vede-o expressamente para este fim.
O art. 486, por seu turno, prevê o cabimento de uma demanda em que o autor pode pretender a declaração de nulidade ou a desconstituição de um ato que acabou por ser homologado judicialmente e que, por esta razão, assumiu relevância para o plano do processo, podendo, inclusive, ter transitado em julgado. São as hipóteses da chamada "ação anulatória", que se voltam não à decisão jurisdicional propriamente dita, mas ao ato que elas consideraram formalmente correto.

4. A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA OU COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

Crescente parcela da doutrina, capitaneada por considerações de José Augusto Delgado e Humberto Theodoro Júnior, tem desenvolvido a tese de uma necessária relativização da coisa julgada em casos em que houver, flagrantemente, alguma injustiça ou, de forma mais ampla, algum flagrante erro de julgamento. É o que ocorre, por exemplo, em casos em que o reconhecimento jurisdicional da filiação se dá em contraste ao que, em função dos avanços tecnológicos, é possível, com previsão, estabelecer ou em que a decisão foi proferida com base nas mais variadas formas de corrupção que só é apurada depois de longo espaço de tempo.
É comum em situações como esta as vozes que sustentam a necessidade de o princípio da segurança jurídica, que, em última análise, dá sustento à coisa julgada, ceder espaço a outros valores, igualmente consagrados pela CF, e consequentemente, admitir-se um novo julgamento da causa. É como se dissesse que uma verdade materialmente reconhecida em virtude de uma anterior decisão jurisdicional.
Um dos opositores a esta posição é Nelson Nery Júnior, para eles a estabilização da coisa julgada, mormente porque expressamente consagrada pela CF, ao contrário do que se dá em outros países, não admite, fora das situações expressamente prevista pela própria Constituição ou pela lei, ser mitigada.
Sua aceitação, contudo, deve depender das especificidades de cada caso concreto ? vedada, por sua definição, sua generalização -, em que se possa contrastar, frente a frente, o conflito dos valores envolvidos e verificar em que medida e por quais razões a segurança jurídica, valor predominantemente protegido pela coisa julgada, deve ceder espaço a outros valores ou a outros princípios. É dizer de forma bem direta: não se pode, justamente por causa da influência do "modelo constitucional do direito processual civil", sustentar a aplicação indiscriminada, até mesmo generalizada da tese da "relativização da coisa julgada". Um tal aplicação não pode ser aceita.
Relativização da coisa julgada significa explicar um instituto que desde a sua criação até bem pouco tempo foi visto como algo absolutamente intocável. Não se pode mais ter aquela noção de outrora que afirmava que a coisa julgada transformava o branco em preto ou o redondo em quadrado; por outro lado, não se pode defender uma banalização do instituto, mas apenas uma reformulação condizente com o ideal que se tem atualmente sobre a busca da efetividade do processo.
Cândido R. Dinamarco, por exemplo, defende que deve prevalecer a tese da relativização da coisa julgada sempre que houver uma injustiça dada na primeira decisão, ou ainda, quando a injustiça da primeira decisão for qualificada como "séria" ou "grave".
Ovídio Baptista ataca o fundamento acima dizendo que: "Parece que não se deve condicionar a força da coisa julgada, a que ela não produza injustiça; ou ainda, estabelecer como pressuposto para sua desconsideração, que essa injustiça seja "grave" ou "séria".
E continua o doutrinador, esclarecendo que: "Ao adotarmos esse critério, nada mais restará do instituto. Afinal, que sentença não poderia ser acusada de "injusta"; e qual a injustiça que não poderia ser tida como "grave" ou "séria"? Como medir a gravidade de uma injustiça? Afinal a injustiça pode ser grave e por vezes pode ser que não seja tão grave?"
Com os argumentos de Ovídio Baptista, sabe-se que a coisa julgada é instituto ligado ao Estado de Direito e não tem nada a ver com a justiça da decisão esperada pelos jurisdicionados. A justiça buscada no judiciário é falível uma vez que é humana. A justiça do judiciário que nos é ofertada é o máximo que podemos buscar, pois está limitada pela razão humana. Portanto, a coisa julgada não tem nada a ver com a justiça da decisão, mas sim com a segurança que é uma garantia que temos contra o poder.
Em voto proferido como relator na Primeira Turma do Colégio Superior Tribunal de Justiça, o Min. José Augusto Delgado declarou sua "posição doutrinária no sentido de não reconhecer caráter absoluto à coisa julgada" e disse filiar-se "a determinada corrente que entende ser impossível a coisa julgada, só pelo fundamento de impor segurança jurídica, sobrepor-se aos princípios da moralidade pública e da razoabilidade nas obrigações assumidas pelo Estado".




CONCLUSÃO

A ciência está em evolução, fato esse que faz com que o direito sofra alterações diversas, uma vez que possui relações multidisciplinares, como a biologia, a medicina, a física, a química, dentre outras. Daí, frente à capacitação do direito, que em assuntos não podem passar desapercebidos às novas tendências, sob pena de haver injustiça.
Porém o Legislador não pode prever todos os avanços científicos quando do processo de elaboração das leis, fato esse que faz com que ocorra muitas vezes "desencontro" entre a letra da lei e o avanço tecnológico. "O legislador é antes uma testemunha que afirma a existência do progresso do que um obreiro que o realiza."

Entretanto, as deficiências no âmbito processual não podem prejudicar as partes, as quais zelam pela justiça, nem a sociedade que prefere pela máxima segurança possível. Eis a problemática do tema: discutir a questão da possibilidade de relativizar a segurança jurídica, petrificada constitucionalmente, para que dessa forma seja possível a aplicação da justiça ao caso concreto. O fato é que a relativização da coisa julgada não pode ser realizada de qualquer maneira, em qualquer caso, mas deve observar bastante critérios para que não haja uma vulgarização do instituto, gerando ainda mais injustiças.

Tentamos relacionar o tema com as concepções da interpretação em Kelsen e demonstrar sua atualidade mediante uma releitura que lhe empreste um enfoque lingüístico, bem como sua aplicabilidade para a interpretação cotidiana do direito positivo e, especialmente, da Constituição, encontrando limitações hermenêuticas no enunciado e no contexto significativo, conciliando com os meios mais modernos de exegese das normas jurídicas.

REFERÊNCIAS

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GRAU, Eros Roberto. Conceitos indeterminados. In: Justiça Tributária: direitos do fisco e garantias dos contribuintes nos atos da administração e no processo tributário. Anais do I Congresso Internacional de Direito Tributário, realizado em Vitória/ES. São Paulo: Max Limonad, 1998.
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