Relativismo Cultural na Comunidade Quilombola dos Arthuros
Por Alan Pereira da Silva | 26/07/2010 | SociedadeA Comunidade dos Arturos tem sua origem ligada à história do negro Arthur Camilo Silvério, filho de escravo, nascido por volta de 1885, cujo nome tornou-se auto denominação de seus descendentes, que foram criados unidos, em torno da família, da terra e da fé em Nossa Senhora do Rosário. O grupo familiar habita uma propriedade particular situada no município de Contagem - MG, mantendo viva a memória dos seus ancestrais e preservando os ensinamentos recebidos. A comunidade mantém assim, importantes tradições de cultura negra brasileira, transmitidas de pai para filho, desde aspectos da culinária e do cultivo da terra até a organização da vida comunitária.
Dessa forma esse relatório busca descrever em termos antropológicos a diversidade cultural, observadas dentro da comunidade nos dias 03 e 04 de outubro de 2009, durante as celebrações da Festa de Nossa Senhora do Rosário, que fazem do grupo um universo a parte, quando os Arthuros se transmutam em filhos do Rosário.
Por meio de metodologias como a observação participante, mesmo em um período de apenas dois dias, buscaremos relatar o relativismo cultural existente hoje entre uma comunidade quilombola e a sociedade. Nas entrevistas cedidas pelos assentados no quilombo dos Arturos, buscamos compreender o sentido do que é ser quilombola e qual a importância de manter viva uma tradição que atravessa séculos de história.
O modo de ser dos Arturos se expressa fundamentalmente nas manifestações artístico-culturais e celebrações do sagrado que o grupo preserva e recria. Nos dias 03 e 04 de outubro de 2009 a comunidade celebrou a Festa de Nossa Senhora do Rosário, uma das fases mais importantes para a vida da comunidade, representando o movimento máximo do amor à grande Mãe.
Quando dizemos "recria" é mesmo em seu sentido mais original, pois o que se percebe é uma grande encenação do que os negros escravos passaram em vida para conseguirem demonstrar sua fé e gratidão a grande Mãe. A intolerância da Igreja Católica aos batuques e danças dos negros impedia que esses endentassem ao culto de adoração aos santos católicos, sendo proibidos de frequentarem a igreja. Não buscaremos aqui descrever o processo histórico do Congado, mas a manifestação cultural observada dentro da comunidade dos Arturos.
A grande celebração começa com o processo de recepção dos convidados, que se manifestam de forma a unir fé e força para resistir às intempéries da sociedade não negra. Todos são recebidos com uma hospitalidade admirável, até mesmo aqueles que buscam apenas explorar a cultura do povo quilombola. Segundo o Sr. Jorge, Capital da Guarda de Moçambique da comunidade dos Arturos, muitos estudiosos e a própria mídia fazem uso da manifestação cultural visando fins lucrativos, como publicações de trabalhos científicos e resposta a audiência. Ainda segundo o entrevistado não há uma preocupação com o resgate cultural e nem mesmo com a tradição, apenas são atribuídos a essas manifestações valores com respostas que assegurem o interesse privado.
Antes do sol se pôr cabe aos homens levantar os mastros que guiarão os congadeiros na manifestação de fé. Sob os mastros são montados os altares onde a devoção aos santos se manifestará por meio de danças, batuques, rezas e lamentos. Nesses altares são encontrados flores, velas acessas, fitas coloridas e uma grande bandeira que representa que naquele local há fé e esperança de um mundo melhor que a Santa trará com sua visita.
As mulheres são destinadas ás obrigações da cozinha. As refeições são preparadas respeitando a tradição da culinária afrodescendente. No café matinal são oferecidos bolo de fubá, café com rapadura, mandioca frita, frutas, milho verde, doces etc. Em seguida os Congadeiros se concentram na porta da capela da comunidade, caracterizados segundo a estrutura do mito. Os Moçambiqueiros usam as cores de nossa senhora, o azul e o branco, e os Congolenses se vestem de rosa e flores coloridas, representando o caminho de galhos e flores para a Nossa senhora passar. O que se percebe nesse momento, é uma manifestação da cultura negra sem indícios algum de aculturação. A adoração a Nossa Senhora fica por conta do imaginário dos participantes, pois ainda não há nenhuma referência palpável a ela, como imagens e/ou outros atributos da cultura Católica.
Na porta da capela começa um grande lamento negro, que retrata a dor e a exclusão dos negros no cenário religioso cristão.
"(...) Negro não matou não, negro não roubou nada, eu vou pedir Nossa Senhora do rosário para que seja minha advogada (...)".
Em seguida segue uma grande procissão até a Matriz de São Gonçalo. Indo a frente, o Congo anuncia a chegada dos filhos do Rosário com seus ritmos rápidos e movimentos ágeis, preparando a passagem para o Moçambique conduzir Reis e Rainhas, representantes de Nossa Senhora do Rosário e demais santos de devoção dentro da comunidade. No caminho os cânticos relembram a história sofrida dos antepassados dos quilombolas.
"No tempo do cativeiro, quando o Senhor me batia, eu gritava por Nossa Senhora meu deus, quando a pancada doía."
Os sons são emitidos por instrumentos como o cachichi, agogô e as caixas, que lembram instrumentos como o tam-tam e o tambor. Nos pés são colocadas algumas latas com pedras, que à medida que se locomovem emitem um barulho parecido com o som de correntes sendo arrastadas. Na frente da guarda segue um manto, enfeitado com as cores dos santos em que os fiéis passam e beijam-no numa manifestação de adoração. Todos levam consigo apetrechos como rosários, muitas argolas, pulseiras e colares de rezas, homens e mulheres caracterizados como pede a tradição para um dia de comemoração.
Ao chegar à porta da Igreja Matriz de São Gonçalo, os congadeiros circulam toda a Igreja, juntos com as outras Guardas convidadas que veem prestigiar a vitória dos Arturos filhos do Rosário. É como se cada guarda representasse uma aldeia, ou um grupo de negros. Dançando e cantando os adoradores de Nossa Senhora encontram a Igreja fechada, como forma de repressão ao modo de devoção dos negros pelos santos católicos.
"Deixa esse povo entrar, deixa esse povo entrar, deixa esse povo entrar, esse povo só quer rezar".
Segundo os quilombolas e suas crenças, no tempo dos seus antepassados a Igreja se abriu sem interferência de nenhum homem, o que significou à aceitação e acolhimento da grande Mãe a manifestação de devoção que os negros a ela prestavam. Por se tratar de uma recriação dos tempos de escravidão os Congadeiros, pedem autorização do Padre para entrarem na Igreja e adorarem a imagem de nossa Senhora.
"O Senhor Padre eu também sou filho de Deus, Nossa Senhora abra a porta venha receber filhos teus".
Após um longo período de lamentos e pedidos de permissão para entrarem na Igreja a porta é aberta pelo Sacerdote, que recebe os filhos do Rosário com seus batuques e presentes para a Santa.
A partir dessa aceitação dos negros dentro da Igreja se percebe um relativismo cultural, quando o Padre abre mão de seus valores etnocêntricos e realiza a chamada missa conga. Um ritual que respeita as tradições cristãs, mas que são envolvidas pelas manifestações afrodescendentes. Ao final da celebração, o Padre sai em procissão com os quilombolas, junto à imagem de Nossa senhora do rosário, carregada pelos adeptos do congado, cantando, dançando se envolvendo e aceitando a diferença cultural que representa um mesmo objetivo, agradecer a Santa pelas graças alcançadas. Assim os escravos se veem livres da aculturação cristã e essa liberdade se transforma em som, em festa em dança.
No retorno da procissão, em cada local onde está hasteado o mastro de Nossa senhora, há uma parada onde todos cantam e dançam, louvando a visita da Santa na comunidade. A fé se mostra tão presente e a gratidão tão aparente que vários dos adeptos choram, se abraçam, riem numa mistura de sentimentos que se torna inexplicável.
A partir desse momento é que se dá a grande festa do relativismo cultural. As mulheres servem a todos um almoço típico da culinária afrodescendente, muitos grãos, feijoada, bebidas fortes como cachaça e vinho, dividindo com todos um dos momentos mais sagrados da vida segundo eles, a refeição. Após o almoço a frente da capela da comunidade se torna um grande palco, onde todos dançam e cantam para Nossa Senhora do Rosário ao redor do cruzeiro, uma manifestação única do relativismo cultural entre cristãos negros e não negros. A festa termina com as manifestações de gratidão de todos, pelas graças alcançadas e pela visita da Santa na comunidade.
Importante ressaltar, que ser um Arturo significa ter alguma ligação biológica, consaguínea ou ser casado com algum membro da comunidade que possua essas características. Segundo os próprios membros da comunidade, isso permite que se mantenha uma tradição, onde se refaz e se fortalece a comunhão da família celeste e da família humana. Isso também impede o processo de crescimento desorganizado da comunidade, uma vez que se coloca um determinismo biológico para possuir posse de terra na comunidade, além de promover uma melhor aceitação no processo de endoculturação, acreditando que a tradição se passa de geração em geração.
Questionados sobre o relativismo cultural, que segundo acreditamos deve considerar qualquer manifestação cultural, como um processo exterior do homem, manifestando a sua inserção em qualquer comunidade, independente de tradições e valores, perguntamos ao Sr. Jorge se tal conduta não resultaria num processo etnográfico da cultura quilombola dos Arturos. Segundo ele não, pois o que essa conduta visa é manter laços familiares. O que ele acredita é que o poder patriarcal e familiar de uma solidariedade mecânica ajuda a manter a tradição, porque todos reconhecem a importância da história de vida do fundador da comunidade no processo cultural em que estão envolvidos, mas ainda sim é possível e aceitável que qualquer membro da comunidade permeie qualquer outra cultura que não façam parte da história dos Arturos.
Mas como compreender nesse estudo etnocêntrico o processo de relativismo cultural? Embora as manifestações descritas nesse relatório reforcem a identidade dos Congadeiros, há uma grande compreensão do sentido positivo da diferença, perceptível na aceitação dos quilombolas na forma de como os convidados desses manifestam sua devoção a Nossa Senhora do Rosário, que compreendem na diferença o sentido da preservação e tradição da cultura negra. A percepção de que a história que compõe essas manifestações não é evolucionista e nem mesmo totalizadora, mas sim agregadora da identidade individual de cada pessoa no cenário das manifestações ali presente retratam a epistemologia ali apresentada. Essa teoria da construção de conhecimento se manifesta por meio da desnaturalização, processo antropológico de origem cultural e não natural.
Dessa forma entende-se que ali realiza a retenção e comunicação de idéias entre os homens, avaliadas como um processo de educação que rompe com determinismos biológicos, geográficos ou sobrenaturais, inserindo o homem na ordem natural buscando na dialética produzir conhecimento, que transmitidos aos seus descendentes se denomina cultura e se manifestam em qualquer comportamento do ser humano.
CONSIDARAÇÕES FINAIS
Entender as manifestações culturais que encenam uma determinada comunidade é antes de tudo respeitar a diferença de expressão do próximo. Quando inseridos em qualquer ambiente que não nos pertença por natureza ou tradição, nos habituamos a ele em resposta a diversidade, procurando por meio da epistemologia, criar uma posição crítica favorável ou não. É o que se percebe ao redor da comunidade dos Arturos, todos os presentes em busca de uma resposta, seja etnocêntrica ou relativista.
Segundo Marvin Harris, "nenhuma ordem social é baseada em verdades inatas, uma mudança no ambiente resulta numa mudança no comportamento". Entende assim que está presente numa manifestação cultural seja ela de qual espécie for não significa estar condizente com ela. Tomemos como exemplo, os convidados na festa de Nossa Senhora do Rosário. Nem todos ali presentes concordam ou aceitam a manifestação de fé que os Arturos demonstram a Santa com seus valores típicos, mas estão ali em busca de um conhecimento que produzirá uma crítica antagônica ou não aos adeptos da comunidade. De toda forma a mudança de ambiente resulta num comportamento seja ele de susto, de surpresa ou admiração.
O resultado desse estudo, na dimensão epistemológica da pesquisa, olhar, ouvir e registrar, nos permitiu reconhecer na diferença, que valores alheios são facilmente inseridos dentro de nossa cultura quando buscamos construir uma teoria crítica. A manifestação de fé em que observamos nos fez acreditar que cultura esta diretamente ligada a um processo de educação e que segundo Kroeber rompe os laços biológicos, acreditando ser tudo aquilo aprendido no comportamento do homem.
Assim o que buscamos demonstrar são valores de uma comunidade específica que através de suas tradições e relações familiares educaram seus descendentes, e buscam manter viva toda a tradição vivida pelos seus antepassados, abrindo as portas de suas manifestações para todos que procuram por meio do entendimento e do empirismo promover-se a endoculturação, processo em que o passado dos seus antepassados não puderam viver sendo quase esmagados pela aculturação do homem branco.