Relações familiares perigosas: o confronto tradição e modernidade em Lavoura arcaica e As Irmãs Makioka
Por Lilian Silva Salles | 12/11/2012 | LiteraturaOriente e Ocidente: a fronteira entre tradição e modernidade nas relações familiares.
“Se pensarmos a literatura comparada, como o espaço em que se pensa um amplo repertório de fronteiras e de aberturas, de limiares – uma casa com muitas portas –, e que seria possível, sim, concebê-la sem um outro elemento desse repertório, mas nunca sem a idéia desses limites e desses limiares, vemos que os estudos culturais acrescentam ao repertório de limiares da literatura comparada aquele que demarca as identidades culturais, que opõe o mesmo ao outro” (MARCOS MACHADO NUNES).
Na fronteira imprecisa que distingue os valores de tradição e modernidade presentes nas obras literárias orientais e ocidentais, abre-se um espaço para a reflexão sobre as relações familiares embasadas nos conceitos e preceitos patriarcais. Ao confrontar as escrituras ficcionais do Oriente e Ocidente, busca-se o comparativismo, cujos pontos teóricos admitem não apenas o estudo comparativo de duas ou mais obras literárias, “[...] oriundas seja de literaturas e línguas nacionais diferentes, seja de uma mesma literatura, como também a comparação entre obras literárias e obras pertencentes a outras linguagens artísticas” (CARVALHAL, 1999, p. 60). Engendra-se, neste escrito, uma análise das obras Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, e As Irmãs Makioka, de Jun’Ichiro Tanizaki.
O ponto nodal configura-se em mostrar o confronto entre os valores tradicionais e a modernidade, e também a representação desses valores nas instituições familiares do Oriente e do Ocidente: trazer à baila a tessitura que erige as obras Lavoura arcaica e As irmãs Makioka como um mundo de valores, no qual os muitos modos de conhecer a narrativa dependem da postura do sujeito (leitor) diante do objeto de conhecimento. O arcaico e o moderno estão presentes nas obras de Nassar e Tanizaki, pois cada um, a seu modo, busca desvendar os segredos do universo ficcional, atribuindo-lhes no processo de composição uma forma estética peculiar.
Relações familiares perigosas: o contexto do Oriente e do Ocidente
“Nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado,
mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado”
(Albert Einstein)
Atualmente as pesquisas sobre o Oriente e Ocidente desenvolvidas por diferentes estudos literários apontam a literatura comparada como um fundamental método de pesquisa, uma vez que equaciona os aspectos culturais, sociais e étnicos, ao adicionar diferentes campos de estudos no âmbito literário, ampliando as análises comparativas. A esse respeito afirma Reinaldo Marques, na obra Cultura, contextos e discursos (1999, p. 66):
[...] os estudos literários, em particular os da literatura comparada, e os estudos culturais evidenciam o caráter fluido e esgarçado das fronteiras que delimitam os espaços disciplinares, que se apresentam não mais como territórios onde se fixar e enrijecer, dentro da lógica de um pensamento identitário substancialista, mas como território a serem atravessados, cruzados e rasurados por novos sujeitos do conhecimento.
De fato, percebe-se a existência da ambivalência do Oriente e do Ocidente nas relações familiares presentes nas obras Lavoura arcaica e As irmãs Makioka.
Nessas obras, a preocupação com a manutenção das tradições da cultura oriental reforça a identidade étnica das personagens, enquanto o universo sóciocultural do Ocidente propicia o desvelar da modernidade.
Em linhas gerais, observa-se na novela As Irmãs Makioka que a personagem Taeko representa a ruptura com a tradição patriarcal oriental familiar, e a busca pelo moderno na aparência ocidental.
Já no romance Lavoura arcaica a personagem André deseja romper com a tradição religiosa imposta pela personagem pai.
Com efeito, as personagens Taeko e André estão em conflito com a herança patriarcal que delimita os papéis sociais e religiosos e evidenciam o desejo de romper com a tradição para conquistar maior projeção social e autonomia.
O conceito de família patriarcal aqui adotado remete à obra Casa-grande & senzala (2005), de Gilberto Freyre. Segundo ele, a família na sociedade brasileira desenvolveu-se a partir do modelo patriarcal. Tal modelo tinha como características básicas: grande poder do patriarca sobre os demais membros da família; submissão total da mulher em relação ao marido; "respeito" e obediência dos filhos diante da autoridade do pai. A esse respeito comenta Gilberto Freyre (2005 , p. 265):
Neste modelo familiar o patriarca, também visto como o "chefe" da família, era quem definia os destinos de todos os que estavam sob sua guarda e proteção. A família patriarcal não era composta apenas por pai, mãe e filhos, pois envolvia uma rede de parentes e agregados. Era a chamada família extensa e, do mesmo modo, era sinônimo de unidade produtiva e de poder político e econômico.
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As relações que se estabeleciam no interior da família patriarcal tinham como objetivo a manutenção do poder e da propriedade. Era o pai quem escolhia os futuros maridos para suas filhas motivado sempre por fatores de ordem econômica e política. Os casamentos deviam ser realizados no sentido de manter e/ou ampliar o grau de poder e influência da família patriarcal. Esse modelo de família também foi adotado pela cultura oriental.
No entanto, para melhor compreensão das questões aqui abordadas, propõem-se inicialmente a apresentação e a discussão das obras As irmãs Makioka e Lavoura arcaica.
Com efeito, em Jun’Ichiro Tanizaki a valorização da tradição japonesa é a marca pessoal do escritor, elemento de destaque na novela As Irmãs Makioka (1943-48) que conta a história de uma família tradicional da alta burguesia do Kansai (região oeste do Japão: Kyoto- Osaka- Kobe), às vésperas da Segunda Guerra Mundial. As irmãs que dão nome ao livro, Tsuruko, Sachiko, Yukiko e Taeko, unem-se na tentativa de casar uma delas, prestes a completar trinta anos. A "solteirona" do enredo, Yukiko, representa a inércia das relações e, ao mesmo tempo, a força da tradição.
A caçula Taeko, que também tem intenções de se casar, precisa esperar que as mais velhas se casem primeiro. A personagem Taeko representa um Japão mais aberto à modernização dos costumes.
As personagens estão a todo o momento preocupadas com as relações matrimoniais. Enquanto o Japão invade a China e a guerra eclode na Europa, as Makioka continuam fazendo suas visitas anuais a Kyoto, para ver as cerejeiras em flor.
Observe-se que não é por acaso que o casamento esteja no centro da novela. Tudo gira em torno dele. Cada nova proposta é uma história de suspense em si, pois o lugar do casamento é central na tradição japonesa, como demonstra o excerto:
Os Makioka já começavam a desesperar de encontrar um candidato com tal condição familiar [...] em resumo, a condição de solteiro compensava de sobra os demais inconvenientes. Além do mais, pareceu a Sachiko que Yukiko apreciaria o fato de este homem, a despeito de ser um simples assalariado, ter sido educado na França e de possuir também, o que tudo indicava, boas noções de literatura e de artes francesas. As pessoas que não privam da intimidade dos Makioka viam em Yukiko uma mocinha de gestos tipicamente japoneses, mas essa imagem superficial provinha de suaS roupas, aparências, linguajar e gestos. A verdadeira Yukiko não era bem assim, e prova disso era o fato de estudar francês e de ser muito mais entendida em música de composições ocidentais que de japoneses (TANIZAKI, 2005, p.32).
Por essa via entende-se que, ao retratar o cotidiano de uma típica família nipônica conservadora, cujo objetivo maior é o matrimônio de um membro da família, o narrador encena uma sutil discussão dos costumes, da cultura e das relações sociais japonesas tradicionais e a presença da cultura ocidental.
Nesse sentido, nota-se a fronteira entre tradição (Oriente) e modernidade (Ocidente), além da forte inter-relação entre Ocidente e Oriente, provocada pelo hibridismo identificado nos estudos comparados, como uma mistura coletiva das relações artísticas, sociais, políticas e geográficas. A comparativista Tânia Carvalhal, na obra Cultura, contextos e discursos (1999, p. 11) afirma que:
[...] o tópico da “diluição de fronteiras”, juntamente com a questão da “contextualização” como dado básico para o entendimento das especificidades culturais, a compreensão da fronteira como um espaço móvel e sempre refeito do “híbrido” onde os contatos e as interpenetrações se efetuem, são objetos concretos de uma reflexão que se ocupa com as transferências, as passagens, as migrações e as trocas.
Ao mesmo tempo, a narrativa introduz o universo do patriarcado, que de forma bastante limitada, estabeleceu atribuições específicas entre gênero (masculino/ feminino) e valor (superior/ inferior). Em As Irmãs Makioka, a personagem Taeko – irmã caçula – representa a ruptura com as velhas tradições orientais, ao cultivar pensamentos, ações e até mesmo aparência ocidental – buscar relacionamentos com pessoas que a “casa central” (local onde vivem o casal mais velho responsável pelas irmãs mais novas) não aprova:
Ela (Taeko), que zombava da casa central, também tinha lá suas preocupações com a linhagem familiar e origem, por isso pensava no quanto aquela situação era ridícula: ela interessada em alguém como Itakura. Seu autocontrole não tinha deixado de existir, mas o desejo de quebrar antigas tradições fora mais forte (TANIZAKI, 2005, p. 386).
Como resultado do patriarcado, a definição de masculinidade ficou fundamentalmente vinculada à capacidade produtiva do homem no trabalho, já à da mulher são reservadasestritamente a maternidade e as obrigações domésticas. Na tradição nipônica cabe ao homem mais velho da família a responsabilidade dos arranjos matrimoniais dos entes familiares, além do cuidado em manter a linhagem das classes sociais. No entanto, observe-se no excerto que os modelos tradicionais entram em choque com o cotidiano da vida da personagem Taeko, que busca fazer suas próprias escolhas. Veja-se o fragmento:
Os anos se passaram sem que a vida de Yukiko sofresse maiores mudanças, mas, para Taeko, os acontecimentos acabavam evoluindo de maneira inesperada [...] Desde os tempos de colegial, Taeko vivia a recortar retalhos em suas horas livres, pois tinha muito jeito para confeccionar bonecos. Aos poucos, aprimorou a técnica e suas criações ganharam espaço nas prateleiras das lojas de departamentos [...] Àquela altura, porém, achou que precisava de ateliê próprio e alugou uma sala num prédio de apartamentos [...] Tatsuo não aprovou a lenta transformação de Taeko em eficiente mulher de negócios e menos ainda sua decisão de alugar um apartamento (TANIZAKI, 2005, p. 25).
Em As Irmãs Makioka, a personagem Taeko representa o contraste entre os conceitos e preceitos nos quais ambos os gêneros (masculino/ feminino) pautam suas vidas afetivas, sociais e morais, pois a experiência de dominação do homem sobre a mulher ao longo dos séculos fez com que ambos se tornassem vítimas do sistema que até aqui os guiou e os engessou.
No Oriente, a submissão de um gênero sobre o outro bloqueou trocas igualitárias e a perspectiva de um desenvolvimento mais criativo. No entanto, Tanizaki, como defensor da tradição e da cultura japonesa, ao criar a personagem Taeko como índice de ruptura com a tradição, consegue produzir o efeito contrário, ou seja, a valorização da tradição oriental. Essa característica na escritura de Tanizaki é mencionada pelo estudioso de literatura japonesa Shuichi Kato (1990, p.204- 205):
The major significance that The Makioka Sisters has in the history of the Japanese novel does not come from its defiance of tradition but from its superb realization of the possibilities of tradition. As a summary of Japanese aesthetics since the Kokinshu, with their concern with tradition matters, the life of the senses in the eternal present, refined sensibility, daily life as ceremony, the immediate and transient beauty of the seasons, the part as a delicately and perfectly realized entity without reference to an architectonically conceived whole, The Makioka Sisters is monumental.
É dessa forma que o autor se coloca contrário à influência da cultura ocidental, e nisso consiste sua originalidade, na medida em que, ao dispor a personagem Taeko como um ente ficcional marginalizado perante a sociedade japonesa, propositalmente Tanizaki aumenta as perdas e sofrimentos de Taeko por tentar romper com a cultura nipônica, impedindo uma fusão nas identidades culturais do Oriente e do Ocidente. Observe-se no fragmento abaixo a carta em que a figura patriarcal dos Makiokas, Tatsuo, esposo da irmã mais velha Tsuruko, solicita a submissão da personagem Taeko à tradição oriental ou sua expulsão da família:
Hoje, novamente escrevo-lhe sobre um assunto desagradável [...] Trata-se de Koisan[1], é claro. [...] Até então já tinha ouvido muitos boatos desagradáveis sobre Koisan, mas jamais imaginava que fosse algo tão amoral. [...] Preocupei-me muito que Koisan não se transformasse numa desajustada, mas todas as vezes que tentávamos interceder, você, Sachiko, sempre a protegia, não é mesmo?
[...] Sachiko, por favor, peço-lhe que, ao menos desta vez, não seja flexível com Koisan. Se ela insistir em não querer retornar a Tóquio, não a deixe ficar em sua casa. Está é a opinião de Tatsuo, com a qual estou de acordo. [...] É preciso que se defina ainda este mês e comunique-nos se vai mandá-la de volta a Tóquio ou decretar cortada a relação de Koisan com a família Makioka (TANIZAKI, 2005, p. 538- 539).
Nuança importante de ressaltar é que o patriarcado não sugere apenas uma forma de família baseada no parentesco masculino, mas sobretudo abarca toda uma estrutura política e social que emergiu de um poder paterno soberano. Tatsuo, como representante da figura paterna dos Makioka, surge como autoridade absoluta, chega ao direito de vida e de morte e obtém meios de transmitir rigorosamente aos seus descendentes suas tradições, seus bens e seu poder. É o que afirma Friedrich Engels (2002, p. 33):
O pai passou a ter o direito de vida e de morte sobre o filho, de castigá-lo à vontade, de mandá-lo flagelar, de condená-lo à prisão, podendo até mesmo excluí-lo da família.
É importante observar que, nessa obra de Tanizaki, a questão do patriarcado na cultura japonesa, defendida como tradição ao deparar com a modernidade sugerida pelo Ocidente, não busca fundir duas culturas, mas sim, comparar suas diferenças de valores sociais, morais e espirituais, a ponto de sugerir a depreciação da cultura ocidental e a valorização da cultura oriental. Veja-se o fragmento da carta de um dos pretendentes a casar-se com Yukiko:
Vossa Senhoria diz que sua irmã é uma pessoa conservadora, mas isso é usar de modéstia. É uma preciosidade que ela mantenha essa pureza de menina, sem acostumar aos ares da modernidade, por mais idade que alcance. [...] Quero ainda registrar que fiquei muito comovido com a atitude amável a mim dispensada por sua família durante todo esse tempo. A atmosfera harmoniosa e animada de seu lar é de faze inveja a qualquer pessoa e creio ter sido por isso que se criou uma jóia como sua irmã (TANIZAKI, 2005, p.592- 593),
Os casamentos nas sociedades patriarcalizadas podem ser entendidos como relações familiares perigosas, pois ocorriam com a posse da mulher pelo homem e a sua total submissão a ele. Longe das concepções modernas, o casamento não era constituído por um vínculo de afeto, tendo como única finalidade a procriação de filhos e o asseguramento de questões políticas e econômicas.
Nesse sentido, a literatura comparada abre o diálogo transcultural, um espaço para o confronto entre tradição e modernidade entre Oriente e Ocidente. É o que revela Eduardo Coutinho na citação de Evelina Hoisel , na obra Culturas, Contextos e discursos (1999, p. 47):
A literatura comparada é hoje uma seara ampla e movediça, com inúmeras possibilidades de exploração, que deixou de lado o anseio totalizador de suas fases de formação e consolidação, e se ergue como diálogo transcultural calcado na aceitação das diferenças culturais.
É possível perceber os elementos transculturais que percorrem toda a narrativa de As Irmãs Makioka, em que é visível o confronto entre tradição e modernidade no âmbito Oriente e Ocidente. Tais relações constroem uma tensão narrativa presente na figura das personagens Taeko e Yukiko, que representam a comparação Oriente/ Ocidente, como demonstra o esquema:
Com base em tais fundamentos, é possível postular a idéia de relações familiares perigosas, na medida em que tanto As irmãs Makioka quanto Lavoura arcaica recorrem ao processo transcultural Oriente/ Ocidente como método de construção de suas narrativas, ou seja, a primeira estabelece o confronto entre duas culturas (japonesa e ocidental), para discutir o contraste tradição/ modernidade. Já na segunda, verificam-se os encontros entre Ocidente/ Oriente, nos quais a ruptura com a tradição é concretizada. Observem-se a seguir tais relações na narrativa nassariana.
Utilizando-se de uma linguagem verbal em que transparece o diálogo transcultural no texto ficcional, Raduan Nassar soube trazer à tona em Lavoura arcaica (1975) uma versão moderna da parábola do filho pródigo, promovendo o confronto tradição/ modernidade por meio das relações familiares.
No início do romance, dois irmãos se encontram num quarto de pensão; o mais velho vem buscar o mais novo, para levá-lo de volta ao lar. Através das lembranças do filho pródigo, André, são conhecodas as causas da partida: a impaciência havia chegado à um grau insuportável no ambiente familiar, entre o jugo e a lei paterna e o sufocamento da ternura materna. Porém, no retorno do filho André para casa, houve uma relação incestuosa com uma das irmãs, Ana. Ao tomar conhecimento do fato, o pai mata Ana, diante do que os irmãos se revoltam e, por sua vez, assassinam o pai.
Ao mesmo tempo, a narrativa introduz o universo primitivo e arcaico, que, através do próprio título do romance, sugere o trabalho (labor/ lavoura) como algo que é primievo, primeiro.
Em Lavoura arcaica, observa-se o confronto entre Oriente e Ocidente, uma vez que a personagem André busca romper com a tradição religiosa imposta pelo pai de origem libanesa.
É lícito dizer que as ações e reflexões de André se situam no mesmo campo temático e temporal que as pregações da personagem pai, mas apresentam a contestação e a subversão d propostas deste. O pai reunia os filhos adolescentes para lhes ministrar conselhos de prudência e ponderação:
Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas: “o tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento (NASSAR, 2005, p. 51).
Posto dessa forma, nota-se a força do patriarcado, pois não há uma convivência entre pai e filho, mas a distância necessária entre o soberano e os seus súditos. Dotado de tal autoridade, o pai encarrega-se de certa parte da educação que se transmitia aos filhos. No entanto, a tradição oriental religiosa imposta pela personagem pai é confrontada com a postura ocidental e moderna da personagem André. A esse respeito comenta Edward W. Said (1990, p. 17):
A relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de dominação, de graus variados de uma complexa hegemonia.
Assim se processa toda a narrativa, cujos diálogos se entrelaçam, ou melhor, tencionam-se entre si. É na relação família/ religião que se verifica o confronto tradição x modernidade, patriarca x subalterno, Ocidente x Oriente. Entende-se, nesse caso, o embate da questão cultural, ou seja, a idéia tradicional de convivência religiosa imposta à família é vista como modelo a ser transportado e seguido para toda família ocidental. Veja-se o excerto:
O amor, a união e o trabalho de todos nós juntos ao pai era uma mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários [...] não esquecer também as peculiaridades afetivas e espirituais que nos uniam, não nos deixando sucumbir às tentações, pondo de guarda contra a queda [...] venerando os nossos laços de sangue, não nos afastando da nossa porta, respondendo ao pai quando ele perguntasse [...] participando do trabalho da família [...] pois se condenava a um fardo terrível aquele que se subtraísse às exigências sagradas do dever (NASSAR, 2005, P. 20- 21).
Sentimentos como honra, vergonha e orgulho – características da tradição oriental ressurgem no espaço de memórias da personagem André, uma vez que romper com a família é romper com as “exigências sagradas do dever”. É pelo viés do sagrado e do profano que a narrativa nassariana constrói a relação familiar patriarcal. Além disso, expõe o confronto entre Oriente/ Ocidente ao introduzir o vocábulo oriental “Maktub” na fala de André. Observe-se o fragmento:
[...] o avô, ao contrário dos discernimentos promíscuos do pai – em que apareciam enxertos de várias geografias, respondia sempre com um arroto tosco que valia por todas as ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do pai: “Maktub” (NASSAR, 2005, p. 89).
Indubitavelmente, a religião passou a ditar uma posição particular ao sistema patriarcal, sendo-lhe atribuída a questão moral. No fragmento de Lavoura arcaica, o confronto tradição/ modernidade ocorre entre o sermão de “discernimentos promíscuos” da personagem pai e os ensinamentos do avó resumidos em uma única palavra “Maktub”. Mesmo a figura da personagem pai como representante de uma tradição oriental já sofreu certa modernização aos olhos do personagem André. O patriarcado possibilitou a aplicação de severas leis morais, estabelecendo futuramente o confronto entre tradição e modernidade, haja vista o patriarcado ter permanecido na evolução das sociedades. É o que evidênciam as relações transculturais Oriente e Ocidente, que se apresentam como multiplicidade de discursos e de vozes. Nesse sentido afirma Reinaldo Marques em Culturas, contextos e discursos (1999, p. 198):
[...] a multiplicidades de discursos, vozes e objetos que coabitam e interagem no espaço do comparativismo literário e, de outro, denunciam o esforço para construir e reelaborar categorias e conceitos [...] que dêem conta de articular o múltiplo e o fragmentado, evitando-se incorrer em operações totalizantes ou reducionais.
Em Lavoura arcaica a tradição rende-se a não-tradição, na medida em que a personagem André comete um incesto com a própria irmã, transgredindo não apenas a educação patriarcal, como também rompendo com os valores religiosos impostos pelo pai:
Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num momento alto expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela minha loucura [...] eu, o epilético, o possuído, o tomado [...] misturando no caldo desse fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de Ana (NASSAR, 2005, p. 107- 110)
Deduz-se assim que as relações familiares perigosas na obra de Nassar são evidenciadas pelas ruptura tradição/ modernidade, Oriente/ Ocidente, conforme a personagem André rompe com a tradição religiosa dos sermões da personagem pai, cuja influência oriental remete à conservação da estrutura familiar patriarcal. A personagem André é a grande contestadora dos valores patriarcais ao assumir a libido pela irmã Ana e ao buscar o diálogo distante dos valores religiosos e patriarcais com o pai, despreza o arcaico em prol do moderno.Tais elementos, fundidos na imagem de André e na personagem pai, convertem ao cenário transcultural, no qual não ocorre uma fusão de culturas, mas sim o confronto entre Oriente e Ocidente.
ÚLTIMAS PALAVRAS: ORIENTE/ OCIDENTE E RELAÇÕES FAMILIARES
De tudo exposto, fica evidente que a atuação das culturas oriental e ocidental em um texto literário se manifesta de diversas formas. Contudo, nos estudos comparados das duas obras aqui analisada: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar e As Irmãs Makioka, de Jun`Ichiro Tanizaki, o confronto tradição e modernidade ocorre por intermédio das relações familiares, cuja influência se vincula ao patriarcalismo, modelo que apresenta como característica básica o grande poder do patriarca sobre os demais membros da família.
Em As Irmãs Makioka, as relações familiares operam na superfície social, moral e econômica. O contraste entre as irmãs Taeko e Yukiko funciona para Tanizaki como forma de defesa da cultura e tradição nipônica, pois ao criar a personagem Taeko, com tendências culturais ocidentais, faz desta elemento de ruptura com a tradição oriental. Não à toa a personagem Yukiko é apresentada como imagem positiva de submissão à tradição patriarcal. Tal confronto impede a fusão cultural oriental e ocidental, à medida que promove a valorização da cultura oriental e a desvalorização da cultura ocidental.
Já, em Lavoura arcaica, é na relação família/ religião que se verificam as tensões tradição/ modernidade, Oriente/ Ocidente, na qual a idéia de convivência religiosa na família patriarcal é um modelo a ser seguido por todas as gerações. No entanto, o modelo tradicional de família/ religião do Oriente é destruído pela postura ocidental e moderna da personagem André.
De tudo exposto, fica evidente que uma das maneiras de alcançar essa construção nas duas narrativas foi a elaboração de um projeto autoral que confronta as relações familiares Oriente/ Ocidente, tradição/ modernidade.
Enfim, as relações familiares perigosas em Lavoura arcaica e As Irmãs Makioka são o diferencial – Raduan Nassar e Jun’Ichiro Tanizaki como artesões engenhosos da palavra constroem a narrativa que mostra a mediação Oriente e Ocidente a todo o momento, e qual é o limite e a fronteira entre tradição e modernidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHAL, Tânia Franco. Culturas, Contextos e Discursos: limiares críticos no comparativismo. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1999.
________. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro Editora, 2002.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala : formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo : Global, 2005.
KATO, Shuichi. A history of japanese literature: the modern years. Trad: Don Sanderson.London: Kodansha International, 1990.
PEREIRA, Maria Antonieta. Literatura e Estudos Culturais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2000.
SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosa Bueno. São Paulo: Companhia Das Letras, 1990.
[1] Assim eram denominadas as caçulas das famílias tradicionais de Osaka. (N.T.)