Regime Disciplinar Diferenciado
Por André Luiz Alves | 18/01/2010 | Direito
A IMPRESCINDIBILIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO NO BRASIL
SUMÁRIO: 1. Considerações Iniciais. 2. A História do Regime Disciplinar Diferenciado no Brasil. 3. Conceito e Aplicação do Regime Disciplinar Diferenciado. 4. A Constitucionalidade do Regime Disciplinar Diferenciado. 5. A necessidade da existência do Regime Disciplinar Diferenciado. 6. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO.
Não é na muralha do presídio que acaba o sistema penitenciário; a fronteira visível e palpável, símbolo da repressão e da autoridade do Estado, perdeu a condição de limite dos indivíduos que ali estão confinados. Durante muito tempo isto ocorreu de fato; porém, devido a vários fatores internos e externos, a afirmação deixou de existir.
O regime disciplinar diferenciado, primordialmente, foi criado com a intenção de separar e isolar os líderes de organizações criminosas e presos de altíssima periculosidade dos demais presos, e dificultar seu contato com criminosos soltos. Mesmo presos, os líderes de facções criminosas continuavam a comandar ações delituosas dos lados externo e interno dos estabelecimentos prisionais.
A internação do preso “diferenciado” no regime vai ao encontro do mandamento Constitucional da individualização da pena, conforme preceitua o artigo XLVI da Magna Carta.
Não se combate o crime organizado, dentro ou fora dos presídios, com o mesmo tratamento destinado ao delinquente comum. Apesar do RDD, assim como a pena privativa de liberdade, serem denominados “mal necessário”, não se tratam de penas cruéis.[1]
2. A HISTÓRIA DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO NO BRASIL.
No Brasil império, havia o chamado “cárcere duro” para os criminosos que desobedecessem ao imperador.
No Estado de São Paulo, no dia 18 de fevereiro de 2001, uma onda de rebeliões toma conta de 29 unidades prisionais distribuídas por todo o Estado. A maior rebelião já registrada na história brasileira foi orquestrada por uma facção criminosa, denominada Primeiro Comando da Capital (PCC)[2], e foi motivada pela transferência de lideranças para a Casa de Custódia de Taubaté, considerada uma prisão segurança máxima. Visando coibir o ato praticado e minimizar a possibilidade da ocorrência de outros, a Secretaria de Administração Penitenciária paulista edita, em 04 de maio de 2001, a resolução SAP n.º 26 que regulamenta inclusão, permanência e exclusão de presos no Regime Disciplinar Diferenciado, destinado aos líderes e integrantes de facções criminosas ou àqueles cujo comportamento exigia tratamento específico. O objetivo da Secretaria era retomar o controle disciplinar no interior do cárcere, inicialmente em cinco unidades prisionais: Casa de Custódia de Taubaté, Penitenciárias I e II de Presidente Venceslau, Penitenciária de Iaras e Penitenciária I de Avaré. O regime consistia no isolamento do detento por 180 dias na primeira inclusão e por 360 dias nas demais. O preso tinha o banho de sol limitado no mínimo de 1 hora diária, além de 2 horas semanais de visitação, conforme o artigo 5º, incisos II e VI da Resolução 26/2001.
Caso semelhante ocorreu no Estado do Rio de Janeiro no ano de 2002, quando o presídio de segurança máxima Bangu I foi palco de uma disputa entre as facções rivais. Além de várias mortes e destruições patrimoniais, os líderes das mencionadas facções comandaram várias ações criminosas por toda a cidade. Nove bairros foram atingidos, 800 mil passageiros ficaram sem ônibus e parte do comércio fechou as portas. Esses fatos trouxeram à tona o debate acerca do poder estatal de controlar ações criminosas comandadas de dentro do cárcere, pois, como observou Christiane Russomano Freire (2005, p. 150), o motim extrapolou “os muros das penitenciárias, externando seu controle de influência para o conjunto da sociedade”. Em contrapartida, a Secretaria de Administração Penitenciária instituiu o Regime Disciplinar Especial. De acordo com Astério Pereira dos Santos[3], secretário de Estado de Administração Penitenciária da época, o objetivo desse regime era:
“Afastar líderes violentos e sanguinários, de exacerbada periculosidade, do convívio com os demais presos, que eles subjugam e usam como massa de manobra em suas rebeldias, obrigando-os a fazer rebeliões, motins e, até mesmo, greve de fome (...). Afastar essa liderança de opressores dos demais presos, quase sempre criminosos ocasionais e eventuais, de escassa ou nenhuma periculosidade é, sobretudo, um ato de humanidade”.
O relatório do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária sintetizava que isolar os presos que lideravam tais facções parecia a solução mais natural e plausível, de modo a interromper a cadeia de comando e desarticular o movimento.
O então presidente Fernando Henrique Cardoso edita a Medida Provisória 28/2002, que pretendia inserir o regime disciplinar diferenciado na Lei de Execução Penal, o que, por violar o artigo 62, §1º, I, “b” da Constituição Federal, foi rejeitado.
Utilizando-se da via convencional, o já referido presidente, na tentativa de universalizar o regime disciplinar diferenciado, envia ao Congresso Nacional o projeto de lei n.º 5.073 que alterava dispositivos da Lei de Execução Penal e do Código de Processo Penal para, entre outras mudanças, permitir que presos de alta periculosidade que cometessem falta grave cumprissem pena no regime diferenciado a ser aplicado pelo conselho disciplinar. Cumpre observar que a implementação do RDD ganhou ênfase com os assassinatos de dois juízes corregedores da Vara de Execuções: Antônio José Machado Dias, de Presidente Prudente e Alexandre Martins de Castro Filho, do Espírito Santo. No dia 1º de dezembro de 2003, foi aprovada a lei 10.792 que institui o Regime Disciplinar Diferenciado.
3. CONCEITO E APLICAÇÃO DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO.
O regime disciplinar diferenciado é uma forma de sanção disciplinar que consiste no recolhimento do preso em cela individual, pelo prazo máximo de 360 dias.[4] Nesse período, o detento tem direito a visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas e igual período diária de banho de sol. Diante dessas características, Mirabete (2004, p. 149) explica que:
O RDD não constitui um regime de cumprimento de pena em acréscimo aos regimes fechados, semiaberto e aberto, nem uma nova modalidade de prisão provisória, mas sim um novo regime de disciplina carcerária especial, caracterizado por maior grau de isolamento do preso e de restrições ao contato com o mundo exterior. (grifo nosso).
Em Presidente Bernardes, por exemplo, os presos submetidos ao RDD utilizam algemas nas movimentações internas e a única ocupação oferecida são livros de leitura e um didático, que podem ser requisitados semanalmente. Percebe-se, portanto, que as imposições decorrentes da submissão ao regime configuram uma restrição provisória ao exercício dos direitos do preso elencados no artigo 41 da Lei de Execução Penal.
No que tange à aplicação do RDD, o artigo 52, alterado pela Lei 10.792/03, estabelece que todos os presos maiores de dezoito anos, nacionais ou estrangeiros, que estejam cumprindo pena em regime provisório ou definitivo, excetuando-se os que estejam recolhidos em razão de medida de segurança, estão sujeitos a esse regime. Continua a lei dizendo, no mesmo artigo, que o RDD somente pode ser aplicado em três hipóteses:
a) quando o preso comete falta grave equivalente à pratica de um crime doloso que ocasiona subversão da ordem ou disciplina internas. É de notar que para a configuração dessa hipótese, são imprescindíveis dois requisitos concomitantes: a prática de fato previsto como crime doloso e a conturbação da ordem ou da disciplina interna do presídio. Dessa forma, esclarece Mirabete (2004, p. 150):
“para o fato que embora configure crime doloso não provoca a subversão da ordem e da disciplina, ou que é previsto como falta grave, mas não como crime doloso, ainda que ocasione essa mesma subversão, são aplicáveis as sanções previstas nos incisos III e IV do art. 53”.
b) quando o preso coloca em risco a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. Essa segunda hipótese é típica do preso que “dentro do presídio ou estabelecimento prisional comanda crimes do lado de fora do muro, colocando em risco a sociedade e a própria polícia”.
c) e no caso de recair, sobre o preso, fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilhas ou bandos. Vale observar que a simples condenação pelo crime previsto no artigo 288 não autoriza, automaticamente, a inclusão no RDD. Ou seja, a lei não erige como pressuposto dessa hipótese a condenação anterior pelo crime de quadrilha ou bando, sendo que a retirada do preso no regime comum somente ocorre quando a sua associação criminosa coloca em risco a segurança da sociedade ou do estabelecimento penal.
Mirabete (2004, p. 151) esclarece que as hipóteses descritas nas alíneas “b” e “c” evidenciam uma inclusão cautelar no preso no RDD, vez que elas têm como finalidade garantir as condições necessárias para que a pena privativa de liberdade ou a prisão provisória seja cumprida em condições que garantam a segurança do estabelecimento penal e a ordem pública, que continuaria ameaçada se, embora custodiado, permanecesse o preso em regime comum.
Por oportuno, salienta-se que o inciso I do artigo 52 da LEP prevê a renovação da sanção disciplinar em caso de cometimento de nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada. Assim, o RDD tem duração de um ano na primeira ocorrência. Já no caso de reincidência por falta grave, o limite temporal por chegar a 1/6 da pena corporal efetivamente aplicada.
Por fim, o artigo 52, §1º, ressalta que a aplicação do RDD depende de requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa, respeitado o contraditório entre Ministério Público e defesa. Posteriormente, cabe à autoridade judicial prolatar sua decisão fundamentada, dentro do prazo máximo de 15 dias. Interessante observador que o artigo 60 da LEP permite a inclusão preventiva no RDD por dez dias e que tal prazo será, posteriormente, detraído do tempo a ser cumprido por decisão judicial. Essa inclusão preventiva, como ressalta a lei, somente é cabível quando o interesse da disciplina e da averiguação do fato assim a exigirem, podendo ser decretada pela própria autoridade administrativa enquanto aguarda decisão judicial. Todavia, opinião diversa é a do vice-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e membro titular do Conselho Penitenciário do estado do Paraná, Mauricio Kuehne[5], para quem o isolamento preventivo somente pode ser feito mediante autorização judicial.
4. A CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO.
Os contrários ao regime afirmam que o RDD é uma forma “desumana de apartação da pessoa preso rotulada como ameaça à segurança nacional” (CARVALHO e WUNDERLICH, 2004, p. 6) ou um método de aniquilamento de personalidades, o que viola a dignidade humana e a integridade física do preso, conforme sintetiza Rômulo Moreira (2006):
“Cotejando-se, portanto, o texto legal e a Constituição Federal, concluímos com absoluta tranqüilidade ser tais dispositivos flagrantemente inconstitucionais, pois no Brasil não poderão ser instituídas penas cruéis (art. 5º., XLVII, “e”, CF/88), assegurando-se aos presos (sem qualquer distinção, frise-se) o respeito à integridade física e moral (art. 5º. XLIX) e garantindo-se ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano e degradante (art. 5º, III).
Acrescentam que as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros da Organização das Nações Unidas, para as quais a detenção em cela escura, a redução de alimentação, bem como as penas de isolamento configuram a aplicação de uma sanção desumana, cruel e degradante (artigo 31).
Além do que, qualquer tipo de privação da liberdade, em cela individual, durante 360 dias ou por até 1/6 da pena ofende garantias constitucionais.
A Ordem dos Advogados do Brasil, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade com Pedido Cautelar, depende de decisão, solicita o reconhecimento da inconstitucionalidade do regime, com os seguintes argumentos:
I) O regime disciplinar diferenciado é denominado de sanção. Contudo, a natureza dessa sanção trata-se de uma sobre-condenação criminal, com desrespeito às disposições constitucionais de garantia penal.
II) A própria instituição do RDD, nos termos efetuados pela Lei n.º 10.792/2003 já é, em si, inconstitucional, por violar as garantias constitucionais fundamentais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
III) Os termos legalmente instituídos de aplicação do RDD que incluem isolamento prolongado do preso, incomunicabilidade, severa restrição no recebimento de visitas, entre outras medidas, aviltam o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), agredindo também as garantias fundamentais da vedação à tortura e ao tratamento desumano ou degradante (Art. 5.º, III) e de vedação de penas cruéis (Art. 5º, XLVII, “e”).
IV) A Lei n.º 10.792/2003, no que modificou a Lei n.º 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) para instituir o Regime Disciplinar Diferenciado, violou também a exigência constitucional do inciso XLIII do Art. 5.º da Constituição (“a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”). Esse dispositivo prevê a única forma de diferenciação constitucionalmente válida do regime prisional, diferenciação que deve ocorrer em benefício do preso e da maioria da população carcerária (em consequência, da sociedade), e não em forma de castigo.
A jurisprudência encontra-se dividida; porém, a maioria dos julgados tem admitido a constitucionalidade do regime disciplinar diferenciado, posição a qual nos filiamos.
No entendimento de Guilherme de Souza Nucci, “não se combate o crime organizado, dentro ou fora dos presídios, com o mesmo tratamento destinado ao delinquente comum.”[6]
Nucci conclui:
“Se todos os dispositivos do Código Penal e da Lei de Execução Penal fossem fielmente cumpridos, há muitos anos, pelo Poder Executivo, encarregado de construir, sustentar e administrar estabelecimentos penais, certamente o crime não estaria, hoje, organizado de modo que não haveria necessidade de regimes como o estabelecido pelo art. 52 da Lei de Execução Penal. A realidade distanciou-se da lei, dando margem à estruturação do crime, em todos os níveis. Mas, pior, organizou-se a marginalidade dentro do cárcere, o que é situação inconcebível, mormente se pensarmos que o preso deve estar, no regime fechado, à noite, isolado em sua cela, bem como, durante o dia, trabalhando ou desenvolvendo atividade de lazer ou aprendizado. Diante da realizada, é o denominado mal necessário, mas não se trata de uma pena cruel. Proclamar a inconstitucionalidade do regime, fechando os olhos aos imundos cárceres aos quais estão lançados muitos presos no Brasil, é com a devida vênia, uma imensa contradição. Constituição situação muito pior ser inserido em uma cela coletiva repleta de condenados perigosos, com penas elevadas, muitos deles misturados aos presos provisórios, sem qualquer regramento e completamente insalubre, do que ser colocado em cela individual, longe da violência de qualquer espécie, com mais higiene e asseio, além de não se submeter a nenhum tipo de assédio de outros criminosos”.
Segundo os princípios constitucionais de igualdade (art. 5.º, caput, CF) e da individualização (art. 5.º, inciso XLVI, CF), indivíduos diferentes devem ser tratados na medida de suas diferenças.[7]
Na posição de Gilmar Bortolotto:[8]
“Como corolário da individualização é que existem os regimes para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Ao deixar de classificar os condenados, o Estado torna impossível o desenvolvimento de um tratamento penal adequado”.
“Os denominados regimes disciplinares diferenciados na devem ser entendidos como uma forma de sancionamento, mas sim como um conjunto de regras aplicáveis a indivíduos cuja conduta criminosa contumaz e reiterada, além da liderança exercida após o encarceramento, exigem tratamento penal diferente de um maior controle por parte do Estado. Não podem suprimir direitos, o que os tornaria inconstitucionais ou ilegais, mas podem disciplinar o exercício dos direitos previstos, tornando-o compatível com o perigo social representado pelo preso que a ele deve submeter-se. Sua implementação supre, em parte, omissão histórica do Estado do atendimento aos princípios da igualdade e individualização na execução da pena privativa de liberdade”.
Ainda segundo o pensamento sustentado por Bortolotto, a base constitucional para o estabelecimento de tratamento diferenciado relativamente e apenados com características pessoais que identifiquem alto potencial ofensivo encontra-se no artigo 5.º, caput, e inciso XLVI, CF, com o enunciado:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLVI – A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes”.
Assim, individualização das penas é reflexo do princípio da igualdade, já que considera que indivíduos diferentes devem ser tratados na medida de suas diferenças.
Os princípios de cumprimento da pena estabelecem regramento próprio e não pode deixar de considerar a individualização prevista na Constituição Federal, que exige tratamento distinto para indivíduos que apresentam características diferentes.
A não-observância deste preceito tornaria ineficaz a pena, já que insuficiente para prevenir e reprimir o delito.
O RDD não fere a Lei de Execução Penal, ou o princípio de humanidade das penas. O artigo 41 da LEP, em seus incisos I a XV, estabelece quais são os direitos do preso, que devem ser interpretados de maneira absoluta. Se analisarmos as regras impostas no Regime Disciplinar Diferenciado, não há nada que contrarie o estipulado pela LEP.[9]
As benevolências concedidas ao longo do tempo pelo Estado, como visita íntima, uso de televisão, entrega de alimento por parte de familiares, dentre outras, que não são admitidas no Regime Disciplinar Diferenciado, não fazem parte da LEP. São frutos de um prejuízo causado pelo descaso do Estado com o sistema prisional, que perdurou anos e permitiu a formação e a organização de grupos criminosos.
Não vislumbramos qualquer desrespeito aos princípios constitucionais do contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal. Para que a sanção disciplinar de internação no RDD seja aplicada, o caminho percorrido demonstra claramente a obediência aos referidos princípios, o que se verifica no artigo 54 da Lei de Execução Penal.
“Art. 54. As sanções dos incisos I e IV do art. 53 serão aplicadas por ato motivado do diretor do estabelecimento e a do inciso V, por prévio e fundamentado despacho do juiz competente.
§1º. A autorização para a inclusão do preso em regime disciplinar dependerá de requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa.
§2º. A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime disciplinar será precedida de manifestação do Ministério Público e da defesa e prolatada no prazo máximo de 15 (quinze) dias.”
5. A NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO.
Atualmente, o sistema carcerário brasileiro possui um déficit de 170 mil vagas. Para resolver esse problema, é necessário um investimento de R$ 3 bilhões, de acordo com o juiz auxiliar do Conselho Nacional de Justiça Erivaldo Ribeiro. Durante curso na Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, entretanto, ele revelou que o número pode ser bem maior, pois os mutirões têm encontrado, em alguns estados, quantidade de presos bem superiores às informadas pelas estatísticas do Departamento Penitenciário (Depen).[10]
A omissão do Estado propiciou a falência das técnicas penitenciárias aplicadas no Brasil e, consequentemente, a perda do controle sobre a população carcerária. Durante anos, o Estado brasileiro deixou de exercer o controle sobre os sentenciados. Tomemos como exemplo a já extinta Casa de Detenção, estabelecimento criado para abrigar 3.250 presos. Durante muitos anos, a Casa de Detenção de São Paulo chegou a hospedar mais de 8 mil homens, recorde mundial de detentos em um único estabelecimento.[11]
Por óbvio, essa omissão propiciou o crescimento e a organização de facções criminosas. O que também foi agravado pelos espancamentos e maus tratos praticados contra os detentos.
Nesse sentido, manuscrito apreendido por Promotores de Justiça do GAECO e Policiais Civis do Departamento de Combate ao Crime Organizado (DEIC) de São Paulo, em cumprimento de mandado de busca e apreensão em residência de um dos líderes da facção criminosa PCC,[12] não deixa dúvida quanto aos sentimentos que unem estes grupos criminosos:
“Não somos uma organização criminosa, muito menos uma facção, não somos uma utopia e sim uma transformação e uma filosofia: Paz, Justiça e Liberdade. Fazemos parte de um comportamento carcerário diferente, aonde um irmão jamais deixará outro irmão sobre o peso da mão de um opressor, somos um sonho de luta, somos uma esperança permanente de um sistema mais justo, mais igual, aonde o oprimido tenha pelo menos uma vida mais digna, mais humana. Nascemos em um momento de opressão em um campo de concentração, sobrevivemos através de uma união, a semente foi plantada no asfalto, no cimento, foi regada a sangue, a sofrimento, ela gerou vida, floresceu, e hoje se tornou o “braço forte” que luta a favor dos oprimidos que são massacrados, por um sistema covarde, capitalista e corrupto.”
“Se iremos ganhar essa luta não sabemos, creio que não, mas iremos dar muito trabalho, pois estamos preparados para morrer e renascer na nossa própria esperança de que nosso grito de guerra irá se espalhar para todo o país.”
“Se tiver que amar, amaremos, se tiver que matar, mataremos”.
Fica claro que o discurso utilizado por estes grupos criminosos se enquadra perfeitamente nos anseios de uma população carcerária abandonada pelo Estado, e a proliferação de suas idéias foi uma questão de tempo.
A utilização de aparelhos celulares nos presídios foi o elemento que faltava na evolução das atividades das facções criminosas, dentro e fora dos presídios. A solução encontrada pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo para retomar as rédeas de um sistema desgovernado foi à criação do regime disciplinar diferenciado, Resolução nº. 26 de 2001.
Na prática, o RDD foi uma vitória do Estado na luta contra as facções criminosas. Este sucesso veia a se completar com a inauguração, em 2 de fevereiro de 2002, do Centro de Readaptação de Presidente Bernardes em São Paulo, tendo sido o primeiro presídio construído exclusivamente para o novo regime.
O sucesso deste modelo prisional pode ser aferido estatisticamente. Durante os mais de sete anos de funcionamento da prisão, nenhuma fuga foi registrada. Não há qualquer registro de rebeliões ou mortes provocadas pelos detentos. Também não há registro de espancamentos de presos ou maus tratos por parte da Administração.
O efeito prático do isolamento dos líderes das facções criminosas propiciado pelo Regime Disciplinar Diferenciado foi devastador para a criminalidade organizada. Com a falta de contato com os líderes, importantes integrantes, alguns deles fundadores destas facções, foram destituídos de seus comandos, causando a desestruturação destes grupos criminosos.
A própria massa carcerária, que na sua esmagadora maioria quer somente “cumprir a sua reprimenda”, é favorecida com o isolamento desses criminosos. Presos e seus familiares, diunturnamente, sofrem com a instauração destas facções nos presídios e suas extensões nas cidades.
Em visita ao Centro de Readaptação de Presidente Bernardes, constamos a eficiência do regime. A limpeza do local é exemplar, o que, juntamente com os bons atendimentos prestados por médicos, dentistas, psicólogos, assistentes sociais, etc., propiciam um ambiente oposto ao que ocorre com a grande maioria dos presídios brasileiros.
Durante os períodos do “banho de sol”, os presos ficam em pequenos grupos, e não sozinhos. As celas contam com ventilações e é bem iluminada. O sistema prisional paulista conta com cerca de 150.000 (cento e cinqüenta mil) presos e, recolhido na unidade, apenas 48 (quarenta e oito), quando a capacidade é para 140 (cento e quarenta), o que demonstra o caráter excepcional da aplicação do regime.
Em um depoimento obtido pelo “Fantástico”, da TV Globo, levado ao ar no dia 09/11/2003, Beira-Mar revela como é a vida sob o RDD de Presidente Bernardes, e não deixa dúvidas sobre a eficácia do regime:
“O serviço que é feito aqui, nuca vi em outra cadeia. Assistência psicológica, social, tratamento dos funcionários é perfeita. Quanto a isso não tem o que reclamar, mas a situação humana que a gente fica é uma coisa absurda, completamente absurda”.
“Aqui o lugar é horrível, é horrível. É o pior lugar que eu já tive na minha vida. Eu estou bem fisicamente. Psicologicamente é que eu estou um bagaço. Esta é que é a verdade”.
“Se percebe que existe uma coisa maior que o poder do criminoso que ele tem. Isso gera uma depressão muito grande, um impacto psicológico muito grande. E hoje, em razão disso, eles contam com a assistência psicológica”.
“Toda semana eu estou saindo uma hora para conversar com a psicóloga. Assistente social tem me dado uma assistência aí com um remédio, mas eu não quero me viciar. Mas está complicado”.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
O sistema prisional brasileiro se tornou fator permanente de tensão social.
Para a sociologia, a penitenciária é descrita como um sistema social em operação. Não é uma miniatura da sociedade livre, mas um sistema específico cuja característica peculiar (o poder) autoriza a qualificá-lo como um sistema de poder, a princípio exercido e gerido pelo Estado. Porém, as estruturações internas das relações sociais entre os presos se apresentam como altamente complexas e diversificadas. Tais relações resultam em um sistema que possui estabilidade e equilíbrio.[13]
A sociedade dos presos é profundamente afetada pela realidade externa, e tal influência cresce na medida em que o crime organizado se fortalece. No entanto, o crime organizado, que atua externamente ao presídio, acaba por fornecer uma finalidade para a organização social na cadeia, um objetivo além da sobrevivência individual e do bem estar imediato.[14]
O regime disciplinar diferenciado visa separar e isolar os líderes de organizações criminosas e presos de altíssima periculosidade dos demais presos, e dificultar seu contato com criminosos soltos. Isso porque, mesmo presos, os líderes de facções criminosas continuavam a comandar ações delituosas dos lados externo e interno dos estabelecimentos prisionais.
O RDD não visa acabar com a ação do crime organizado no interior da prisão e desarticular a ação do crime em ações externas à unidade prisional. Entretanto, não se pode desprezar o impacto provocado pelo regime no combate ao crime organizado, pois se trata de uma das mais poderosas armas do estado para desarticular as facções existentes.
Em ação do crime organizado no estado no estado do Rio de Janeiro, no sábado dia 17/10/2009, cinco ônibus foram queimados, um helicóptero da polícia foi derrubado ficando totalmente destruído, policiais e cidadãos inocentes foram feridos e outros mortos, além do caos que se instaurou. O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, comentou: “o estado paralelo do crime não é obra de ficção. Ele humilha, mata, e explode os alicerces da República. Até quando? E segundo a Polícia Civil, a ordem para os ataques a rivais no Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, partiu de dentro de um presídio.”[15]
Em resumo, o regime disciplinar diferenciado é constitucional, legítimo e eficaz no restabelecimento da ordem nas unidades prisionais e no combate ao crime organizado.
7. BIBLIOGRAFIA
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed. rev. at. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. 1. ed. 2. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008.
THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. Rio de Janeiro. Forense, 1980.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal, 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
[1] Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed. rev. at. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 1022.
[2] A facção criminosa denominada Primeiro Comando da Capital (PCC) nasceu na Casa de Custódia e Tratamento “Dr. Arnaldo Amado Ferreira” de Taubaté, em agosto de 1993. Originalmente, o Primeiro Comando da Capital era o nome de um time de futebol que disputava o campeonato interno do presídio de Taubaté, na época estabelecimento apelidado pelos detentos como “piranhão” ou “masmorra”, por ser considerado o mais severo do sistema. Os detentos da Casa de Custódia tomavam banho de sol apenas uma hora por dia, ao lado de um pequeno grupo de encarcerados, no máximo dez. Todos permaneciam em celas individuais, sem direito a visita íntima. PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. 1. ed. 2. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. p. 73.
[3] <http/www.mj.gov.br/Depen/publicações/astero_santos.pdf.> Acesso em: 14 janeiro de 2007.
[4] Esse prazo é de natureza penal, ou seja, segue a regra do artigo 10 do Código Penal, onde se inclui no cômputo do prazo o dia do começo, excluindo-se o dia final.
[5] <http://www.internext.com.br/valois/vec/art015.htm.> Acesso em: 17 outubro de 2009.
[6] Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed. rev. at. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 1022.
[7] PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. 1. ed. 2. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. p. 66.
[8] BORTOLOTTO, Gilmar. Regimes diferenciados, igualdade e individualização. Disponível em: www..mj.gov.br/depen. Acesso em: 24 mar. 2006.
[9] PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. 1. ed. 2. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. p. 68.
[10] <http/www.conjur.com.br/2009-set-16/deficit-sistema-carcerario-brasileiro.>Acesso em: 19 outubro de 2009.
[11] PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. 1. ed. 2. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. p. 60.
[12] CHRISTINO, Márcio Sérgio. Sistema penitenciário e o RDD. Disponível em: mj.gov.br/depen. Acesso em: 4 março 2006.
[13] THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. Rio de Janeiro, 1980, pg. 62.
[14] CLEMMER, Donald. The prison community. New Yourk: Rinehart 1958, pg. 297-298.
[15] <http://g1.globo.com/Noticias/Rio.html.> Acesso em: 17 outubro 2009.