REFÚGIO DOS AUSENTES

Por Paulo Valença | 04/01/2010 | Contos

 

1

O Chefe da produção, Seu Gilberto, atrás do birô fitando o encarregado da Clicheria, diz, sério, o rosto pálido, o olhar tristonho:

- Pedro estamos para fechar.

O funcionário nada responde, esperando... O superior continua falando:

- A fábrica está numa situação nunca vista! Mas, sabe o que é isso? Má administração. A Indústria  cresceu muito e com essa diretoria que só pensa em gastar, esnobar... O resultado é o que a gente percebe: os pedidos caem, os clientes se afastam. Os fornecedores reclamam do atraso do pagamento. Nossos salários sem reajuste... Sei não, sei não.

Silencia. O rosto mais pálido, a testa porejando pelo suor nervoso. A tristeza maior nos olhos grandes, castanhos, enquanto imitando-o, Pedro permanece calado. Entregues a realidade imprevisível que os ameaça com horas angustiantes, dias...

- Bom, Pedro, você pode voltar pra o seu setor. Afinal, ainda estamos trabalhando, temos de cumprir com nossas obrigações. E vamos rezar para que haja um milagre, quando então tudo mudará. Pode ir.

- Com licença.

Aquiescendo em gesto de cabeça, Seu Gilberto segue com atenção a figura baixa, gorda se erguer  da cadeira alta e em passos lentos cruzar a sala, abrir a porta e passar. A porta é fechada por fora e ele fica  ouvindo a zoada do ar-condicionado. Precisa mandar limpá-lo, este barulhinho não é normal.

Suspira como em desabafo e quisesse expulsar as reflexões. A indústria está “ameaçada”...  Os próximos dias revelarão a verdadeira situação da Empresa, contudo, pode ocorrer uma reviravolta, um empréstimo que a Empresa contraia e salve tudo. Sim, pode suceder um milagre.

Sorri, zombando-se: desde quando acredita em milagres? É um sujeito calejado pela vida, tem a experiência amarga do quanto é difícil a luta pela sobrevivência. O passado lhe ensinou, educou-o com os próprios exemplos. Bom... A luta continua apesar de tudo e, resoluto, retira o fone do gancho e disca, reentregando-se à função administrativa:

- Ângela dê um pulinho aqui. Tudo bem, espero.

Repõe o fone e arruma os papéis esparsos sobre o birô, tentando se ocupar, enganar o próprio espírito.

Sem tardar, ouve as pancadinhas na porta, anunciando a entrada de alguém.

A porta se abre e a figura morena, esguia, graciosa de Ângela surge.

- Bom dia.

- Bom dia, Ângela.

A moça passa, fecha a porta e em passos rápidos achega-se à cadeira a frente do birô e senta-se,  cruzando as pernas longas, bem-feitas. E, sorrindo, espera.

Então Seu Gilberto:

- Como é, tudo bem com você?

Mantendo o sorriso de covinhas no rosto bonito, ela responde:

- Tudo “certinho”.

- Ótimo ótimo.

Com discrição então ele fixa as pernas expostas pela minissaia e, de repente excitado, pensa no programa amoroso que curtirá após o expediente com a secretária.

Inteligente, conhecendo-o, a jovem entende-o e, conservando o sorriso, aguarda...

- Que tal a gente dar umas voltinhas hoje?

- Pra mim, tudo bem.

- Ótimo ótimo.

Encaram-se, entendendo-se, na linguagem onde as palavras são desnecessárias.

Retirando o lenço do bolso da calça, Seu Gilberto passa-o na testa, e faces.

Ângela descansa a perna esquerda sobre a coxa direita, substituindo a posição anterior com a direita, no jogo sensual, provocativo  ao prazer que os aguarda.

Malicioso, o chefe sorri, entendendo-a.

2

O portão largo da entrada  e saídas dos operários fechado. O estreito e longo bueiro um pouco afastado, à esquerda da Portaria, sem expelir a fumaça da madeira queimada por as caldeiras. O silêncio pesado que envolve o prédio de seções conjugadas, sem ninguém. Onde estão os caminhões transportando as caixas ou conduzindo o material para a confecção do papel? Onde estão os tratores gigantes, amarelos, que recolhem e conduz o bagaço de cana para a esteira que por sua vez o leva às cozinhadeiras, no primeiro andar? Tudo parado. Apenas um ou outro vigilante zelando o patrimônio da Empresa.

- Estamos falidos.

Diz Seu Gilberto em desabafo baixinho, realista, após a rápida análise ao que presencia e, buzina, anunciando-se.

O portão é aberto e o automóvel entra devagar, macio, como se temesse ferir as pedras esbranquiçadas pelo tempo e que já se encontram sujas por papéis que voam, dançando ao vento da manhã. Sim, entra no grande e quieto pátio.

O guarda fecha o portão.

No céu o sol cintila com maior força, anunciando o verão, pois afinal de contas, nada pára, tudo segue ao comando de uma Grande Força.

Saltando do carro, Seu Gilberto  encaminha-se ao seu gabinete, no primeiro andar, onde apenas encontrar-se-á sozinho, no refúgio dos ausentes.  Incontáveis fantasmas.