Reflexos de uma existência

Por Silvana Noya Pires Michelin | 25/01/2018 | Crônicas

Não se sabia feia ou linda, afinal o único espelho a que tinha acesso estava todo manchado e não lhe possibilitava ver-se por inteira. Mas acreditava muito nas palavras de sua fada madrinha que sempre a declarava linda e era capaz de realizar todos os seus desejos. No entanto o que ela não sabia era que além das cercas do lugarejo onde morava existiam tesouros por ela ignorados. Nas poucas horas de ociosidade dedicava-se à leitura de livros proibidos para a sua idade, dado que, não era submetida à muito vigilância. O pai havia morrido e a mãe trabalhava muito para poder manter os dois filhos pequenos. Depois da aula, tinha como responsabilidade cuidar do irmão e do primo menor, mas a leitura desses livros a absorvia, devorava um livro por dia e às vezes acabava esquecendo dos meninos que desapareciam pelas casas dos vizinhos. Imaginava-se como as heroínas dos romances que lia: linda, loira, magra ... e em seus devaneios após a leitura sonhava com um homem másculo, lindo rico que tomaria nos braços e a transportaria para praias paradisíacas onde faria amor com ela e a deixaria sem fôlego, para logo em seguida recomeçar o ritual da paixão. Sinteticamente essa foi sua adolescência carente, até que em um certo momento conheceu alguém que julgou ser o seu herói. Recebeu de presente dele uma caixinha de música, que tocava exaltadamente a música que falava de amor e devoção. Apaixonou-se ou considerou-se apaixonada. Recebia flores, declarações e foi se ocupando cada vez mais em corresponder ao namoro. Não houve tempo para nada mais. Ele a confinava naquele mundinho e lhe era conveniente que ela continuasse desprovida de grandes ambições. Só não foi capaz de impedi-la de realizar o seu sonho de ser professora e assim foi, mas antes de formar-se percebeu-se grávida e junto com o diploma recebia em seus braços o grande amor de sua vida, que recebeu o nome de princesa, e sim, sem dúvida nenhuma, a criança mais linda que já vira em sua vida. Aos poucos o amor foi se transformando e outras damas começaram a tomar o seu lugar nas noites do seu homem. Chegava tarde em casa com marcas de batom, cheiro de perfume misturado com bebida. E ela chorava, brigava, mas sempre passava quando recebia dele a promessa de mudar e dessa forma foram conduzindo suas vidas até que mais uma vez conheceu através de outra filha o amor incondicional. Após o nascimento da segunda filha, iniciou-se entre eles uma fase de convívio insustentável: ele chegava cada vez mais tarde e embriagado, olhava para ela, ria e usava adjetivos sombrios. Iniciou-se uma época de padecimento. Tentando esgueirar-se desse suplício começou a adentrar um mundo proibido, mas encantador, onde conseguia ser princesa, fada, até mesmo a bailarina que conhecera há anos atrás e ainda presente em sua caixinha de música empoeirada. Entre um desiludido e outro esbarrou-se com alguém que fez com que seu coração disparasse. Começaram, então, a viver uma fantasia que teria sido conveniente se permanecesse dentro das telas, pois apesar das tardes de beijos intermináveis, clímax intensos, os príncipes se transformam em ogros e as princesas em gatas borralheiras quando se deparam com o mundo real. Iniciou-se, então na vida da heroína mais uma etapa de desilusões, traições, que entre idas e voltas sobreveio mais uma linda menina para premiar a personagem. Uma garotinha linda que é capaz de levá-la do mundo real para lugares fantásticos onde os jardins são cuidados por fadas, unicórnios são os grandes protetores do reino. Lugares nos quais ela pode ser a fada, e atravessar o portal mágico quando quiser. Onde existem espelhos verdadeiros capazes de mostrar-lhe toda a sua beleza, sensualidade e poder. Sim, poder, a fragilidade de outrora transformou-se em força e hoje ela só faz o que deseja. O espelho embaçado ficou para trás! O que os outros pensam não importa para ela e ela sabe que o seu grande poder está em sua índole, no seu temperamento doce, na sua fibra e na sua dedicação integral às filhas.