Reflexões Sobre A Morte E O Morrer
Por Leonides da Silva Justiniano | 03/01/2008 | CrescimentoEntre interrupções e contiuidades, surpresas e atendimento de expectativas, chega o fim de um ano. E, com isso, tem-se, paradoxal e logicamente, o início de outro. Logicamente, porque é o que se espera: que a um ano se siga outro; paradoxal porque o começo surge do fim, o novo surge do velho.
Discordando de alguns críticos, que afirmam não ver uma continuidade artística na obra a ser referida, considero digna de reflexão (ou de reflexões) o livro As intermitências da morte, do escritor português José Saramago – o volume que possuo é a 2ª reimpressão da publicação da Companhia das Letras, de 2005. Pois esse livro começa e termina com uma afirmação assaz interessante: "No dia seguinte ninguém morreu."
A primeira vez que a afirmação é feita, iniciando o livro, refere-se ao primeiro dia do ano, que, como sói ocorrer, foi precedido do último, a passagem, o revellion, com todos os excessos costumeiros. Excessos que, em países como o Brasil, em 2007, apenas nas estradas federais deixou o legado de cerca de 100 mortos. Mas, em países como o Quênia, a passagem do ano viu mais mortos, vítimas de chacinas inter-étnicas ou políticas, que sejam. Em anos anteriores – 2004, por exemplo – a tragédia de fim de ano foi antecipada de dias, com a catástrofe das tsunami em regiões da Ásia.
O que esses fatos têm de comum? Talvez o "inevitável" que envolve a morte, a despeito das variações sobre as formas e as circunstâncias do morrer. Possivelmente esta última seja a causa da angústia (ou parte das angústias) do ser humano: o desejar perpetuar-se e ter a certeza de que não o conseguirá; e o que é pior, que nem tem em mãos o domínio das ocorrências em que a pessoa deixará de compartilhar com os outros desse "vale de lágrimas".
O título deste artigo é tomado de empréstimo à psicanalista Köbler-Ross, os argumentos iniciais são emprestados a Saramago, os fatos que o ilustram são retirados do dia-a-dia e dos noticiários, mas o drama que o envolve diz respeito a todos e a cada um. Sem restrições e sem proteções de direitos autorais. Essa amplitude do alcance da morte, essa sua democratização, para alguns, talvez ainda seja a última das manifestações da justiça – senão humana, de alguma onisciência superior. Diz um escritor: o berço diferencia, mas o túmulo a todos iguala.
Por que essas reflexões? Porque se tem assistido, ultimamente, uma progressiva, ainda que silenciosa, escalada de desrespeito pela vida. Mata-se, priva-se da vida, por qualquer coisa: por um tênis, por um aparelho de telefone celular, pela demora em retirar o cinto de segurança durante um assalto, porque a ex-namorada, noiva, esposa ou companheira separou-se de um e está com outro (ou, em menor escala, invertendo-se os gêneros), porque a TV, ou o cinema, ou o vídeogame sugeriram... E os que retiram a vida de terceiros são cada vez mais jovens; são pessoas que, sequer, começaram a viver, de fato.
Essa escalada de desrespeito à vida faz com que seja lembrado o filósofo Albert Camus; sobretudo, dois de seus livros: O mito de Sísifo e O homem revoltado. Em que tenham o pano de fundo da discussão do absurdo, Camus, no primeiro livro, discorre sobre o suicídio ("O único problema filosófico realmente sério é o suicídio", escreve, abrindo as páginas de O mito de Sísifo); no segundo, afronta a questão do homicídio. E a comparação entre as duas situações relativas à morte força uma reflexão sobre a vida e sua importância. Diz Camus:
[...] Se nosso tempo admite facilmente que o homicídio possua as suas justificações, isso acontece devido à indiferença pela vida que caracteriza o niilismo. [...] De certa maneira, o homem que se mata solitariamente preserva ainda um valor, pois aparentemente não se reconhece com direito à vida dos outros. (Camus, O homem revoltado, p. 16).
É lógico que alguns criminosos que matam e, em seguida, se suicidam, não são apenas desprezadores da própria vida e da vida alheia – sem julgamentos de valor, o que se pode dizer é que, quase sempre, são uns fracos, uns covardes que não conseguem enfrentar as derrotas da vida e, sequer, assumir as conseqüências dos próprios atos, quando buscam a fuga dos problemas. Para esses, certamente Nietzsche devotaria seu desprezo, apontando que "O criminoso não está, muitas vezes, à altura do seu acto: amesquinha-o e difama-o." (Nietzsche, Para além de bem e mal, p. 87).
Mas os grandes acontecimentos, que só são tidos por grandes por causa da quantidade incomensurável de pessoas que tolhe, ou pela importância que uma pessoa se arroga e a sociedade midiática lhe atribui, obscurecem a percepção de que é nos pequenos acontecimentos do dia-a-dia que a vida (e a morte) vai tecendo seus dramas. Dentro da vida, espera-se que a natureza também se adeque e siga um script que sabe-se lá quem elaborou. Dentro desse script, os mais velhos devem morrer antes dos mais novos, assim como os mais bonitos devem morrer depois e serem mais pranteados que os mais feios; bem como os mais honestos devem sofrer menos que os mais desonestos e corruptos; e os mais ricos e importantes devem ser mais pranteados que os mais pobres... Isso é o lógico? Não, mas nada impede que seja considerado assim. Pelo menos, no tocante à idade. E em tempos de violência desmesurada, a frase angustiada que ressoa como um clamor de revolta martela: "Um pai e uma mãe não deveriam ser obrigados a enterrar seu filho ou sua filha!!"
A questão da morte coloca a cada um de nós diante de um anseio inexplicável de eternidade, que tentamos suprir com os filhos tidos e geralmente criados, com as árvores plantadas à sobra das quais nunca nos sentaremos, com os livros escritos que poucos lerão, com as músicas compostas que talvez não encontrem ouvidos, com as telas pintadas que talvez não sejam contempladas, com os sonhos que pedem para ser realizados antes de se perderem...
Eis o paradoxo que nos colocam diante dos olhos as grandes celebrações da vida: a busca do constante adiamento com a morte, única certeza que a vida encerra em si, ou dentro da qual se desenrola.
O pesquisador da Unesco, Jacopo Waiseifisz, em seus estudos sobre a violência no Brasil, descreve panoramas sombrios. De acordo com seus dados, o Brasil vive uma situação de guerra: guerra não declarada, guerra civil, guerra que vitima cerca de 40.000 pessoas por ano – em 2000, os mortos por causa externa (homicídios, suicídios e acidentes automobilísticos) chegou a 46.027. Deste universo, 17.797 eram jovens (pessoas com idade entre 15 e 24 anos), sendo que, desse montante, 13.186 foram vítimas de ferimentos causados por arma de fogo. Assim, são jovens os que matam; sobretudo, muitos que morrem são igualmente jovens.
A morte, não raro, pode ser a outra face de uma vida não vivida, da falta de perspectiva existencial. Com a baixa qualidade da educação pública, por que se sujeitar a ficar sentado em um banco escolar, se bem ali, ao lado, tem uma boca de fumo e o chefe do tráfico oferece um pagamento superior ao salário mínimo que os pais têm de suar um mês para receber? Para que ficar atrás do balcão, ganhando por comissão, se algumas saídas por noite, ou mesmo durante o dia, podem garantir, à garota, um rendimento bem maior (e, quem sabe, até com um certo prazer)? Não seria, a submissão a esses tipos de vida, antecipação – por pequenas mortes – da morte definitiva?
Ao contrário da certeza da morte, a vida pode ter indícios enganosos. De acordo com o best-seller Freakonomics, de Levitt e Dubner, o mundo aparentemente bem-sucedido da criminalidade é bastante pior do que transparece. De acordo com os cálculos dos autores, eis as probabilidades no mundo tráfico:
Uma chance em 4 de ser morto! Comparemos esses riscos com os de um cortador de madeira, profissão considerada a mais perigosa nos Estados Unidos pelo Departamento de Estatísticas do Trabalho. Em um período de quatro anos, um cortador de madeira teria apenas 1 chance em 200 de morrer em decorrência de um acidente de trabalho. Ou comparemos os riscos do traficante de crack com aqueles a que está exposto um prisioneiro no corredor da morte no Texas, que executa mais prisioneiros do que qualquer outro estado americano. Em 2003, o Texas executou 24 prisioneiros – ou seja, apenas 5% dos quase 500 ocupantes das celas no corredor da morte nesse período. Isso significa que a chance de morrer traficando crack num conjunto habitacional de Chicado é maior do que a enfrentada por um prisioneiro no corredor da morte no Texas. (Levitt, Dubner, Freakonomics, p. 106).
Se os argumentos ou dados de Levitt e Dubner parecem exagerados, ou causam um certo alívio a nós, do hermisfério sul americano, é por não considerar aquilo que o Mapa da Violência III, organizado por Waiseifisz, traz a lume. De acordo com dados divulgados pelo Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME), o adolescente brasileiro tem 48,5% de considerável possibilidade de morrer antes dos 20 anos. E para 21% dos adolescentes, esse risco é muito grande. Em outras palavras: 1 em cada 5 adolescentes brasileiros tem 50% de morrer até aos 20 anos. Parece que essa estimativa supera aquelas de Levitt e Dubner.
Na verdade, a forma como a vida está organizada, atualmente, sobretudo no plano econômico, celebra, discretamente, um pacto com a morte. Como afirma Viviane Forrester (O horror econômico), o modelo econômico atual criou as pessoas descartáveis, aquelas que, para o sistema, não valem a pena, que não são, sequer, exploráveis, que nem ao menos têm a capacidade mínima para serem exporadas.
Uma sociedade que também celebra a beleza, a juventude, que cultua o corpo perfeito, que luta contra a arte incidiosa e intolerante do tempo, não pode encontrar espaço para uma reflexão profunda e sincera sobre a morte. Não aquelas reflexões e palavras "mortas", que são ditas em funerais: palavras que aqueles que se dizem ministros do divido torcem e retorcem no sentido de afirmar a beleza da morte, seguida do encontro com Deus. Esquecem-se, esses oradores, que nas próprias letras do livro considerado sagrado se afirma que Deus é Deus dos vivos, e não dos mortos. Claro que se pode discutir, aqui, a qual morte e a qual tipo de mortos se refere. Mas Richard Dawkins (em seu livro Deus, um delírio) resgata alguns autores – Nietzsche poderia ser lembrado aí, novamente – que apontam a contradição daqueles que louvam a morte e seus benefícios, mas que tentam evitar ao máximo o encontro com os mesmos. Pessoas que tentam, inclusive, evitar a menor imagem ou lembrança da morte, como refere Saramago em seu conto Refluxo (incluído no livro Objecto quase, p. 47-64), quando um rei procurou retirar de seu reino qualquer vestígio da morte e mandou construir, fora dos limites reais um cemitério – ao redor do qual a cidade, depois, se reestruturou.
Talvez seja Camus quem possa, ainda, trazer uma última reflexão sobre essa irmã gêmea da vida. Em seu lívro póstumo A morte feliz, Camus parece deixar a mensagem de que o medo da morte representa, na verdade, o medo da vida. Vida que deve ser enfrentada com todos os seus percalços e desafios – algo já enunciado por Saint Exupèry. A vida é o que é por aquilo que proporciona de crescimento aos que assumem enfrentá-la – não aos que dela fogem. Muitos podem julgar que a vida deveria ser bela, sem tropeços. Gostariam de vê-la asséptica. Mas, é Camus quem ainda alerta: deve-se buscar a vida, de forma livre, pois pior que pensar em um ser humano morto é pensar em um ser humano com má consciência, uma pessoa culpada.
Tomo a liberdade de reproduzir um significativo diálogo extraído de seu livro A peste, onde o doutor Rieux conversa com um de seus pacientes, logo que é declarada a extinção da peste em Oran e a cidade reabre as portas para o mundo, celebrando aquilo que pensa que será a "vida normal".
Quando Rieux chegou à casa do seu velho doente, a noite já devorava todo o céu. Do quarto, podia-se ouvir o rumo longínquo da liberdade, enquanto o velho continuava imperturbável, a despejar as suas ervilhas.
_ Eles têm razão em divertir-se. É preciso de tudo neste mundo. E o seu colega, doutor, o que houve com ele?
Chegavam até eles detonações, mas eram pacíficas: crianças que soltavam as suas bombas.
_ Morreu – disse o doutor, auscultando o peito resfolegante.
_ Ah! – esclamou o velho, um pouco perplexo.
_ Peste – acrescenteou Rieux.
_ É verdade – reconheceu o velho, um instante depois – são os melhores que partem. É a vida. Mas era um homem que sabia o que queria.
_ Por que diz isso? – perguntou o médico, arrumando o estetoscópio.
_ Por nada. Nunca falava para não dizer nada. Enfim, ele me agradava. Mas é assim. Os outros dizem: "É a peste, tivemos peste." Por pouco, pediriam que os condecorassem. Mas que quer isso dizer, a peste? É a vida, nada mais. (Camus, A peste, p. 211-212, grifos nossos).
É possível que seja isso. As festas são isso, festas, comemorações efêmeras de pequenas e jamais definitivas vitórias sobre a despedida final da vida. E seria por isso que a vida é bela, é que deve ser aproveitada ao máximo, sem prejuízo a si próprio nem aos demais. Talvez quem não perceba isso já esteja derrotado. Afinal, a vida é permanente vigília e combate, como imortalizou Gonçalves Dias:
Não chores, meu filho,
Não chores que a vida é luta renhida:
Viver é lutar!
A vida é um combate,
Que aos fracos abate,
Mas que aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar!!
(Gonçalves Dias, Canção do Tamoio).