REDEMOINHO URBANO

Por sérgio Sayeg | 15/06/2016 | Crônicas

A tarde avança. Os raios de sol, desolados, chegam enviesados, desiguais, fatais, entrecortados e corrompidos pelas partículas esparsas que guardam da indevida vida cada metro metropolitano. Uma massa massacrante que, agonizante, se debate para estender sua sobrevida ao interior de seu sepulcro submundano.

As intermitentes nuvens de radiação e poeira carcinogênica que compõem a perene paisagem são surpreendidas e arrastadas pela força da frente fria vinda do sul, que traz de distantes oceanos e remotas geleiras o frescor de promissores bolsões de água límpida.

Cai cálida e calma a chuva, vertendo candidamente suas lágrimas regeneradoras de fênix sobre as formações nebulosas e tenebrosas de monóxido e amônia. Um pingo de socorro, salvação temporária. Temporal cicatrizante das pragas e chagas expostas, sob escangalhadas ataduras.

Providencial aguaceiro a procurar curar, lavar e livrar a cidade de suas duras amarguras, agruras, gorduras, securas, feiuras. Limpar a Gomorra de seus pecados, cravados no cinza e no piche dos arranha-céus, minhocões e templos malufentos, que tripudiam, com sua veemente monstruosidade engenheirássica, as delicadas e formosas formas arquitetônicas da natureza e da humanidade perdida. Monumento à horripilância grandiloquente e ao ufanismo automocrático e carrificida, que atropela com sua volante retumbância mecânico-combustora-carburante os frágeis laços de vida comunitária.

Nesse ambiente degradado, o homem-ratazana cosmopolitano que, ao lado de outras espécies escrotas, forma a fauna bizarra nesse microcosmo em decomposição, serpenteia com suas garras destrutivas. Conflui em pontos nevrálgicos, com o seu fedor roedor pelos ralos, sumidouros e sorvedouros da masmorra labiríntica, dando vazão às suas pressas nas artérias tubulares, veias jugulares e cavernas tumulares, desaguando em tantos pontos mesmos, qual o núcleo de um cupinzeiro autofágico, numa desvairada lógica retro e rato alimentadora.

Uma poeira preta nefasta ergue-se da miscelânea de tênis furados, papeis embostalhados, cocôs empedrados, cusparadas esverdeadas, melecas viscosas, gosmas, pets, giletes, chicletes, skols, jontex, bitucas, pneus e angústias, cercando os pútridos aglomerados com ar fétido, oleoso, carregado, azedo e apodrecido. Um envoltório cinzento cobre a urbe com uma névoa de poluição, gás carbônico, fuligem, esturro, efeito estufa e desalento.

Tietê, Tamanduateí, Pinheiros, Anhangabaú, Ipiranga, Pirajussara, Tremembé. Veias entupidas da rede hidroescatológica patogênica em colapso. Carregam os detritos da fábrica de esgotos, rejeitos, dejetos, fetos, insetos, sulfetos, cianuretos, hidrocarbonetos, meningites virais e coliformes fecais.

Vielas, favelas, fivelas, trapos, maços, troços, destroços, pedaços, cacos, nacos, sacos, mucos, vidros, vermes, vômitos, catarro, escarro, barro, borra, porra, espirro, piche, peixe, resina, azoto, graxa, chorume, cerume, estrume, negrume, betume, tapume, recebem uma ducha que os intumesce, formando um redemoinho desordenado e desesperado pelas fendas, ladrões, escapes, orifícios, bocas de lobo, refugos clandestinos.

Os resíduos conduzidos tapam e entopem as saídas com montes de nódoa, estopa e arame farpado engabelados num bolo de bolor, lodo, mijo de rato e excremento cristalizado, fruto putrefato de um conglomerado enfermo, pestilento, antropomórbido.

Emerge um redemoinho incessante. Os buracos foram tapados pela argamassa e pela crosta da urbanidade deteriorada. A água retida, amontoando-se, não pode seguir seu curso e, sequestrada pelo caldo asfáltico, a ele incorpora-se. Ingrediente para a ácida sopa preta funesta servida pelos becos aos vermes repelentes.

A esperança líquida de redenção e renascimento escorre, esbarra, barrada pelo barro, por esse engrossada, engessada, sem força, sem gotas, esgotada, desgostosa, desgastada. Não purifica, putrifica.

Sucumbe frente ao lixo que se sobrepõe ufano à terra envenenada ao lado das garagens, galerias, bueiros, subterrâneos tenebrosos.

Cooptada, vilipendiada e violada, ao invés de diluir as mazelas, a água é por elas tomada, transportando aflitivamente seus feitos e efeitos infecto-contagiosos, pelas valetas e sarjetas. Destroços de uma batalha perdida.

À noite vem sereno o sereno adocicar o manto de escuridão que oculta as úlceras mazelentas, umedecendo suavemente com gotículas o inexpugnável asfalto, os edifícios, os viadutos, os monumentos e os mausoléus. Homenagem aos soldados petrificados, heróis espúrios da vitória inglória sobre a natureza.